Começou por ser uma fábrica de fiação e tecidos, depois foi a vez da Companhia Industrial de Portugal, da Tipografia Anuário e da Gráfica Mirandela ocuparem o local. Hoje, tem o nome de Lx Factory, um pequeno mundo criativo cheio de experiências para oferecer a quem por lá passa.
É no coração de Alcântara que se encontra um dos maiores pontos turísticos de Lisboa. Aqui, há uma entrada apelativa com um nome, Lx Factory, que à noite brilha. Mais à frente, uma pequena banca de flores coloridas dentro de uma antiga carrinha dos anos 70 e um café chamado Borogodó.
Na rua principal, uma grande agitação. Paredes cheias de cor, pinturas e grafittis que encantam turistas e famílias com câmaras fotográficas ao peito. Entram e saem dos edifícios que hoje são pequenas lojas de comércio, cafés e restaurantes. Quem entra neste espaço fica deslumbrado com o estilo industrial e artístico, o aspeto inacabado e degradado dos edifícios. As máquinas industriais deixadas pelos antigos inquilinos dão todo o charme aos negócios que fazem parte deste mundo. É um espaço com história. Mas que muitos não conhecem.
Mirandela, a gráfica com a maior rotativa de jornais do mundo
Nos anos 60, Valentim Morais, natural de Oliveira do Hospital, funda uma pequena empresa, a Mirandela, localizada na Travessa Ferragial (Cais Sodré). Nessa altura, apenas se focava na tipografia e no acabamento de jornais. Aos poucos, foi crescendo. Em 1987, deslocou-se para Alcântara, onde se expandiu. Tornou-se na empresa gráfica com a maior rotativa de jornais do mundo. A Mirandela foi responsável pela impressão diária de inúmeros jornais que circulam hoje. “Nasceram lá muitos jornais. Fizemos o Expresso, A Bola, O Dia, Encosta do Sol, O Diabo, 24 Horas e o PÚBLICO. Foram tantos”, afirma Osvaldo Monteiro, antigo analista de recursos humanos da empresa.
Carolina Abel trabalhou na Mirandela desde 1972. Recorda com orgulho a importância e o papel que a gráfica teve no processo de democratização: “adquiríamos muitos trabalhos quando foi o 25 de abril. Como era a única gráfica que tinha rotativas, fizemos tudo o que era jornais revolucionários. Ele [Valentim Morais] não excluía nada”.
Era uma empresa com um ambiente “excecional, uma autêntica família”, diz Osvaldo. Com Valentim Morais, o ambiente era “melhor ainda. Era um senhor amigo do seu amigo. Primeiro, vinham os trabalhadores, depois o resto. Nunca deixou os funcionários sem ordenado. Nem na altura do 25 de abril em que as empresas estiveram aflitas”, recorda Osvaldo, emocionado.
Mas tudo mudou. Em 2005, a empresa compra uma máquina que imprimia dois jornais em simultâneo com 64 páginas a cores. “A máquina parecia um navio, era enorme, com vários pisos. Era o nosso orgulho. Ninguém tinha”, refere, com grande entusiasmo, Fernanda Caetano, secretária do administrador José Morais. Devido ao tamanho da rotativa, tiveram de sair de Alcântara e instalar-se em Loures. Em 2012, a empresa acabou por encerrar devido a alterações financeiras. “Foi triste sair de Alcântara, eu trabalhava lá desde 1971. Agora, entro ali e fico triste”, lamenta Fernanda.
Uma livraria e restaurante com uma história por detrás
Na rua principal, um dos lugares mais famosos é a livraria Ler Devagar, espaço amplo, repleto de livros do chão ao teto. A estrutura “monstruosa” de ferro que ocupa todo o espaço da loja é um dos vestígios deixados e a grande admiração do público. Ao lado, o restaurante Malaca Too partilha partes desta estrutura. Um corredor com uma arquitetura industrial, mesas distribuídas entre máquinas laranjas que envolvem todo o local despertam a curiosidade. Aqui, imprimia-se todo o tipo de jornais. “O papel entrava em rolos e havia um funcionário que andava pelos corredores da máquina a meter papel até chegar à frente, onde o jornal saía, já dobrado, para ser expedido”, explica Osvaldo. Antes disso, o trabalho era distribuído e preparado pelas várias secções de composição do edifício principal.
