Histórias com H é uma rubrica onde relatamos as mais belas histórias do desporto mundial. O episódio desta semana fala sobre Muhammad Ali, uma das figuras incontornáveis do panorama do desporto no planeta.
Uma das figuras incontornáveis do panorama do desporto no planeta. Dono de uma língua afiada que incendiou a falsa moralidade de um país em turbulência social. Os impactos das suas ações fora do ringue só encontram correspondente na força brutal dos seus socos e na rapidez dos seus movimentos. Muhammad Ali um dia disse, “Flutue como uma borboleta, pique como uma abelha (…)”. Foi o mote para uma carreira extraordinária e que tocou imensas causas, desde ao problema do racismo à luta pela paz num contexto marcado pela guerra do Vietname. Mas foi dentro do ringue que Ali atingiu o altar destinado só a alguns, aqueles, os denominados de predestinados.
É um nome que não passa despercebido, nem aos que menos se interessam pela arte da modalidade. Notoriedade que muito se deve às suas capacidades físicas como boxeador. A força tremenda dos impactos que desferia aos seus oponentes, aliada às suas “danças de pés” que permitia que escapasse aos movimentos e intenções do adversário e que dava azo a mais e melhores oportunidades para desferir golpes no oponente, marcavam o perfil de um génio dentro do ringue. Apesar de tudo, o seu estilo era diferente e pouco ortodoxo. Isto tendo em conta que pouco levantava os punhos para se defender dos outros boxeadores, Ali apenas confiava na rapidez dos seus movimentos de pés e de corpo para não ser atingido, e com sucesso.
Ali nasceu sobre o nome de Cassius Clay (viria a adotar o nome de Muhammad Ali após se converter ao Islamismo), em 1942, no Kentucky. O começo da sua carreira de boxista pode ser apenas resumido numa única palavra: invencibilidade. De ‘60 a ‘63, o gigante (media 1.91) carregou um recorde de 19 vitórias contra 0 derrotas. Mas caro leitor, é de sublinhar que apenas em 4 o adversário não sofreu um knockout. Iria assim, e já campeão olímpico, título conquistado em Roma, em 1960, enfrentar o seu maior obstáculo até então.
Apesar de tudo, a questão mantinha-se: seria Cassius capaz de bater o detentor do título? A resposta foi dada em ’64. No dia 24 de fevereiro, um dos 4 mais importantes momentos do desporto do século XX, denominado assim pela revista Sports Illustrated, viu o jovem Clay sair com o título após sete rondas de enorme desgaste e de luta feroz. Clay sagrava-se assim campeão mundial na categoria de pesos pesados, um dos três títulos que viria a alcançar durante a sua carreira.
Em 1966, Muhammad, que agora convertido ao Islão e com o seu nome transformado, começa a enfrentar uma das mais cansativas batalhas da sua vida. Durante uma entrevista e questionado sobre a sua disponibilidade para ser recrutado pelas forças armadas do seu país tendo em contexto a Guerra do Vietname, respondeu, “De qualquer forma, não tenho qualquer disputa com esses vietcongs. Eles nunca me chamaram preto.”. Muhammad Ali recusou-se a integrar as fileiras do exército americano; na mesma altura que o fez viu a sua carreira no boxe ser interrompida. Foi culpado de fugir às obrigações como cidadão norte-americano e o castigo aplicado tiraria fulgor à sua carreira, até então explosiva e em constante ascensão. Muhammad Ali estaria três anos sem competir e perderia o título de campeão. Apesar de tudo este acontecimento, enunciava o pacifista dentro de Ali. A partir dali, aproveitaria para defender inúmeras causas, fê-lo através de palestras em faculdades, em manifestações e comícios a favor dos direitos das comunidades negras no país e contra a guerra do Vietname. Transformou-se num ídolo do desporto para um ídolo do povo no momento em que saiu das cordas do ringue e se espalhou pelas ruas, erguendo-se assim perante a estrutura social já pré-estabelecida, e lutou contra a mesma até ao resto da sua vida.
Após 43 meses em exílio, Ali volta aos combates. Em ’71 volta a ter a oportunidade de “roubar” o título de pesos pesados a Joe Frazier, que na ausência de Ali ganhou ímpeto e fortificou-se ao ponto de se tornar quase imparável. O combate foi-se apimentando durante as semanas anteriores, de tal modo, que foi denominado de “combate do século” pelos media e pelo público. Não foi de algum modo exagerado, isto se tivermos em conta a forma única como Muhammad Ali “incendiava” estes embates muitos dias antes de eles sequer acontecerem. Há que também ter em conta que o contexto era propício a estas apelidações: um ex-campeão que passou por uma fase dificílima da sua vida e que pretende voltar a conquistar o que lhe pertence, versus um campeão em título que cresceu na ausência de oponentes à altura e que encontra, talvez pela primeira vez, um candidato que faz jus à sua qualidade e mediatismo.
