O que estava combinado para ser uma conversa de café transformou-se numa espécie de confissão no refúgio do jornalista João Miguel Tavares. Numa casa onde o que não falta são livros, conversou-se acerca da sua visão como defensor da liberdade de expressão no país do “respeitinho”. Apesar de levar “uma vida muito pacata”, confessa que isso só lhe traz vantagens, pois consegue escrever com maior liberdade sobre as pessoas.
João Miguel Tavares nasceu em Portalegre. Tem 43 anos e é pai de quatro crianças. Motivado pelo amor à escrita, dedicou três dos seus livros aos filhos. Habituado a levar uma vida calma e sossegada diz que se farta “muito de putos” e nem sempre é fácil. Espera ver o dia em que comecem a “ganhar vida própria e a formarem a sua personalidade”.
No seu blogue, diz que estudou Engenharia Química no Técnico durante dois anos e meio “e, provavelmente, ainda estaria neste momento a cursá-la, se não tivesse tido a excelente ideia de me mudar para Ciências da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa”. O que o levou a desistir do curso e a interessar-se por uma área tão diferente?
Na verdade, sempre me interessei pelas Ciências da Comunicação. É muito antigo o meu interesse por jornais e por ler. Isso tem a ver com o Portugal dos anos 80 em que surgiram algumas publicações, como foi o caso do Independente que sempre gostei de ler e de acompanhar. Nessa altura, a linguagem que o Independente trouxe para Portugal foi uma escrita marcada pelo humor anglo-saxónico, uma mistura do humor inteligente e com graça, sem ser estúpido e, ao mesmo tempo, sofisticado. E gostava muito daquela escrita… sentia-me muito identificado.
No início dos anos 90, nasceu o Público e a revista Kapa que, mais uma vez, eram projetos jornalísticos muito diferentes. Tudo isso fazia com que eu, apesar de estudante de Engenharia Química, estivesse bastante interessado por jornais. O jornalismo era uma área que me apaixonava imenso. Quando fui para a faculdade, tinha muito essas dúvidas metafísicas. Nunca tive uma vocação clara.
Quando fui para Engenharia Química no Técnico, odiei aquilo e estava a ser um péssimo aluno na faculdade… Acho que se tivesse continuado, era daqueles que faziam parte das tunas a cantar alguma coisa foleira. [risos] Não aguentava aquilo e fui fazer exame de Filosofia e Português para entrar em Ciências da Comunicação.
Identidade na escrita
Trabalhou como colunista no Correio da Manhã (CM), em 2010. Três anos mais tarde, foi para o Público. Como escreve, os assuntos que trata e a forma como se dirige aos leitores dependem do meio de comunicação em que trabalha? Escreve-se de forma diferente no CM e no Público?
A escrita é influenciada por muitas coisas, mas sobretudo é influenciada pelo espaço. É radicalmente diferente escrever um texto de mil caracteres, 2.000 caracteres ou 3.500 caracteres, como escrevo agora. E isso faz com que o espaço, em primeiro lugar, seja uma limitação. No entanto, quero acreditar que quem lesse os textos do CM e leia os do Público note que é a mesma pessoa. Pode é haver uma atenção ao público do jornal. Admito que o colunista é sempre o mesmo e admito que haja alterações de pormenor, mas diria que essas alterações são mais ditadas pelo espaço do que pelo sítio onde se escreve. E o que se passa muitas vezes é que, num jornal de referência, tem-se mais espaço para escrever do que no jornal mais popular, como é o caso do CM. Lá, os meus textos eram mais curtos e mais fragmentados. Isso faz com que o estilo tenha necessariamente de ser diferente.
Sabor a vitória
Em 2009, com a polémica do processo José Sócrates, Pedro Marques Lopes escreveu um artigo, no Diário de Notícias, onde dizia que tudo aquilo que JMT acha não pode ser contestado: “Ele acha que pode achar tudo o que lhe vem à cabeça e torná-lo público.” Podemos então afirmar que a palavra “censura” não faz parte do seu vocabulário?
A palavra censura, definitivamente, não faz parte do meu vocabulário. Essa palavra especificamente, o que não quer dizer que não tenho cuidado com aquilo que escrevo ou que ando a escrever. Nunca escrevo coisas mal fundamentadas e tento evitar ao máximo que isso aconteça… mas isso não quer dizer que não cometa erros.
