Realizador de Ice Merchants, curta-metragem que obteve mais de 30 prémios e 22 nomeações, uma delas para o Óscar — o primeiro filme português a obter tamanha distinção — João Gonzalez conquistou, por mérito próprio, um lugar na Academia de Hollywood. Para além de animador e ilustrador, este portuense de 27 anos é também músico com formação clássica em piano e autor das suas próprias bandas sonoras. Nesta entrevista, fala sobre o seu percurso, das expectativas em relação ao futuro e dá ainda conta da sua visão bastante positiva acerca do cinema de animação em Portugal.
Para alguém tão jovem que começou a carreira recentemente, como se sente ao estar sujeito a toda esta visibilidade?
É um percurso um pouco atípico. Os Óscares têm um carácter mediático, que traz muita visibilidade ao nosso trabalho. Sinto que isso pode facilitar na obtenção de financiamentos para projetos futuros. No entanto, sinto que sempre tive muita sorte. Sempre estive rodeado de gente amiga, que confiava bastante no que fazia e que era muito honesta acerca do meu trabalho, isso ajudou-me a evoluir mais rápido. Obviamente, é uma sensação muito gratificante termos o nosso trabalho reconhecido desta forma.
Considera que, de alguma forma, esta visibilidade tem causado alterações no seu processo criativo?
Tento ao máximo que não crie, porque obviamente há gente a dizer “como é que vai ser para o próximo Óscar”? Não faço a mínima ideia se o próximo filme vai ser nomeado para os Óscares. Provavelmente não vai ser. A única coisa que sei é que não quero estar a fazer um filme a pensar, “será que isto é a receita perfeita para um filme nomeado outra vez?” A minha forma de fazer filmes sempre foi tentar ser o mais honesto com a minha visão original. Obviamente que agora, recebendo mais atenção, tenho que ter esse cuidado de não deixar que a validação exterior influencie a minha visão artística e aquilo que me faz querer fazer filmes. Apesar de obviamente ser muito bem-vinda, não é o que nos move. Acima de tudo, acho que é continuar a fazer filmes que vêm do coração. Agora estou a trabalhar num novo projeto, em que estive recentemente numa residência artística em França, a Abbaye Royale de Fontevraud. Trata-se de um mosteiro real, em que durante um mês ficamos lá a escrever e a trabalhar nos nossos projetos. Foi muito bom para mim, criativamente, e consegui pôr em andamento a estrutura para a história do próximo filme.
“Até agora, gosto de falar sobre temas que me são pessoais ou que me deixam triste e me preocupam”
Não só é dotado para o cinema, como também para a ilustração e para a música. As artes são um campo que recebeu influência por parte da família ou foi algo que partiu de si?
A parte da música, sem dúvida alguma, foi o meu pai, que é pianista. Foi através dele que comecei a estudar música bastante novo. Sinto que tive, naturalmente, uma ligação maior com a mesma do que com a ilustração, sendo que o piano foi a arte que comecei a desenvolver desde cedo. A ilustração foi algo que descobri quando era miúdo nas aulas de EVT. Havia professores que consideravam que tinha algum jeito para a coisa, no entanto, nunca foi algo que levei a sério. Acho que foi muito importante no meu percurso ter feito uma pausa aos 12/13 anos da música. Geralmente é a data que os miúdos param de tocar. Sei que essa pausa custou um pouco ao meu pai, ele gostava muito que seguisse piano, no entanto, foi uma decisão que ele respeitou. Foi na faculdade que se juntaram as duas áreas. Entrei numa licenciatura em Multimédia, em que tinha um bocadinho de tudo, animação, vídeo, fotografia. Também tinha cadeiras de som e foi a partir daí que recomecei a tocar piano.Enquanto estava a terminar a licenciatura e a ponderar só seguir piano, foi quando descobri o mundo da animação, que me permitia juntar essas duas áreas. Sinto-me mais preenchido dessa forma.
Recebeu uma bolsa de estudo da Gulbenkian para realizar o mestrado em Inglaterra. Londres já era uma cidade que tinha em mente?
Sim, sem dúvida. Na altura, queria ir para a Royal College of Art. Por duas razões, uma delas por saber que é uma faculdade de renome, mas também porque o meu sonho era seguir piano no mestrado, na Royal Collage of Music, que é exatamente ao lado da Royal Collage of Art. Esta escolha fez com que fosse possível manter o meu estudo de piano. A outra razão foi quando o meu primeiro filme (The Voyager) entrou no festival do British Film Institute. Lembro-me que estive lá uma semana em contacto com muita gente de animação, não só de Londres, mas do mundo inteiro. Confesso que inicialmente não tinha grandes expectativas, porque é supostamente a escola nº 1 de Artes e Design do mundo. Foi no fundo uma mistura entre já ter ouvido falar da faculdade e também ter recomendações diretas sobre a mesma. Acho que também queria ter a experiência de viver um tempo fora de Portugal. Mas, para mim, o mais importante, para além do ensino da escola, foi mesmo estar rodeado de pessoas de imensas nacionalidades.