Imaginem dois comboios que na sua máxima velocidade tomam inevitavelmente e tragicamente a mesma rota mas em caminhos opostos. O embate acaba por ser monstruoso. A vítima? Acabou por ser Ali, que apesar de se manter em pé até ao fim, perde por decisão unânime. O gigante experiencia aquilo que ainda não tinha sentido por uma única vez, isto é, o sabor amargo da derrota.
O título só voltaria três anos depois e contra George Foreman. Depois de ter vencido Joe Frazier na desforra, Ali encontrava-se agora, novamente, a um combate da tão ambicionada conquista.
O combate em terras africanas (Zaire) foi desta vez denominado de “Rumble in the Jungle” (luta na floresta), e viu os dois monstros do boxe usarem todas as suas técnicas e estratégias possíveis para saírem por cima. Ali, percebendo a maior disponibilidade física do oponente, decidiu, e de forma genial, aguentar todas as investidas do adversário, isto enquanto se agarrava às redes. Durante oito rondas, Foreman despendeu todas as suas reservas de força e energia nos golpes ao corpo do oponente; no fim, Ali, de forma cirúrgica e com as suas forças restabelecidas, deu o golpe final. O título voltava assim a casa passados 7 anos de extremo desgaste. Ali voltaria a perder o seu título por mais duas vezes. Leon Spinks em ’78 rouba-lhe o cinto. Mas uns meses depois o “campeão do povo” voltaria a resgatá-lo. Tornava-se assim no primeiro lutador a ganhar o título mundial de pesos pesados por três vezes, e isso demonstra muito da capacidade de luta, de sacrifício e de ousadia que possuía.
Em 1980, com 39 anos e 56 vitórias (5 derrotas e 37 knockouts), o eterno Muhammed Ali dá por terminada a sua carreira no boxe. Quatro anos depois, revela ao mundo que padece de Parkinson – o seu cérebro aguentou anos e anos de impactos brutais -, uma doença degenerativa do sistema nervoso que afeta de forma crónica as suas vítimas. A vida punha à prova mais uma vez o lutador. Mas não estava no caráter de Ali desistir ou submeter-se à sua condição e contexto. Mais uma vez, responderia às ofensivas da vida com classe. Mais uma vez, as suas atitudes perante a adversidade davam sentido ao que anos antes tinha dito. De frente com os seus medos, o homem respondia com uma classe bruta. Podia ter deixado as lutas, mas a luta nunca deixou de fazer parte dele.
Apesar das capacidades motoras, e também as da fala, afetadas, o antigo campeão percorreu o mundo de lés a lés com o objetivo de ajudar. Sem segundas intenções. Sem necessidade de aumentar a sua fama (já era conhecido mundialmente), sem vontade de aumentar contas bancárias. Nada disso! Apenas fazer aquilo que sempre quis fazer, falar pelos que não têm voz. Em 1990, numa das suas mais marcantes aparições, encontrou-se com o antigo líder iraquiano Saddam Hussein para negociar a libertação de reféns norte-americanos. Pouco tempo depois, a Guerra do Golfo rebentaria mas nem assim Ali foi demovido.
Anos mais tarde, viajaria para o Afeganistão como Mensageiro da Paz para a ONU. Seria condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade, que é a maior condecoração que um simples cidadão pode receber. Foi também eleito pelas mais diversas entidades, de forma unânime, como o melhor campeão de pesos pesados de sempre (e ainda hoje se mantém a unanimidade). Muitos apareceriam a seguir mas nenhum deu tanto ao boxe e ao mundo como Ali. Teve ainda a honra de acender a pira olímpica em 1996, em Atlanta. Se não fosse ele quem seria? Um momento que merece ser visto por quem gosta de desporto. Um homem que deu tudo o que tinha de bom e que no final recebeu todo o carinho e consagração que merecia.
Alguns preferem abordar a sua história através das suas peripécias com a religião, outros através do desporto, há ainda aqueles que decidem entrar pelo homem polémico que foi. Mas penso que Ali foi isso tudo e muito mais, e merece ser visto de todos os ângulos possíveis. Como homem, como filantropo, como humanista, como um atleta brutal, como um revolucionário. Todas estas perspetivas formam um dos maiores talentos e espíritos da história do desporto mundial. Não é fácil falar de Muhammad Ali, não é mesmo. Mesmo que se tente é impossível escrever tudo o que Muhammad foi, e penso que esse facto é que o torna mágico e lendário.
Em 2016, e com 74 anos, o eterno guerreiro acabaria por falecer. Durante a vida teve várias frases que para sempre ficariam marcadas. Para mim, uma delas resume aquilo que foi Muhammad Ali e não merece tradução alguma. “Live everyday as if it were your last because someday you’re going to be right.”
E não é que no final Ali estava certo?