Nos dias de hoje, quando se debate muito o papel dos media e o seu poder como instrumento de formação de opinião pública, deparei-me com o caso em torno do novo filme Joker de Todd Phillips. Estreado no Festival de Veneza, o filme foi aclamado na Europa, tendo vencido o Leão de Ouro. Já em terreno americano, a reação foi outra.
Nos EUA, Joker causou uma discussão entre os críticos dos mais variados órgãos de comunicação como a TIME, Entertainament Weekly ou a CNN, onde tem sido rotulado como conteúdo perigoso a ser exibido nas salas de cinema. Este argumento levou a um discurso sabotador, ao considerar que o filme pode servir de inspiração a muitos indivíduos para cometer atos violentos.
A questão que se levanta: podem os filmes influenciar comportamentos humanos? Bem, pegar isto apenas por um lado da moeda seria errado. Da mesma forma que não podemos subestimar o impacto do cinema, também não podemos sobrevalorizá-lo.
Toda a experiência do ser humano com o meio em que está inserido pode influenciar (ou não) um dado tipo de comportamento da sociedade, seja ele positivo ou negativo. Ou seja, não é apenas a Arte a única forma de influência de uma reação humana. Viver em sociedade é estar a ser bombardeado de informações, opiniões, movimentos culturais, e tudo isso forma, pouco a pouco, a nossa consciência. É uma questão de interpretação do ser humano do mundo em que está inserido.
Focando-nos no contexto americano, há algo mais preocupante do que aquilo que possam vir a ser as ideias que o filme expõe. A fraca restrição ao controlo de armas tem vindo a ser apontada como uma das principais causas de centenas de tiroteios em cada ano nos EUA. O facto de cada cidadão facilmente ter ao seu dispor instrumentos deste calibre aumenta o risco de estes eventos acontecerem.
Não será o filme uma exposição crua daquilo que nos é familiar mais do que uma glamorização e incitação para tais atos? A obra também pode ser lida desta forma. O personagem principal — Arthur — tem problemas mentais, vive à margem e sofre pela sua inadaptação à sociedade. Um pouco como acontece em certos casos na realidade, em maior ou menor escala. Quando é espancado por um grupo de jovens/crianças e, mais tarde, regressa ao seu local de trabalho, um dos seus colegas, ao saber o que tinha ocorrido, oferece-lhe uma arma, com a mensagem de que este assim estaria em “segurança”. Arthur, numa breve reflexão, questiona-o dizendo-lhe que não devia aceitar tal situação. Arthur acaba por se convencer e aceita a arma. Não poderemos nós refletir como esta cena é quase similar ao tipo de mensagem por que se pautam os EUA face à cultura das armas: a “segurança”’.
Será segurança ou um perigo dependendo de quem as usa, mas uma sociedade não pode viver neste tipo de incerteza social. Não é surpresa que as taxas de criminalidade são mais acentuadas em países onde a circulação de armas é mais elevada e isto serve tanto para países que as legalizam como para aqueles onde são ilegais. Na Europa, este problema não se discute, pois a regulação dos Estados face a esta matéria é mais controladora.
Devido aos efeitos da globalização, tanto nos Estados Unidos da América como na Europa há também o acesso ao mesmo tipo de conteúdos violentos e tanto lá como cá há também indivíduos com desequilíbrios emocionais, pessoas angustiadas… O que difere são as possibilidades de este tipo de pessoas conseguirem ter armas que possam usar como descargas das suas frustrações.
O filme talvez seja uma forma de consciencialização para a questão dos riscos/perigos que uma pessoa com problemas mentais pode ter associados à posse de uma arma, mais do que a incitação para tal. E se tivermos em conta que acompanhamos a narrativa através da perspetiva de um psicótico, o impacto é mais forte e preocupante. Arthur é um resultado de vários fatores que são coerentes no tipo de pessoa que ele é… mas entender os problemas do personagem (desde abusos precoces, desequilíbrios familiares à condição mental) não nos exige que aceitemos tudo o que ele faz.
A construção de Todd Phillips remete para isso: para uma empatia em torno dos seus problemas, mas com um lado sufocante nas suas ações. Nesse aspecto, a interpretação de Joaquin Phoenix explora muito bem essa relação com o seu personagem, desde os involuntários risos às perturbadoras danças.
Isto tudo para concluir e falar sobre o papel dos media. Os media norte-americanos, tanto generalistas como especializados, adotaram um discurso contra o filme, afirmando que o mesmo pode sair da tela e chegar às ruas. Esta tentativa de criar uma narrativa de medo (que, por sua vez, quer afastar o público do filme) impede que o espetador tenha uma perspetiva crítica sobre a obra. É querer impor um discurso censório e instrumentalizá-lo para aquilo que “supostamente” ele deve ver. Metê-lo numa bolha. A perspetiva é o que permite pontos de vista diferentes e comuns. É legitimo gostar (ou não) do filme, toda a obra é suscetível a estes dois parâmetros, e isso é bom porque cria o senso de opinião. Errado é querer barrar esse tipo de exercício.
Felizmente, o discurso em si não teve o efeito esperado. Se a intenção foi afastar o público, a mesma foi um fracasso, pois a onda de indignação fez despertar mais curiosidades do que medo. E isto é mais uma amostra dos “tiros no pé” que os meios de comunicação têm dado nos últimos anos… Preocupante? Só se for para o Grupo WarnerMedia que tem que acalmar esta barafunda “familiar”.