Na sua mais recente obra, a biografia premiada O Dever de Deslumbrar, a escritora Filipa Martins mergulha na vida de Natália Correia, uma figura fundamental da cultura e do feminismo em Portugal. Com uma carreira marcada por uma paixão inegável pela escrita, transita entre diferentes formatos narrativos, desde argumentos a séries a projetos de rádio. Reflete ainda sobre o desafio de viver exclusivamente da literatura no mercado português e como o seu trabalho na área da comunicação é essencial para sustentar a sua liberdade criativa.
Em 2008, quatro anos após uma licenciatura em Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, publicou a sua primeira obra, Elogio do Passeio Público. A escrita sempre foi uma paixão constante na sua vida?
Comecei no jornalismo com 18 anos, com um estágio no Diário de Notícias. Foi numa altura em que as redações eram muito vivas. Estava na secção de cultura e tinha colegas como o João Miguel Tavares, o Pedro Mexia ou o Eurico de Barros, figuras agora extremamente conhecidas. Nessa altura, já escrevia ficção. Cheguei a concorrer ao Prémio Jovens Criadores na área de Literatura, e venci. A escrita foi sempre a minha forma de organizar os acontecimentos e os pensamentos, de colocar um pouco o caos dos dias num arco narrativo lógico e compreensível.
Foi desafiada a escrever a série Três Mulheres, que a partir das personalidades de Natália Correia, Snu Abecassis e Vera Lagoa, retrata os últimos anos do Estado Novo. Esta série venceu o Troféu TV 7 dias na categoria de melhor série e foi o seu primeiro projeto de televisão. Que impacto teve no caminho de tornar-se argumentista?
As Três Mulheres foi um desafio do realizador Fernando Vendrell. Na época, ele tinha lido o meu primeiro romance, Elogio do passeio público, que é uma fantasia sobre o Estado Novo. Neste não tem uma pretensão de relatar factos reais em função do que aconteceu efetivamente, mas procura criar um ambiente que remete para uma época específica que Portugal viveu durante 40 anos de ditadura. Um ambiente persecutório, de controlo social. O Fernando Vendrell queria emprestar à série esse lado burlesco, caricato, com algum humor e crítica social. Foi um trabalho feito com várias mãos e marcou o meu arranque como argumentista. Era algo que já tinha pensado fazer, talvez numa fase mais precoce. Gostava muito de ver determinados filmes e compará-los com os argumentos. O peso de um bom diálogo em televisão e cinema é fundamental para se criar boas obras e narrativas. Este desafio foi-me lançado e revelou-se um projeto muito bonito de realizar, tanto pelo contexto da época – que me era familiar e que estudava com afinco – como pelas personalidades com que tivemos de privar para recolher informações sobre aquelas três grandes figuras. O universo intelectual e a luta política que envolviam estas três mulheres, todas elas em oposição à ditadura, foram cruciais. Este trabalho foi, inclusive, reconhecido internacionalmente e chegou, aliás, a ter uma segunda temporada.
“Uma biografia tem um pacto com um sentido de verdade”
A sua obra mais recente, uma biografia de Natália Correia, foi reconhecida e premiada pela Bertrand e pela NiT, e levou a uma produção no teatro do Vão, que contou com uma estreia esgotada no Lisboa Film Festival. Quando começou a escrever esta obra, alguma vez sentiu o dever de deslumbrar o público?
Quando me lanço em qualquer trabalho não estou propriamente a pensar na receção. Tento ser honesta em cada página que escrevo. No caso específico desta biografia, havia, talvez, uma responsabilidade adicional, porque, ao contrário da ficção, uma biografia tem um pacto com um sentido de verdade. Coloquei ao serviço da biografia competências que adquiri ao longo de toda a minha carreira. Sou formada em Jornalismo e, portanto, o métier do que é fazer uma biografia – o trabalho prático de campo, a busca de fontes primárias, a verificação de informação, o contraponto – é algo que está nas raízes do que significa ser jornalista. Coloquei tudo isso ao serviço desta biografia e estive bastante empenhada. Além disso, todo o espólio da autora está muito bem preservado à guarda da Biblioteca Pública de Ponta Delgada, nos Açores. Tive acesso franco ao material e pude estudá-lo sem qualquer tipo de restrição, o que explica os seis anos que demorei a concluir o estudo. Estamos a falar de milhares de documentos. Apesar disso, há sempre zonas de sombra que o biógrafo não consegue alcançar de maneira nenhuma. Foi aí que, muitas vezes, completei esses vazios com as minhas competências como escritora. As grandes biografias são aquelas que se leem quase como um romance – um romance fiel à figura que se está a retratar, mas que conduz o leitor pela mão ao longo do que chamamos o “arco da vida”. Não há muitos romances que tenham um protagonista tão denso, intrincado, complexo e com uma vida tão rica em peripécias como Natália Correia. Estava a retratar a vida e a história de uma figura que ainda é contemporânea para muitas pessoas que estão vivas. Na verdade, há enormes conexões entre a história de vida de Natália e os principais acontecimentos do século XX português. Contar esta vida é, em si, uma incursão pela história do país e pelos seus principais episódios nas últimas décadas. Havia, assim, uma componente de credibilidade que era obrigatória e que tinha de estar presente na obra. Quando falamos de ficção, estamos noutro registo, com um compromisso completamente connosco próprios: o de escrever algo que vá ao encontro do que consideramos verdadeiro e absolutamente urgente. Nunca tive a tentação de escrever para um leitor-tipo ou para uma agenda específica que possa estar na moda. Isso nunca me preocupou.
