João Ferreira é um dos nomes mais sonantes da CMTV, o canal com maior audiência no cabo. Sentado num lugar que lhe é familiar e assumindo a postura de pivot que tão bem conhece, nos estúdios da Universidade Autónoma de Lisboa descreve o seu percurso profissional e, com orgulho, fala de um novo projeto: a Autónoma TV.
Esteve na SIC, no arranque da SIC Notícias, passou pela Económica TV e, agora, encontra-se na CMTV. Quando decidiu ser jornalista?
Desde que me lembro. Na primária, tínhamos que fazer redações de temas livres e as minhas eram sobre um jornalista que estava a reportar algum acontecimento que imaginava. Também brincava em frente ao espelho, com microfone, a fingir que estava a fazer reportagens.
Como foi o início da atividade?
Cresci na Amadora, que viveu o fenómeno das rádios locais por volta dos anos 80/90. Tinham pouco raio de ação, mas algumas delas chegaram a ter muito sucesso, como a TSF. A Amadora chegou a ter nove rádios locais e muitas pessoas da minha geração, que hoje são jornalistas de televisão, de rádio e de jornais começaram nessas rádios. Tive outra particularidade: andei no liceu nacional da Amadora e fazia parte da associação de estudantes, que tinha um clube de rádio. Apesar de o edifício da rádio ser polivalente, a rádio tinha uma grelha de programação e nós levávamos tudo aquilo muito a sério.
Depois, quando tinha 16 anos, fui a Madrid com um amigo ver os U2. Na altura, as bandas com algum nome não vinham a Portugal. O concerto foi memorável. Como éramos dos poucos portugueses que tinham ido ao concerto, durante algumas semanas, eu e o meu amigo fomos a sensação da escola. As pessoas queriam saber como tinha sido e, por isso, fomos convidados para ir a algumas rádios. Quando fomos entrevistados numa dessas rádios, as pessoas de lá gostaram de nós, do nosso à vontade, da nossa naturalidade. Como o pai do meu amigo era amigo do dono da rádio, o meu amigo começou a fazer um programa da meia noite até às seis da manhã e eu, por brincadeira, comecei a ajudá-lo.
Conheci um homem fantástico, o Carlos Felipe, que era um “rádio escuta.” Na altura, as emissões de rádio eram em onda média, em FM e em onda curta, que eram as emissões internacionais. Depois existiam os rádios escutas que eram pessoas que ouviam essas emissões. Conheci esse senhor, porque ele estava a realizar um programa na RDP internacional e precisava de alguém que soubesse ler ao microfone e que soubesse escrever uma notícia minimamente. Na altura, não sabia escrever um texto jornalístico, a verdade é essa, mas convidou-me para apresentarmos o projeto. Era um programa só comigo a ler notícias, uma espécie de pivot que durante 15 minutos lia interruptamente tudo o que tinha escrito. Deu-me uma rodagem, porque ele era muito exigente. A dicção tinha que ser muito bem-feita. E ele estava-me sempre a ensinar como devia fazer.
Em 1991, entrei para a Universidade Autónoma de Lisboa e, nesse mesmo ano, tive a possibilidade de ir trabalhar para a Rádio Mais, e aí ganhei o meu primeiro ordenado. Devido a isso, adiei a universidade e fui cumprir o meu sonho de trabalhar na rádio.
Percurso profissional
Em 2000, esteve como repórter de guerra em Timor. Como foi essa experiência?
Eu não posso dizer que fui repórter de guerra, mas sim enviado especial da SIC a Timor… Passei por problemas graves. Eventualmente, poderia ter morrido. Era um ambiente difícil, mas não era bem um ambiente de guerra. Cheguei a Timor pouco tempo depois das tropas pertencentes às Nações Unidas terem entrado em Timor e devo ter sido um dos enviados especiais da SIC que mais tempo esteve em terreno. Estive três meses e foi uma experiência que mudou a minha vida. Aprendi a dar valor às coisas que realmente contam.
Quando cheguei, Díli ainda estava a arder, não havia comida, talheres, água. Não havia nada. Dormíamos em tendas de combate ou de campanha, comíamos rações de combate. As casas tinham sido todas queimadas, não havia empregos e em cada família tinha morrido ou desaparecido alguém. Mas eles estavam felizes. Umas semanas depois de lá estar, estava a fazer uma entrevista a uma senhora a quem tinha morrido alguém muito próximo. Estava a revirar a casa queimada, com um ar de felicidade, e eu perguntei o porquê de estar assim. A senhora responde-me uma coisa que nunca mais irei esquecer: “olhe, eu estou feliz porque nós alcançámos a liberdade”. Nós, que já nascemos com a liberdade e que achamos que a liberdade é uma coisa adquirida, normal e que nunca vai desaparecer (o que é mentira), temos que lutar pela liberdade todos os dias e o jornalismo é muito importante nisso. De facto, esta mulher a quem o marido ou os filhos morreram, já não me recordo, tinha a casa destruída, não tinha emprego, passava fome e estava com uma cara de felicidade porque conquistou a liberdade.