Aquilo que não faço, e que o Pedro Marques Lopes faz muito, é estar numa espécie de “meias tintas” em que nem é carne nem é peixe, ou então ter uma espécie de agenda secreta que nunca é verdadeiramente revelada. E a minha agenda é só mesmo aquilo que penso.
Eu levo uma vida relativamente pacata. Esta questão da vida familiar, às vezes, é mais importante do que parece. Em termos familiares, vivo uma vida muito fechada nela própria e, portanto, frequento poucos meios lisboetas da moda e não saio à noite. Isso tem a grande vantagem de fazer com que conheça poucas pessoas e, em Portugal, isso é bom. É verdade que, à medida que envelhecemos, acabamos por conhecer gente pelo simples processo de envelhecer. E quando gostamos de algumas pessoas é sempre mais difícil escrever de forma aberta sobre elas… achamos que, se calhar, estamos a ser exagerados e temos de ser mais ponderados com os adjetivos que usamos. Acho que quem escreve textos de opinião tem grandes vantagens em estar fechado em casa e não conhecer ninguém, porque isso dá-lhe muito mais liberdade para escrever sobre elas.
O Pedro Marques Lopes é alguém que, nesse aspeto, é o oposto de mim… até pela sua própria presença mediática que, às vezes, me irrita um bocado. As frases de 2009 demonstram que somos duas pessoas bastante diferentes. Eu lutei, ferreamente, durante muitos anos, para tentar demonstrar que José Sócrates era um tipo altamente duvidoso e que estava a fazer muito mal ao país. Em contrapartida, houve muita gente, como Pedro Marques Lopes, que sempre o defenderam… uns de forma mais clara e outros de forma mais encapotada, mas sempre sendo muito claros na sua defesa. E acho que tenho todo o conforto em afirmar que os anos me deram mais razão a mim do que a ele.
Por falar no ex-primeiro-ministro, não estará hoje agradecido a José Sócrates por lhe ser instaurado aquele processo, visto que foi vincado publicamente e ainda aumentou a sua notoriedade e importância como um dos mais influentes colunistas portugueses?
Certo. Sem dúvida que devo isso a José Sócrates. Quando ele me processou, pouca gente sabia quem eu era, foi graças a esse processo que acabei nas páginas dos jornais. Aliás, foi depois disso que acabei por ir para o CM. Portanto, sim, é verdade que ele aumentou bastante o meu preço no mercado e, em relação a isso, tenho essa dívida ao ex-primeiro-ministro. Ele teve a simpatia de me processar, um processo completamente idiota, que acabou por perder, mas que foi muito vantajoso para mim, porque é evidente que um colunista vive da notoriedade pública e ele serviu para a aumentar. Nesse aspeto particular estou muito grato ao ex-primeiro-ministro.
Para além de Sócrates, foi processado por Alberto João Jardim. No entanto, conseguiu ganhar ambos os processos. Considera que isso fortaleceu o seu poder de resistência à opressão e o medo de incomodar fontes?
Nesse caso, não é particularmente fontes. O problema aqui não é serem fontes, é serem duas pessoas muito poderosas. Na altura, um era primeiro-ministro e o outro era o “todo poderoso”, presidente do Governo Regional da Madeira. Costumo dizer na brincadeira que só o facto de ter sido processado pelo Alberto João Jardim e pelo José Sócrates fazia com que eu merecesse uma condecoração no 10 de junho.
Foram os únicos processos que tive até agora e, tendo em conta as duas personalidades, tenho muito orgulho deles, sobretudo, por serem duas pessoas bastante tenebrosas que fizeram, e ainda fazem, muito mal à democracia.
“O respeitinho não é bonito”
No mesmo artigo de 2009, Pedro Marques Lopes disse “devemos, de facto, viver em sociedades diferentes. Eu vivo numa em que os que mais acesso têm aos media se queixam de ser a sua liberdade cerceada, enquanto dizem o que muito bem querem. Aliás, é patente o medo em que o JMT vive”. Considera-se um defensor da liberdade de expressão?
