O atual capitão do Hapoel Be’er Sheva e internacional por Israel, Miguel Vítor, atravessa um clima de tensão devido ao conflito israelo-palestiniano, que tem tido impacto tanto no seu dia-a-dia como na sua trajetória futebolística. Depois de passagens por países como Reino Unido e Grécia, a família continua a ser o seu principal pilar.
Na chegada ao Hapoel Be’er Sheva em 2016, deparou-se com o conflito entre Israel e a Palestina que, apesar de não ser tão intenso como agora, já existia. Como lhe foi apresentado e como encarou a situação?
Houve sempre alguma tensão nos últimos anos, mas quando assinei e vim para cá, tinha havido, se calhar, duas ou três alturas de maior tensão. Por exemplo, o envio de rockets da faixa de Gaza para Israel, mas nada fazia prever que iria acontecer uma coisa com a dimensão daquela que aconteceu naquele dia 7 de outubro.
Quando cheguei, uma situação curiosa, quando ia ver apartamentos ou casas, cada uma delas tinha um quarto anti bomba. Na altura, quando me estavam a mostrar a casa e a explicar o que aquilo era foi um choque pensar que o poderia ter de usar alguma vez. São situações um pouco stressantes quando ouvimos a sirene de alerta de rockets que estão a vir na direção da zona onde estás. Apesar de a maioria serem destruídos pelos sistemas de defesa antiaérea de Israel, é sempre uma situação complicada que causa uma grande tensão e muita ansiedade. As primeiras vezes são momentos complicados em que há uma ansiedade muito grande.
A sua expectativa em relação ao país correspondeu à realidade ou houve alguma surpresa?
Assim que soube que tinha uma proposta de Israel, a minha primeira reação foi logo dizer que não. Achava que era um país que estava em guerra, porque as coisas que ouvíamos na televisão eram sempre coisas más. Na altura, senti algum receio a nível familiar, mas falei com dois jogadores portugueses que estavam aqui em Israel e contaram-me maravilhas do país, e que nunca tinham sentido qualquer tipo de problema de segurança.
Acabei por chegar a acordo com o clube em visitar o país antes de assinar. Vim com a minha esposa e gostámos do que vimos. Realmente, não era a ideia que tínhamos. Surpreendeu-nos pela positiva e já vamos no oitavo ano. Agora se calhar é um bocado estranho dizer isto, devido ao que se está a passar, mas sempre foi um país onde vivi muito bem com a minha família. Não me arrependo da escolha que fiz.
Como foi o momento em que se apercebeu que algo não estava bem?
Moro a cerca de 15 minutos de Beersheba, a cidade grande aqui do clube, e lá já tinham soado as sirenes às seis e meia da manhã. Mas aqui onde vivo não tinha havido nada. Quando acordei, por volta das oito da manhã para treinar às dez, vi que tinha muitas mensagens no grupo dos jogadores. Apercebi-me do que se estava a passar, mas na altura ninguém tinha ideia da dimensão do que estava a acontecer. O treino ficou adiado para mais tarde porque se pensava que era uma coisa de dimensões pequenas, mas fomo-nos apercebendo do que estava a acontecer através das notícias, e o clube também foi falando connosco sobre a entrada de terroristas na zona da Faixa de Gaza.
Aqui onde moro, estamos a cerca de 40 quilómetros da Faixa de Gaza, é bastante perto, e quando soube dessas notícias comecei a sentir muito medo do que pudesse estar a acontecer. A uma certa altura, li que os terroristas estavam aqui numa vila, mais ou menos a 15 quilómetros da minha casa, e como não sabes até que ponto isto pode chegar, começa toda a gente a trancar-se em casa. Foram momentos de muita ansiedade que nunca pensei viver aqui em Israel.
Até porque nesse momento a sua família estava em Portugal…
Sim, felizmente a minha mulher e os meus filhos estavam em Portugal. Foi mais fácil lidar com este stress, se estivessem aqui a ansiedade seria maior. Assim, apesar do medo e do receio, estando sozinho, achei que as coisas se resolveriam mais facilmente. Para sair do país também era mais fácil estando sozinho do que sendo seis.
Do outro lado, como foi para eles lidar com esta notícia à distância?
Foi difícil. A minha mulher e as minhas filhas mais velhas estavam sempre a ligar e a pedir para voltar. Estavam com receio e queriam saber a toda a hora como estava. Era complicado para mim estar aqui, mas para eles, se calhar, era ainda mais difícil estando a acompanhar de tão longe e não sabendo bem o que se estava a passar, e assim foi até terem a notícia de eu ter saído do país.
O que se sente quando soam as sirenes? Qual é o panorama?