Quais são os temas que mais gosta de trabalhar?
Não sei se é algo que vai mudar daqui para a frente. Até agora, gosto de falar sobre temas que me são pessoais ou que me deixam triste e me preocupam. Sejam eles de perda, como no caso de Ice Merchants, ou sobre solidão, como no caso do The Voyager. Gosto de contar essas histórias através de um véu de surrealismo. É usar o poder que a animação tem, permitindo trabalhar o surrealismo como metáfora para contar algo que nos toca na vida real. Nas duas primeiras curtas-metragens abordei distúrbios psicológicos. O The Voyager é sobre agorafobia, que era algo que sofria quando era mais novo, e o Nestor sobre o síndrome obsessivo-compulsivo que ainda tenho um bocado. É uma forma de abordar e descobrir um pouco mais sobre mim através dessa vertente que o surrealismo oferece.
“Estamos cada vez a ter mais cursos de animação com muito bons professores e com muito bons programas”
Costuma trabalhar com a técnica 2D. Já pensou realizar outro tipo de projetos ou técnicas, como stop motion, CGI ou até mesmo cinema real ou documentário?
Depende, porque acho que para qualquer realizador o nosso desafio é sempre arranjar o melhor formato para contar a história que queremos transmitir. Sinto que até agora as histórias que me vieram à cabeça funcionam melhor em formato de curta-metragem em animação 2D, sendo que é algo que dá uma liberdade estética e artesanal mais rústica, que favorece a história que quero contar. No entanto, se algum dia encontrar algo documental que queira muito falar ou até mesmo uma história que sinta que funciona melhor em imagem real é algo a explorar. A vantagem de filmar em imagem real, é conseguires captar micro expressões e acting que em animação não é possível.
Qual é a sua perspetiva relativamente ao futuro do cinema de animação em Portugal?
Estou bastante positivo acerca do cinema de animação português. Estamos cada vez a ter mais cursos de animação com muito bons professores e com muito bons programas. A animação portuguesa, principalmente autoral, tem um reconhecimento muito grande lá fora. A verdade é que quando vais a um festival de animação em qualquer outro país, toda a gente sabe que Portugal é uma potência enorme em animação. O que se tem passado nos últimos 10 anos veio cimentar isso ainda mais. Já desde antes do ano 2000 que estamos a fazer coisas que são muito reconhecidas no estrangeiro, que não têm as repercussões nos media cá em Portugal. Cada vez consideram mais o nosso país como uma referência para a animação. É uma questão de tempo até começarmos a desenvolver uma indústria mais complexa, que nos permita fazer mais projetos, incluindo longas-metragens.
Considera difícil obter financiamento para um filme de animação em Portugal?
Penso que sim. Em Portugal, normalmente o ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) financia até dez projetos, sendo que normalmente candidatam-se 40 e tal. É difícil, mas tento meter sempre a perspetiva comparativamente ao que está lá fora. Na realidade, Portugal é um [dos países] ou até mesmo o país do mundo que dá financiamentos de maior quantidade a curtas-metragens de animação. Não digo que seja fácil, mas no caso dos EUA não há sequer um financiamento público e mesmo em outros países a quantia não se equipara a Portugal. Em Londres, às vezes não têm nem um quinto e são muito menos os projetos que são financiados. Conheço muitos realizadores de outros países que são eles próprios a terem que financiar as suas próprias curtas-metragens.
Ice Merchants foi o primeiro filme português a ser nomeado a um Óscar. Como decorre todo o processo para que a Academia de Hollywood veja o filme?
Não podes simplesmente enviar um filme para os Óscares. Há uma série de 80 ou 90 festivais espalhados pelo mundo inteiro, são os festivais grandes de classe A e que normalmente são qualificantes a Óscar. Se o teu filme ganhar o grande prémio desse festival fica elegível para ser submetido aos Óscares. Tivemos muita sorte com o Ice Merchants, segundo o nosso estratega da campanha o filme fez um recorde em que ganhou 10 prémios que foram qualificantes a Óscar. Através desses prémios conseguimos qualificar o filme a ser elegível à long-list. Este ano, foi uma lista com cerca de 90 curtas e, a partir daí, a Academia vota para escolher uma short-list de 15. Depois há um novo voto para escolher os cinco nomeados e, no final, uma última reunião da Academia para escolher o filme vencedor.