Esta experiência foi maravilhosa, até porque estive com a minha mulher, que na altura era minha namorada. Ela esteve lá durante dois meses e foi uma experiência fantástica. Sei que fiz coisas excelentes e tive exclusivos mundiais.
Escreveu um livro com base na reportagem “A agonia”. Para quando um regresso à escrita?
Não sei. Essa reportagem também foi uma coisa muito gira. Foi uma das coisas importantes da minha vida, uma das reportagens mais bonitas que fiz. Também foi a reportagem com mais audiência em Portugal. Mudou a minha vida, para melhor, felizmente ajudei a salvar uma vida. Eu, a minha mulher, o Marcelo Aranda, que foi o repórter que me ajudou, e o João Goulão, na altura do Instituto da Droga e da Toxicodependência.
Fiz a reportagem com um rapaz que era meu amigo, que era toxicodependente há 10 anos. Era muito arriscada porque, na altura, a ideia que as pessoas tinham dos toxicodependentes era uma ideia pesada socialmente, porque estavam associados a roubos, a arrumadores. Nós não sabíamos bem como as pessoas iam reagir, mas felizmente a reportagem correu bem. Muito graças à coragem do Emídio Rangel e do Luís Marinho, que foram determinantes para que essa reportagem fosse para a frente. Lembro-me que, no dia em que a reportagem foi para o ar, era dia de votações do Big Brother da TVI. Antes, o departamento de audiências da SIC dizia que era impossível ganhar, que era impossível ultrapassar a TVI, e eu disse que tinha um feeling que aquilo ia ganhar. Quando a reportagem foi para o ar foi líder absoluto de audiência.
No dia seguinte, estávamos muito preocupados porque o Pedro deu a cara. Acordei com um telefonema do Luís Marinho, eufórico, a dizer que a reportagem tinha sido um sucesso e que centenas de pessoas ligavam para a SIC, a pedir para a reportagem ser repetida. Depois, o Rangel também me ligou, foi algo especial, porque eu gostava muito dele. No mesmo dia ou no dia a seguir, liga-me um assessor do Presidente da República a dizer que o Presidente queria-nos receber, para agradecer ao Pedro e a toda a equipa por aquela reportagem. Foi uma coisa maravilhosa. Hoje, o Pedro está bem e isso é que é importante.
Em 2013, recebeu o prémio Dignitas da Associação Portuguesa de Deficientes, pela reportagem “Pegar a vida” (CMTV). Acha que os jornalistas portugueses são suficientemente reconhecidos pelo seu trabalho?
Eu acho que sim. Acho que os bons jornalistas são reconhecidos, apesar de hoje em dia vivermos em tempos de alguma turbulência no jornalismo, de crise, por causa das redes sociais e também por causa de gigantes como o Google e o Facebook. Estes retiram receitas ao trabalho legítimo dos jornalistas e isso é um problema grave. As pessoas vão procurar notícias feitas por mim e o Google paga uma miséria. Se essa proporção fosse mais justa, poderia ser a diferença para muitas redações serem viáveis financeiramente e para os jornalistas serem mais bem pagos. Mas eu acho que, apesar de continuarmos a estar aqui numa crise complicada, o bom jornalismo é reconhecido em Portugal. E o jornalismo é vantajoso, é reconhecido e acho que as pessoas conseguem separar o trigo do joio.
Numa entrevista que deu ao jornal Record, afirmou que foi convidado para a direção da Sporting TV. Na altura, explicou que a razão da recusa era o convite da Correio da Manhã TV. Se o convidassem agora, aceitaria?
Não. Nós nunca sabemos o futuro, mas neste momento vejo-me a morrer na CMTV, porque está a ser uma experiência maravilhosa. Nem sequer penso em sair. Acho que se fosse convidado para sair, não sairia.
Existe um vídeo de 2016, no qual o João “invade” o estúdio no decorrer de um programa. Para além desta história, há mais alguma que seja embaraçosa/ engraçada que queira partilhar connosco?
Tenho tantas histórias para contar, sem querendo contar assim nenhuma em especial.