Onde moro tens cerca de um minuto para ir para o quarto anti bomba. Se estiveres fora de casa, todos os restaurantes, zonas comerciais e lojas têm zonas de refúgio. Se forem pessoas israelitas ou pessoas que já moram aqui há algum tempo, não existe muito pânico e vão de forma ordeira para essas zonas. Mas, por exemplo, um colega meu de equipa foi para o aeroporto logo quando isto começou e a sirene tocou lá duas vezes e disse que foi um pânico incrível com toda a gente a correr e aos gritos. Acho que as primeiras vezes são mais stressantes, mais complicadas, mas depois de já teres vivido essa situação, já encaras as coisas com mais naturalidade. É um bocado estranho estar a dizer isto, mas é mesmo esse o sentimento que tenho.
Sendo pai de quatro crianças, como é que se explica esta situação que pode acontecer a qualquer momento?
Lembro-me da primeira vez que tocaram as sirenes, as minhas filhas eram mais novas, tinham cerca de cinco anos. Eram dez da noite, fomos buscá-las ao quarto a correr. Na altura, não lhes expliquei o porquê, disse que estava trovoada e dormimos lá. Mas depois, em conversa com a minha mulher, percebemos que não fazia sentido mentir, porque na escola vão explicar o que se passa e vão fazer simulacros. Apesar de serem tão novas, tivemos uma conversa com elas tentando explicar o que se estava a passar. Hoje, as minhas filhas já têm 11 e 10 anos e já percebem as coisas de outra forma.
“Foi muito complicado ouvir histórias de crianças que perderam os pais”
A Liga já foi retomada. Quais foram as indicações que vos transmitiram?
Existe sempre a possibilidade de tocarem as sirenes durante um jogo. As indicações, caso isso aconteça, são para irmos para a zona dos balneários, normalmente protegida em betão e sem janelas. Felizmente, acho que ainda não aconteceu em nenhum jogo, mas sabemos que há essa possibilidade e é stressante pensar que isso pode acontecer.
No dia 2 de junho de 2022, estreou-se pela Seleção de Israel. Como surgiu a oportunidade de representar o país?
Seis meses antes de ter feito a minha estreia, falaram-me nessa possibilidade. Sei que pelas regras da FIFA, depois de cinco anos estando a viver num país, podes ter a nacionalidade e jogar na seleção. Era algo que não me passava pela cabeça, porque sabia que em Israel nunca tinha acontecido uma situação assim, um jogador não judeu ser naturalizado. Mas as pessoas da seleção contactaram-me e pensei um bocado nisso. Foi um motivo de orgulho ter esse reconhecimento. Ao aceitar o convite foi também uma maneira de retribuir tudo o que o país e as pessoas me tinham dado ao longo daqueles cinco anos. A nível profissional aceitei, sendo que jogar num europeu ou num mundial é um dos poucos objetivos na minha carreira que me falta cumprir. É possível ainda conseguirmos esse objetivo em março através do play-off.
E no fundo, as pessoas acabaram por receber bastante bem esta notícia e a sua integração.
Sim, felizmente a minha imagem no país é boa, sinto-me acarinhado pelas pessoas, apesar de ao início algumas pessoas comentarem “Ah, ele já tem 33 anos, vamos estar a naturalizá-lo e se calhar vai jogar dois ou três anos. Será que vale mesmo a pena?” Mas o futebol é mesmo assim, quando começas a jogar e as coisas correm bem já ninguém se lembra disso. Já se fala de mais um jogador espanhol que está nesse processo de naturalização. Acho que também contribuí para abrir as portas e a mentalidade para isso poder acontecer mais vezes, já que é uma situação que ocorre atualmente em todas as seleções e países com jogadores com muito mais qualidade do que Israel, como Portugal e Itália.
Depois desta pausa de seleções, qual é o ambiente que se viveu na Seleção de Israel? Como se mantém o equilíbrio e o ânimo da equipa?
Foi muito complicado. Tínhamos dois jogos nos dias 12 e 15 de outubro, mas depois do que aconteceu a 7 de outubro foram adiados e acabámos por ter de jogar quatro jogos em nove dias. Muitos jogadores, como no meu caso, não tinham jogos há um mês e meio, nem treinos com a equipa, foi difícil essa parte profissional. Depois a parte pessoal, a parte psicológica, também foi muito complicado. Os jogos em casa foram feitos na Hungria. Recebemos lá crianças das zonas afetadas, foi muito complicado ouvir histórias de crianças que perderam os pais ou que tinham familiares raptados.
Confesso que foi uma das alturas e dos jogos em que senti mais peso. Sentes que o que está em campo não é só o futebol e a qualificação para o Europeu, é também a parte psicológica dessas pessoas, de poder dar uma alegria a quem sofreu muito. Acho que essa pressão também nos afetou um bocadinho, mas tentámos o nosso melhor e agora em março podemos conseguir esse objetivo para o país.
Jogou na Grécia durante três épocas, mais concretamente no PAOK. O cenário futebolístico é muito diferente dos outros países em que esteve?