Sim, claro. Mas isso é a nossa obrigação enquanto cidadãos. A minha coluna chama-se “O respeitinho não é bonito” e eu acredito muito nisso. Acho que o “respeitinho” não é bonito. É bonito nós termos respeito pelas pessoas, mas não é bonito termos “respeitinho” pelas pessoas. E nós vivemos num país do “respeitinho” e isso tem a ver com o tamanho do nosso Estado. Essa é uma das razões pelas quais me considero um liberal e gosto de ter um Estado mais curto. É uma forma de conseguir ter uma sociedade mais livre. O que acontece em Portugal é que sempre tivemos um país muito dependente do Estado… e isso faz com que essas cadeias de subordinação e cadeias hierárquicas sejam muito visíveis. Isso faz com que, muitas vezes, haja falta de liberdade. As pessoas não falam tão livremente quanto devem… e no tempo de Sócrates isso era particularmente visível. Como é que uma pessoa com claramente tiques autoritários, um tipo com muita energia, conseguiu açambarcar um grande poder e, de repente, começou a tentar lançar um manto de silêncio sobre o país e muita gente foi atrás, como Pedro Marques Lopes… e isso faz-me impressão. Acho que são pessoas que têm um grave problema com o exercício da liberdade. É preciso uma certa irreverência. Nós precisamos de dizer aquilo que achamos que é justo… e dizê-lo em liberdade e no tom com que nos apetece dizê-lo.
É considerado uma pessoa bastante polémica, que não teme falar sobre assuntos ditos “sensíveis”. Quando escreve este tipo de textos e repara que existe uma falta de civismo por parte das pessoas que rejeitam a sua opinião, considera que isso traduz a falta de cultura democrática?
Não… as pessoas em Portugal, de forma geral, são muito simpáticas. A agressividade, geralmente, fica para as redes sociais e nos comentários. Há gente muito extremada e são as redes sociais e a Internet que potenciam isso. Há quem dramatize muito isso, mas eu não dramatizo… aliás, gosto sempre de citar uma frase do antigo presidente Truman. Ele dizia “se não consegues suportar o calor, não entres na cozinha”, e eu acho que isso é totalmente verdade. Se não suportas que digam mal de ti, não vás escrever para os jornais. Suportar isso faz parte do trabalho.
Na verdade, o que valorizo é quando as pessoas dizem que sou muito corajoso. Às vezes, quando escrevo alguns textos a falar de pessoas importantes ou a denunciar alguma situação, há pessoas que dizem que sou muito corajoso ou, então, qualquer dia, vou ser posto na rua, e isso é péssimo sinal. Não é preciso coragem nenhuma. Não vivemos numa ditadura e temos liberdade de expressão. [risos] Não é suposto estar a ser corajoso para escrever o que me apetece no jornal. E o facto de as pessoas acharem isso é mau sinal.
Num dos seus mais recentes artigos, fala sobre o escrutínio do jornalismo português. Considera que o jornalismo português carateriza-se pela falta de escrutínio?
Sem dúvida. De um modo geral, a classe política portuguesa e o próprio jornalismo português é pouco escrutinado e isso vê-se imenso quando comparamos o nosso tipo de jornalismo com o jornalismo de países como Inglaterra e EUA. Quando se fala sobre assuntos políticos, os jornalistas fazem o trabalho de escrutínio. As pessoas conhecem a vida dos políticos de uma ponta à outra. Os jornalistas são muito agressivos na procura dessa verdade. E em Portugal isso não existe… ninguém faz esse trabalho. Há sempre um perfil sobre os políticos, mas nunca passa disso. Muita informação não nos é passada porque não existe esse hábito de escrutinar. Já Sócrates tinha uma vida obscura antes de ter sido eleito, mas praticamente ninguém sabia disso. Há grandes falhas no jornalismo português.
Violência na procura da verdade
Visto que a imprensa “mainstream” esteve toda contra Donald Trump desde o primeiro minuto, considera que os media ainda têm por função principal “ajudar os cidadãos a tomarem decisões para serem livres e se autogovernarem”? Ainda são o quarto-poder? E falo em particular dos media tradicionais…
Eu acho que são e prezo muito essa função do “watchdog”. Acho que é uma das funções mais nobres que podemos ter na democracia. Essa função de ser o poder que escrutina os outros é algo que não envelhece. É algo que é próprio da democracia e que faz parte estruturante do nosso trabalho.
