Gestora de formação com mais de 20 anos de experiência enquanto analista de projetos empresariais no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), Mafalda Marçano é apaixonada por empreendedorismo ou pela arte de fazer acontecer. Recebeu o grau de mestre em Análise de Investimento, pelo Instituto Superior de Gestão, com a dissertação “Desemprego e Empreendedorismo: que Relação?”
Michael Gerber, no livro “O Mito Empreendedor”, define empreendedor como o que lida melhor com o desconhecido, “transformando possibilidades em probabilidades e caos em harmonia”. A quem se deve o reconhecimento do conceito de empreendedor?
De forma generalizada, a literatura refere o reconhecimento do conceito de empreendedor a Richard Cantillon, mas nunca precisa exatamente a data em que podemos dizer que usou o termo. Os meios de comunicação não eram o que são hoje, portanto, ter essa certeza absoluta não é fácil. O que se pode dizer é que se trata de um economista franco irlandês, autor do ensaio “Essai sur la Nature du Commerce en Général”, publicado em França por volta de 1755. Por isso, poderá fazer-se uma relação com o uso do termo na altura da publicação desse documento.
Como tem evoluído o conceito de empreendedor?
Sem se ir muito ao detalhe, o termo aparece dito em francês como entrepreneur e veio a generalizar-se na língua francesa através de Jean Baptiste Say que o popularizou. Posteriormente, Joseph Schumpeter, um dos maiores economistas do século XX, introduziu na teoria do empreendedorismo a noção de inovação. Portanto, além desse sentido incluiu a noção de risco, onde os empreendedores e os capitalistas partilhavam riscos. Portanto, não é só quem faz, quem inventa ou quem é criativo, mas também quem aposta nessa ideia. Para este economista, os indivíduos que detêm negócios e assumem riscos sobre o seu capital com vista à obtenção do lucro, mas que não inovam, são os capitalistas. Hoje, tem uma conotação um pouco diferente. Para ele, o processo de descoberta e de inovação é como um processo de destruição criativa que resulta na criação de novos métodos de produção, novos produtos e novos mercados. Portanto, Schumpeter considerou que a inovação criada pelo empreendedor representa uma renovação do sistema económico.
Acabou por criar um novo equilíbrio?
Exatamente. Salientou algo que não tinha nome na economia e gerou alguma mudança. Mais tarde, aparece Kirzner, também muito falado por causa da Escola Austríaca de Economia, que veio convergir com as teorias de Schumpeter, e considerou necessário acrescentar ao empreendedor determinadas características de personalidade ou de competências especiais num indivíduo. Peter Drucker, também um dos maiores economistas do nosso tempo, na sua publicação “Innovation and Entrepreneurship” argumenta que os empreendedores não têm propriamente que provocar mudanças. Portanto, não têm que ser propriamente criativos ou inovadores, têm que explorar uma oportunidade que apareça e com essa oportunidade criar uma mudança. Defendeu também que o empreendedorismo inovador é o principal condutor de mudanças na economia e que a capacidade de arriscar distingue o desempenho de um empreendedor.
“O que nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?”
Já que fala em oportunidades e mudanças, a história da humanidade está repleta de descobertas e de invenções. Significa que o ser humano é empreendedor por natureza?
Boa questão! Se fizer uma pesquisa no Google vai encontrar uma coisa curiosa de que agora todos falam, principalmente na literatura brasileira. Se o indivíduo nasce empreendedor ou aprende a ser? Portanto, não vamos entrar nessa teoria porque acho que isso é um bocado: o que nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?
Poderá então ser uma capacidade inata?
Claro. Portanto, nesse sentido, acredito que sim. Se analisarmos ao longo dos tempos, o espírito da descoberta e a vontade de explorar foi o que transformou a nossa espécie. Nada caiu do céu. Há muitos anos, o fogo deu-nos a proteção contra os predadores e com essas chamas construímos materiais fortes e muito resistentes. Foi assim que o ser humano conseguiu manter a espécie na Terra e conseguiu evoluir. Hoje, criamos materiais e matérias muito pequenas e tão leves que fomos capazes de construir um novo mundo da tecnologia e da Era Digital para andar com um escritório que pesa 10 gramas. Por outro lado, arriscámos a vida a procurar novas fronteiras e, para isso, tivemos que adquirir conhecimento, prolongar a qualidade de vida, tivemos de inovar, empreender e criar novos modos de pensar.
Na sua opinião, a decisão de empreender decorre de aptidões pessoais, de fatores externos ou de um somatório de todos estes fatores?
É uma pergunta muito profunda e seria muito longo se fosse citar as divergências de opiniões que há sobre as aptidões. A literatura diz que há influências pessoais, fatores externos ambientais e sociais, que provocam um papel fundamental na implementação de uma ideia de negócio. Podemos dizer que as motivações se dividem por internas ou externas. As motivações internas, associadas ao empreendedorismo por oportunidade, remetem para a prossecução voluntária de uma oportunidade e de um objetivo. Trata-se de uma pessoa que vê ali um objetivo e atira tudo ao ar, independentemente da sua condição ou da sua posição social. Depois, existem os indivíduos que estão na situação de ausência de alguma oportunidade e que acabam por recorrer ao empreendedorismo porque não têm outra possibilidade, e é a isso que se chama empreendedorismo por necessidade. É, nesta sequência, que muitos autores consideram os desempregados como empreendedores por necessidade.
Ou seja, pela ausência de oportunidades procuram aqui uma outra oportunidade.