“Passados 30 anos da sua morte, sentimos a obrigação de lhe dar razão”
Descreveu Natália como uma paixão e uma obsessão. Caracteriza-a como uma mulher do futuro, complexa e ativa, mas também incompreendida. Acredita que atualmente a escritora conseguiria a mesma popularidade e seria compreendida?
Fiz quase um périplo pelo país e pelo estrangeiro para apresentar a biografia e fiquei alegremente surpreendida com o facto de Natália falar a gerações mais novas do que a minha. Essas gerações reconhecem nela um pensamento moderno, especialmente na forma como ela entendia a mulher e a condição feminina, as relações amorosas e o lugar da mulher no mundo. Natália foi, efetivamente, a autora mais censurada da ditadura e continuou a ser censurada mesmo em liberdade. Ela acreditava que o lugar do poeta ou do escritor é de litigância com o seu contexto, porque isso é uma forma de expor as limitações da sua contemporaneidade e, de alguma maneira, denunciá-las. Ao fazer essas denúncias, ela conversava com gerações futuras, contribuindo para a sua própria persistência na memória coletiva. Há temáticas de Natália que ressoam muito nas gerações atuais. Por exemplo, as questões ecológicas que ela abordou no final da vida, ou a denúncia de uma certa burocratização da Europa, que, segundo ela, alimentaria novos discursos totalitários, marcados pela desconfiança e pelo receio do outro – do estrangeiro, do que vem de fora. Passados 30 anos da sua morte, sentimos a obrigação de lhe dar razão.
A adicionar à literatura e à televisão, já participou em várias publicações de imprensa e de rádio como o programa A biblioteca de… Alguma destas áreas foram uma paixão inesperada que pretende explorar no futuro?
Tenho uma paixão visceral pelo papel. Trabalhei em redações, estive diariamente em jornais. Curiosamente, foi nessa altura que menos escrevi ficção, porque as redações têm um ritmo que muitas vezes não nos permite respirar noutras áreas. Entretanto, deixei o jornalismo diário, mas sempre que posso – ou quando sou convidada – colaboro com publicações, escrevendo textos um pouco diferentes, que se aproximam mais do ensaio, da crónica ou da reportagem literária. Dessa forma, consegui, de alguma maneira, aproximar duas áreas da escrita que me são muito queridas. A experiência na rádio foi muito positiva, para começar partilhava o microfone com alguém de quem gosto e respeito muito, o Rui Couceiro. Essa experiência permitiu-me conversar com pessoas extraordinárias. A rádio tem essa beleza – a beleza da informalidade e da conversa espontânea. A televisão, por outro lado, tem um formalismo que já não me interessa tanto. Tenho, no entanto, um enorme defeito: uma certa incapacidade de dizer ‘não’ a desafios, exceto quando se torna impossível conciliá-los. Por isso, obviamente, estaria disponível para voltar a qualquer um destes meios, desde que o projeto fizesse sentido.
“No mercado português, não é fácil viver exclusivamente da escrita”
Para além de todos os trabalhos criativos que realizou, trabalha também na área de comunicação numa empresa de sistemas de satélites e aeronaves. Como é que este cargo, tão diferente do resto, entra na sua vida?
Defino-me, principalmente, como uma storyteller. Quando estamos a comunicar seja o que for – uma empresa, um objeto, um livro -, acredito que a forma mais eficaz é criar narrativas, histórias. Estas são o que nos define como seres humanos. Só entendemos o nosso passado, projetamos o nosso futuro ou vivemos o presente através dessa narratividade. Por isso, não considero que estas sejam áreas tão distintas. Nunca quis, até agora, viver exclusivamente da escrita literária, ficcional. Considero que, se isso acontecesse, teria menos liberdade. Passaria a escrever com objetivos muito claros de sobrevivência, como pagar contas. No mercado português, não é fácil viver exclusivamente da escrita, a menos que se aceite absolutamente tudo. O facto de ter outro trabalho permite-me ter liberdade para escolher os projetos que quero realmente fazer. Por um lado, os meus projetos pessoais, que nascem de mim, das minhas necessidades criativas; por outro, aqueles que surgem e que abraço porque se alinham com quem sou. Portanto, ter uma profissão mais convencional, ainda que numa área afim, dá-me a possibilidade de viver plenamente a minha grande paixão: a literatura.
Recebeu o Prémio Revelação em 2004 e desde aí já lhe foram atribuídos outros prémios e nomeações. Sente-se realizada profissionalmente?
Sim, mas não através dos prémios. Sinto-me realizada nos encontros com os leitores. Sinto-me realizada quando chego a uma sala cheia de gente de várias idades, com as quais conversei através do meu trabalho, das minhas palavras. Isso é o máximo da minha realização.
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