Somos o quarto-poder. E acho que é um poder importante e muito nobre que, hoje, é prejudicado por questões financeiras. Ainda não foi encontrado um modelo financeiro que torne o negócio viável como era no passado. E, como sempre acontece em meios muito empobrecidos, a qualidade do jornalismo diminui, assim como a qualidade do escrutínio. Esse foi um desafio que os media digitais colocaram, o qual não está, ainda, totalmente ultrapassado. Os jornais precisam de encontrar uma maneira de ganharem dinheiro. Ou então, precisamos de “mudar a loja” e voltarmos a uma mais próxima do século XIX, em que os jornais faziam esse escrutínio, mas de forma mais ideologicamente posicionada. Assim, há sempre qualquer coisa que se perde. É sempre mais interessante quando temos meios que são financeiramente estáveis e que dão dinheiro… e esse lucro traz maior liberdade às pessoas. É para isso que o dinheiro serve e, faltando esse dinheiro na Comunicação Social, a liberdade desta diminui.
Nas peças jornalísticas que escreve há sempre um tom sarcástico e crítico. Não só critica políticos, partidos e regimes, como tem sempre algo a apontar sobre os mais diversos assuntos. No entanto, afirma-se otimista. O que significa tal contradição?
Não acho que seja uma contradição. [risos] Isso tem a ver com o papel do jornalismo. Há pessoas que perguntam porque é que não dou as boas notícias e repondo sempre que o jornalismo não serve para dar as boas notícias… para isso servem os livros de autoajuda. Portanto, não uso uma coluna de opinião para elogiar as pessoas de quem gosto. Mas é obvio que há casos em que se justifica elogiar coisas bem feitas. Às vezes, há uma falta de otimismo. Nós próprios quase que nos proibimos de nos alegrarmos com as boas notícias… Agora houve um tipo decente que ganhou a uma política indecente e acho que isso deve ser celebrado. No entanto, na maior parte do tempo, a função do jornalista é questionar e denunciar tudo aquilo que está errado.
Acho que o otimismo é uma qualidade minha. Acredito que as coisas têm melhorado e acredito no progresso. Há uns dias, estive a conversar com um amigo sobre o século XIX e os grandes escritores, um período onde as pessoas se podiam dedicar 100% ao estudo e à literatura e, hoje, isso já não é possível. Mas na altura não havia dentistas… e ninguém quer viver num tempo sem anestesia. E, a brincar, dizíamos que íamos recuar no tempo, mas onde já existam dentistas para curar a dor insuportável de uma cárie. Uma dor que, hoje, ninguém conhece. É isso que significa o progresso, é ter dentistas! [risos]
Família como invenção
Publicou um livro de crónicas familiares, “Os Homens Precisam de Mimo”, e três livros infantis, “A Crise Explicada às Crianças”, “Uma Baleia no Quarto” e “O Pai Mais Horrível do Mundo”. Neles realça a importância que a família tem para si. Como lida com o desafio de ser pai de quatro crianças e ser jornalista?
Às vezes, é complicado. Usamos os nossos filhos, também, como desculpa das nossas incapacidades. Às vezes, pensamos “se não tivesse quatro filhos, nesta altura já teria um Prémio Nobel” e isso é completamente ridículo. Provavelmente se não tivesses quatro filhos, estarias muito pior daquilo que estás hoje… como podes imaginar, para alguém como eu, que gosta de estar sozinho e de ler sem que ninguém me chateie, faz com que nem sempre seja fácil. Há uma frase que gosto muito de citar de um filme chamado “Lost in Translation”. A Scarlett Johansson começa por dizer que “no dia em que o teu primeiro filho nasce, a tua vida acaba como tu a conheceste até aí”, o que para mim é totalmente verdade. Mas eles depois começam a crescer e tornam-se pessoas mais adoráveis, nas quais tens mais orgulho. É uma dinâmica muito complicada, no sentido em que pensas “estou farto de putos”, e eu farto-me muito. Eu gosto mais dos miúdos quando são crescidos porque é sempre mais deslumbrante vê-los começarem a pensar, a crescer, a ganharem vida própria e a formarem a sua própria personalidade… e isso é muito enriquecedor. Acredito que a família é importante para qualquer pessoa e, quando não o é, significa que essa pessoa não está bem. A família é uma grande invenção. [risos]