Ocorre-me uma ideia de Milan Kundera, em os Testamentos Traídos: a de que o romance nasceu do espírito humor e fez história na tradição europeia, sobretudo depois Cervantes ter, genialmente, inventado D. Quixote de La Mancha e o seu Sancho Pança. Um portentoso legado humorístico, dotado dessa única capacidade de dessacralizar tudo em que toca, do sagrado ao mais mundano.
Ocorre-me uma ideia de Milan Kundera, em os Testamentos Traídos: a de que o romance nasceu do espírito humor e fez história na tradição europeia, sobretudo depois Cervantes ter, genialmente, inventado D. Quixote de La Mancha e o seu Sancho Pança. Um portentoso legado humorístico, dotado dessa única capacidade de dessacralizar tudo em que toca, do sagrado ao mais mundano.
O que assistimos em Paris foi para lá de um ataque à liberdade de imprensa ou à liberdade de expressão: um golpe desferido ao coração dos valores mais fundamentais da civilização europeia, com o propósito de espalhar o medo, lançar o pânico e silenciar a possibilidade de dizermos o que queremos, de nos rimos de nós próprios, das nossas fraquezas e da nossa vaidade. Ou vacuidade, conforme queiram!
A ausência de uma evolução histórica do Islão, que nunca viveu a Revolução Industrial nem o Iluminismo – tão pouco dispõe de interlocutor único capaz de separar os bons muçulmanos de uma minoria radical – levanta um desafio de fundo à Europa: incluir, integrar e cooperar muito mais do que tem feito até aqui.
O principal perigo à estabilidade das sociedades europeias, a grande ameaça deste século XXI não passa por uma terceira Guerra Mundial fratricida – um receio que levou à fundação da União – nem reside no medo de uma invasão soviética, apesar das diatribes de Putin. É o terrorismo, com as suas mil faces dissimuladas, a sua morfologia difusa, o seu fanatismo basal que mais ameaçam o espaço europeu.
Qualquer resposta nunca passará por menos União, antes pelo contrário! Contudo, à margem do mediatismo da dor, do choque e das manifestações em Paris, nos últimos meses temos assistido a uma Europa a discutir os seus próprios alicerces, numa histeria auto-destrutiva: acabar com Schengen? Pode a Grécia sair do Euro? Grã-Bretanha fora da União? Deve o BCE continuar a ajudar aos países endividados? E por aí fora, numa crescente clivagem entre Norte e Sul, ricos e remediados.
Os ataques em Paris, e o que se sucedeu, depois, na Bélgica, sublinham ainda que a Europa pouco ou nada avançou em matéria de integração de segurança, onde cada Estado trabalha de forma individual e pouco cooperativa. Uma pecha flagrante quando se enfrenta o terrorismo, a trabalhar em rede e de forma celular.
Numa Europa dividida e das dívidas, só uma maior cooperação entre Estados poderá dar uma resposta ao que aconteceu no Charlie Hebdo. E salvaguardar o futuro, sem extremismos, sejam eles religiosos ou oriundos de uma extrema direita em ascensão.
Pedro Pinto *
* Pedro Pinto é Mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional, Jornalista e Professor na Universidade Autónoma de Lisboa