Exatamente, e vou mais longe. Antigamente, o desempregado empreendedor era visto como um empreendedorismo menor. Até me custava, quando ia a alguns seminários e verificava um bocado esta postura de outras pessoas e de outras instituições de renome.
“O pleno emprego produtivo e livremente escolhido”
A Direção-Geral das Atividades Económicas (DGAE) considera que o empreendedorismo representa uma componente fundamental numa economia de mercado globalizada e competitiva, enquanto impulsionador do emprego e do crescimento económico. Na sua opinião, como é que Portugal inclui a temática do empreendedorismo nas políticas de emprego?
Portugal, como qualquer outro país da Europa, procura enquadrar a sua política de emprego de acordo com o pleno emprego produtivo e livremente escolhido, tal como estabelecido na convenção número 122 da Organização Internacional do Trabalho, que tem que respeitar todas as estratégias adoptadas na União Europeia. Nesta linha de orientação, as políticas ativas de emprego afirmam-se hoje no mercado e exigem ao desempregado que procure ativamente emprego ou que participe em programas de formação e emprego.
A Base de Dados de Portugal Contemporâneo (PORDATA) refere que só 54,4% das empresas em Portugal conseguem manter-se após 24 meses de existência. Os resultados que obteve na sua investigação de mestrado acompanham esta taxa de sobrevivência?
Felizmente não e este foi o resultado da pesquisa mais surpreendente. Fizemos uma avaliação estudando todas as empresas que conseguiam manter-se no ativo por um período superior a três anos. Fomos mais longe, fizemos isto com um objetivo: ver quantas empresas ultrapassaram os três anos de atividade. Fomos verificar quantas eram e deu-nos o valor de 88%. A 24 meses, o valor se calhar ainda era superior. Claro que há aqui uma condicionante que este programa obriga logo à partida: as pessoas que criam estes negócios têm obrigatoriamente que manter a empresa durante três anos. O que gostava de fazer era verificar em que estado é que as empresas se encontram lideradas por aqueles que se mantiveram mais de três anos.
Então as pessoas desempregadas podem estar interessadas em criar uma ideia de negócio, mas é necessário a existência de condições favoráveis ao seu desenvolvimento. Existem mecanismos adequados para apoiar os desempregados a criarem as suas iniciativas empreendedoras?
Quase que me arrisco a dizer que será muito injusto se alguém disser o contrário, porque, de facto, o empreendedorismo entrou na ordem do dia e os meios de comunicação assim o fazem, a informação está generalizada com a internet e também há um grande apoio do Estado. Há muitos gabinetes de empreendedorismo, há muitas agências de desenvolvimento, há incubadoras, há ninhos de empresas, programas específicos de financiamento a fundos perdidos, há créditos bonificados, enfim, há imensa coisa.
“É desta que vou fazer o que sempre quis fazer”
Que conselhos pode dar a um desempregado que pretende criar um negócio?
Bem, através da minha investigação posso deduzir e concluir que é possível encontrar oportunidades em áreas que o desempregado conhece bem. Com o estudo que fiz, são mais as áreas em que há um saber adquirido que faz com que haja maior sucesso no desenvolvimento dessas atividades. Esse saber pode ter vindo através de uma grande experiência profissional, que tanto pode estar relacionada com uma nova formação técnica ou académica, como pode estar relacionada com uma prática de hobbies ou de formação adquirida. Por exemplo, visto que estes projetos abarcam aqui a linha de Cascais e Oeiras e das praias, já tive vários projetos em que as pessoas tinham como hobbies fazer surf e outras atividades. Depois de ficarem desempregados, até gerentes bancários optaram por largar todo esse mundo e acabaram por criar uma empresa através de um hobby que faziam em paralelo.
Até acaba por ser um incentivo, uma pessoa criar o seu negócio em algo que gosta.
Exatamente. Muitas vezes, eles até dizem a seguinte frase: “É desta que vou fazer o que sempre quis fazer e cumprir o meu sonho.” No entanto, e atenção, é bom dizer que nem todas as pessoas têm o “bichinho” de querer empreender e nem devem ser pressionadas para tal, porque alguma coisa pode correr mal nesse percurso. Para as que têm essa motivação e essa vontade, recomendo um exercício simples: com uma folha de papel em branco, devem identificar bem a necessidade que estão a tentar colmatar e os recursos que são necessários. Nestes recursos entram as competências pessoais do próprio indivíduo e o capital de investimento.
“A educação é o maior bem que qualquer país pode ter”
A Organização Internacional do Trabalho, no Relatório VI – Políticas de Emprego para a Justiça Social e para uma Globalização Justa, coloca a educação e as competências em lugar de destaque, ao referir que uma educação ampla e com competências alargadas aumentam a capacidade para inovar, para adotar novas tecnologias e agilizar as mudanças tecnológicas dos mercados. De que forma a educação pode contribuir para tornar Portugal um país mais competitivo e empreendedor?
A educação é o maior bem que qualquer país pode ter e qualquer organização pode ter. As pequenas e médias empresas em Portugal representam 99,9% do tecido empresarial português. Nessa décima estão os grandes grupos de que toda a gente fala. As empresas, hoje em dia, para se tornarem mais flexíveis, para diminuírem os custos fixos, têm redistribuído o trabalho por unidades menores e os trabalhadores, em vez de serem um custo ao trabalharem por conta de outrem, são colaboradores pagos por serviços prestados e passam a ser o chamado “profissional liberal”. Hoje, na era digital, os centros de trabalho passaram para coworks. Agora, com a pandemia, os escritórios foram transferidos para os ecrãs dos portáteis e dos smartphones.