Agora, vê-se um edifício sem cor, alto, com quatro andares, aspeto degradado com se tivesse sido abandonado. Quem entra não deixa de reparar nas várias entradas, sendo uma delas um buraco feito “na parede do edifício para uma máquina de impressão poder entrar”, relembra a secretária.
Por dentro, cada andar tem um estilo diferente. Paredes coloridas, pinturas de um lado e do outro, e máquinas industriais dispersas pelos corredores compridos e pouco movimentados de cada andar. No rés de chão, pequenas lojas de comércio, onde pessoas entram e saem com sacos na mão. Neste piso estavam concentradas todas as tipografias em offset, assim como as rotativas comerciais. “Essa parte era horrorosa”, diz Fernanda, referindo ser o espaço da serralharia e da carpintaria. Aqui faziam-se vários trabalhos de picote e recorte, mecânicos e expedição para a rua. “Também tínhamos máquinas de dobra e de agrafamento, onde fazíamos a Deco Proteste, Teste Saúde, Dinheiro e Direitos, revistas do Diário de Notícias e suplementos do PÚBLICO”, conta Carolina. Acrescenta ainda que “aquilo que hoje são lojas e restaurantes era um espaço com filas enormes de 200 carrinhas e camiões para fazer a distribuição”.
Logo à subida das escadas, do lado direito, o corredor dos serviços administrativos. Aí estavam os recursos humanos, onde Osvaldo trabalhou durante anos, e o secretariado, ocupado por Fernanda. “Gostei imenso de trabalhar lá. Entro agora e fico com nostalgia. Vou sempre ver o meu gabinete no primeiro piso”, conta Fernanda, um pouco desiludida. Ao fundo do corredor estava a coordenação e produção do PrePress e a fotocomposição.
No segundo piso, existia a zona de fotogravura. “Era através de películas de filme que eram reveladas pelos líquidos e, depois, eram montadas em plano cor sobre cor, para fazer a passagem à chapa”, explica Fernanda. Era assim o processo de revelação de fotografias.
No terceiro andar, a encadernação, departamento do qual Carolina fazia parte como chefe de acabamento. “Era onde estavam as máquinas da cola, da dobra, das guilhotinas e máquinas de capa dura”, relembra Carolina. O acabamento de livros e revistas era feito ali e no rés de chão. No corredor foi deixada uma máquina ferrugenta, pesada, que passa despercebida aos olhos de quem por lá passa. “Esta era a prensa. Fazíamos muitos livros de Os Lusíadas e era aí que prensávamos esses livros todos”, descreve a funcionária.
No último andar, o refeitório. “Lá em cima, aquilo era a nossa alegria. Quando comíamos aqueles carapaus enormes que saíam fora do prato! Era a vista que fazia com que pensássemos que estávamos noutro restaurante”, refere Fernanda. “Podíamos ir cheios de stress que chegávamos lá relaxados. Bastava olhar para o rio”, diz Carolina com alegria. Hoje, os corredores compridos são escritórios, empresas, ateliers com cursos e workshops, exposições e pequenas lojas vintage.
As fábricas de experiências
Nas traseiras, dois armazéns diferentes são o foco de atenção de muitos. Um mais pequeno, cheio de pinturas e figuras desenhadas pelos artistas que por lá passam. É chamado de Fábrica L e encontra-se fechado à espera de eventos e festas que possam ocupar o espaço. Era neste armazém que se imprimia os suplementos do Expresso, os folhetos grandes das notícias e os livros de exportação.
Ao lado, um armazém com o dobro do tamanho, com um ar desgastado e paredes escuras da humidade. É a Fábrica XL. Tem as portas abertas para o LX Market nos dias de chuva, uma feira que acontece todos os domingos. Por dentro, é um espaço amplo com estruturas de ferro no meio que sustentam o telhado. Mesas com roupa vintage e de marcas portuguesas, jóias feitas à mão, artesanato e produtos orgânicos e biológicos enchem esta fábrica, dando-lhe uma cor diferente. Osvaldo, que conhecia todos os cantos, conta que ali havia duas rotativas, “uma máquina a quatro cores de um lado e uma a duas cores do outro lado”, que imprimia folhetos de supermercado e coisas muito grandes. O ambiente industrial ajuda a pensar, produzir e criar ideias ‘fora da caixa’, assim como apresenta novidades e oferece experiências únicas.