O futebol é de um nível inferior a Portugal, talvez seja de um nível equivalente a Israel, apesar dos clubes grandes terem um poder financeiro superior a Israel na sua maioria. A nível de adeptos, toda a gente que segue o futebol sabe bem do fanatismo dos gregos e a maneira como vibram com o futebol.
Nos jogos grandes, não tínhamos adeptos da equipa visitante por causa desses confrontos. Até porque, antes de haver essa restrição, existiram episódios que levaram a mortes e ferimentos. É um ambiente muito quente e diferente de tudo o que tinha vivido, mesmo sem adeptos visitantes, normalmente há confrontos com a polícia. Os jogos grandes eram sempre ambientes difíceis para a equipa visitante, mas penso que o governo esteja a tentar combater isso, porque muitas vezes as coisas eram levadas além do limite.
No tempo em que esteve no PAOK, houve um ataque aos jogadores. Como surgiu este conflito, e como é que um jogador lida com a exposição a este tipo de situações?
Sim, lá estás um bocado exposto em relação aos adeptos, existe uma pressão maior se perderes alguns jogos ou se as coisas estiverem a correr pior. Esse caso foi no final de um jogo que perdemos em casa. Queriam forçar a entrada no balneário. Não são situações agradáveis. Os adeptos têm o direito a manifestar o seu desagrado, mas às vezes passa dos limites e é complicado para nós viver isso, até porque não vai trazer nada de positivo. Nos jogos seguintes, vais sentir uma pressão ainda maior, com medo de que algo possa acontecer. Alguns jogadores ficam afetados psicologicamente. Por exemplo, o que aconteceu em Portugal com o Sporting foi mau para os jogadores, foi mau para o clube e acho que acabou por ser mau para toda a gente.
Claro que o futebol é para ser vivido intensamente, mas faz sentido poder levar as crianças aos estádios e era uma coisa que nos jogos grandes eu não fazia, mesmo nos jogos em casa havia sempre algum receio. Aqui em Israel é diferente, a minha esposa já foi ver jogos em casa e fora com as minhas filhas. Existe rivalidade, mas consigo sair do estádio e ir com a minha família para o carro, cruzar-me com adeptos da equipa rival e não haver qualquer tipo de conflito. Pode haver uma piada se perdemos, uma boca se ganharmos, mas nada que passe para a violência ou sequer perto disso. Por exemplo, em Portugal é impensável isto acontecer, é algo a que dou muito valor aqui.
“Às vezes, sinto saudades de estar em Portugal”
Sendo que o seu percurso como jogador se iniciou no Torrense e se desenvolveu no Benfica, acompanha alguma equipa no futebol português?
O Benfica foi uma equipa que me deixou uma marca especial, é o clube do meu coração, já o disse várias vezes. Foi o clube onde estive desde os 11 anos até aos 23. Formaram-me como pessoa, como homem, e sempre que vou a Portugal quero ir ver um jogo ao estádio. Já tive uma ou duas lesões em que fiz tratamentos médicos no Benfica. Tenho uma excelente relação com as pessoas de lá e é um clube pelo qual tenho um carinho muito grande. E claro, o Torrense, sendo o clube da minha terra, vejo que o clube tem vindo a melhorar e isso deixa-me feliz, espero que consigam chegar à primeira liga em breve.
Tem em mente regressar ao campeonato português?
Nos últimos anos tem havido interesse de alguns clubes, mas as coisas não se concretizaram. Aqui também estou num clube grande que luta por títulos, que joga competições europeias, e sei que, se calhar, em Portugal nos projetos onde poderia haver interesse em mim, eu não iria lutar pelos mesmos objetivos. Isso e a parte financeira acaba por pesar um pouco nas decisões e, como também sinto no clube um carinho muito grande, isso faz-me pensar em continuar por aqui. Mas tenho contrato só até ao verão, portanto, voltar é uma das possibilidades, deixo em aberto essa parte.
Após tantos anos fora de Portugal, considera voltar num contexto pós-futebol ou tem outros planos?
É uma coisa que começo a pensar cada vez mais, apesar de sentir que tenho capacidade para continuar a jogar por mais algum tempo. A parte de ter nacionalidade israelita dá-me outro tipo de opções aqui. O clube onde estou já me disse que, caso um dia me queira retirar, irei ter um papel no clube, portanto é uma possibilidade. Se calhar está mais na minha cabeça voltar a Portugal, mas a minha família também gosta de estar aqui, especialmente as minhas filhas mais velhas. Se lhes perguntar, elas preferem ficar. Mas como já estou fora há algum tempo, às vezes sinto saudades de estar em Portugal, portanto, não faço grandes planos a longo prazo. É sempre bom ter mais do que uma opção e vamos ver o que o futuro dirá.