Eu tenho o privilégio de fazer aquilo que gosto, porque ser jornalista é a paixão da minha vida. E ainda sou pago para isso. Portanto, quando conseguimos conciliar a paixão da nossa vida, em termos profissionais, vamos trabalhar todos os dias felizes, alegres e satisfeitos. Os bastidores da televisão são uma coisa maravilhosa, com segredos indesvendáveis, mas posso dizer que nos damos todos muito bem e que o ambiente por de trás das câmaras, particularmente na CMTV, é fantástico.
Tendo por baliza o jornalismo, o que mais gosta de fazer? Ser pivot, realizar reportagens ou peças mais de entretenimento?
O que eu gosto mais de fazer é pivot e grandes reportagens. O entretenimento não faço. Vou a programas de entretenimento quando sou convidado, mas o que gosto mesmo é ser pivot e fazer grandes reportagens.
Tem perfil em redes sociais como o Facebook. Costuma receber algum feedback por parte do público?
Costumo.
Bons ou maus comentários?
As vezes são bons, outras vezes são maus. Agora, estou a fazer alguns programas de desporto e o público de desporto é um público que nas redes sociais é um pouco agressivo. E, muitas vezes, tenho pessoas a “partir-me todo”.
Esse feedback condiciona o seu trabalho?
Não, jamais. Eu oiço sempre, regra geral, as críticas, mas quando é um fanático que me está a criticar, nem sequer ligo. Muitas vezes, há pessoas que criticam, com razão, ou porque eu errei ou porque falhei, e essas críticas tenho a humildade e inteligência de olhar para elas. Até para poder melhorar.
Autónoma TV
Esta a dar aulas no projeto Autónoma TV. Como está a ser este regresso?
Está a ser fantástico. Já tinha muitas saudades, porque a Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) é a minha casa. Eu vim para a UAL em 1991, saí para a Rádio Mais e voltei em 1992, quando fiz o primeiro ano. Demorei mais de dez anos a acabar o curso e nunca chumbei a nenhuma cadeira.
Quando me ia inscrever para o segundo ano, tive a oportunidade de ir estagiar para a SIC onde fiquei durante dez anos. Regressei para fazer o segundo ano, dez ou 11 anos depois de ter feito o primeiro ano.
Aproveitei a licença de paternidade da minha primeira filha para voltar a estudar. Adorei o curso de Relações Internacionais e a UAL. Quando estava no último ano, fui convidado para dar aulas em Ciências da Comunicação e dei até há cinco anos atrás, quando se deu o início da CMTV, que exigia dedicação absoluta. Tive sempre muitas saudades e pena pela interrupção, mas estou feliz por ter voltado.
Quais as grandes mais-valias da Autónoma TV para os alunos, a nível de competências?
Acho que o projeto Autónoma TV é único em Portugal. Não conheço nada feito com esta exigência, profissionalismo e não há nenhum projeto universitário deste género que exija tanto dos alunos, que crie um ambiente real, ou quase real, com a pressão do tempo, a pressão dos diretos, de fazer entrevistas a convidados reais e com tal cuidado na sua preparação. Não conheço nenhum projeto com este nível de exigência e essa é a mais-valia da Autónoma TV.
Os alunos têm o privilégio de estar aqui na UAL e passarem pela Autónoma TV ao longo dos três anos de licenciatura. Em termos académicos, admito que possam ter uma formação semelhante à de outras universidades, mas em termos práticos, sem querer parecer arrogante, porque não o sou, acho que os alunos das outras universidades não têm a mínima capacidade de conseguir combater com um aluno da UAL que, ao longo de três anos, está inserido numa redação de televisão, que faz reportagens, diretos, entrevistas, apresenta jornais, num ambiente muito próximo da realidade. Essa rodagem, a experiência que se vai adquirindo é uma mais-valia incomensurável para os alunos, em relação aos outros licenciados.
Por último, e a pensar nos alunos, que conselhos daria ao João Ferreira em início de carreira?
Daria muitos… No início da minha carreira, era um rapaz um bocado rebelde demais… Às vezes, criava guerras que não tinham razão de ser. Mas criava porque era teimoso e porque gostava de fazer frente a quem tinha poder, gostava de ser independente, era resmungão, mas muitas dessas guerras não tinham a mínima razão de ser. Gastei energia e sofri com algumas delas. Se hoje em dia pudesse dar um conselho a mim próprio em início de carreira diria isso. Diria que deveria ter sido menos rebelde. Ser rebelde é uma boa característica, mas eu era em demasia. Deveria ter tido, em alguns momentos, mais calma do que tive, devia ter sido mais racional e menos emocional. Mas quero dizer que me arrependo pouco das coisas que fiz.