Filipa Fonseca Silva tornou-se nos últimos anos uma das vozes mais relevantes e inovadoras da literatura portuguesa. Fundadora do Clube das Mulheres Escritoras, com uma dezena de livros publicados e a adaptação para cinema da obra O Elevador, a autora fala acerca do seu processo criativo, da presença das mulheres na literatura nacional e do atual panorama literário.
Licenciou-se na Universidade Católica, em Comunicação Social e Cultural. Trabalhou como copy, em agências de publicidade. Com uma carreira de sucesso, como foi a transição da publicidade para a escrita literária? Teve receio?
Não. Foi uma coisa muito natural, escrevi os primeiros cinco livros quando trabalhava a tempo inteiro. Era o que eu fazia nos meus tempos livres, existiam sempre alguns momentos que aproveitava para tirar as minhas notas e começar a desenhar um romance.
Nos seus livros, aborda uma grande diversidade de temas, desde a sexualidade na terceira idade a um mundo distópico no meio de uma crise climática. No processo criativo, onde procura inspiração para abordar temáticas tão distintas?
Tenho várias vozes na minha cabeça que não me largam [risos]. E várias personagens para vários romances futuros, mas as histórias podem surgir [de qualquer lado]. Como no E se Eu Morrer Amanhã? que é a história de uma senhora de 80 anos que tem uma vida sexual ativa, e que foi a minha mãe que me contou sobre uma amiga, ou com o Amanhece na Cidade que é a história de um taxista que conta a sua vida toda aos clientes e foi algo que me aconteceu. Outras vezes é como no Admirável Mundo Verde, em que construo a história em volta de um tema que quero falar.
O processo de escrever um livro é algo que implica uma enorme dedicação a nível de tempo e, muitas das vezes, a nível emocional. Essa dedicação faz com que muitas das personagens fiquem para a vida, mesmo depois da história estar concluída. De todos os seus livros, qual a personagem que mais a marcou e lhe é mais especial?
É a Helena, do E se Eu Morrer Amanhã?, que ficou comigo e com muitos leitores, que mandam mensagens dizendo que nunca a vão esquecer e que gostariam de ter uma avó como ela. A sua personagem é muito impactante, devido à mensagem contra o idadismo. As sociedades ocidentais desvalorizam as pessoas mais velhas, a partir do momento em que elas já não são úteis e se reformam tornam-se como empecilhos e penso exatamente o contrário. As pessoas têm muito para aprender com os mais velhos e a idade apenas está na nossa cabeça.
“É muito triste os meus filhos estarem a dar as mesmas obras que eu dei, como se nada de relevante tivesse acontecido na literatura”
A literatura sempre teve um papel importante na sociedade, não apenas como entretenimento, mas também como veículo de valores, influenciando como lidamos com os outros e como vemos o mundo. Acha que em Portugal a literatura ainda possui esse papel, promovendo o debate de ideias?
É essencial que a literatura tenha esse papel. Em Portugal, os autores portugueses são muito pouco valorizados, sobretudo os autores contemporâneos. Portanto, continuamos a dialogar com ideias do século XIX e do século XX, e faz falta trazer mais foco e dar mais oportunidade aos autores contemporâneos, para eles nos ajudarem também a dar essas leituras do mundo contemporâneo. Claro que é importante respeitar, ouvir e conhecer as vozes do passado, que foi o que nos trouxe até aqui, mas estou muito mais interessada no presente. O mundo mudou muito nos últimos 20 anos, mais do que nos 100 anteriores e, por isso, temos de ter um papel de manter a literatura interessante, porque o papel da literatura é indiscutivelmente importante, é o que nos faz pensar no mundo e ter novas abordagens, criar empatia, conhecer o outro de outra maneira, e estimular o cérebro de maneiras que outras artes não conseguem.
Recentemente falou na Book 2.0 sobre a implementação de um sistema de quotas nas livrarias portuguesas, tal como é feito nas rádios com a obrigatoriedade de passar 30% de música portuguesa, para incentivar a leitura de livros nacionais. Que outras medidas poderiam ser implementadas para incentivar a leitura de livros escritos por autores portugueses?
Tem de haver uma mudança no currículo. É uma coisa que traz enorme resistência, mudar um currículo escolar implica mudar tudo, até a formação dos próprios professores. Mas é muito triste os meus filhos estarem a dar as mesmas obras que eu dei, como se nada de relevante tivesse acontecido na literatura. Por exemplo, é muito triste não haver obras contemporâneas e não haver uma única mulher no plano curricular a partir do 10º ano, todas as obras obrigatórias são de homens brancos com mais de 100 anos.
Em Portugal, existe uma diversidade de vozes femininas na literatura, com diferentes estilos literários e temas abordados. No entanto, como disse, ainda existe uma certa desvalorização da voz feminina na literatura nacional. Sendo a Filipa a fundadora do Clube das Mulheres Escritoras, acha que Portugal alguma vez irá dar o devido valor a estas vozes?
É para isso que estamos a trabalhar. Penso que o nosso trabalho no clube, ao longo de um ano e meio, tem estado a dar frutos e temos visto cada vez mais pessoas interessadas. Existem muitas mulheres a escrever e elas não são lidas porque as pessoas não as conhecem, porque não temos espaço nos meios de comunicação, nas livrarias, nas bibliotecas, e isso é algo importante para termos visibilidade. Outro problema grave é que se continua a dar espaço ao mesmo tipo de literatura, ao mesmo tipo de vozes, e a literatura é tão variada. Temos de mostrar que existem autores a falar de outros temas, existem outros tipos para além dos clássicos. Hoje em dia, qual é o miúdo, que está interessado em ler mais um romance passado na época do Estado Novo e da Guerra Colonial? Já ninguém quer saber disso [risos]. É necessário estimular a leitura e criar o hábito para a pessoa largar o telefone e pegar num livro.
Segundo o ex-presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), Pedro Sobral, em declarações à Lusa, o livro importado (constituído quase exclusivamente por livros em inglês) representou 3% do valor de mercado, em 2023, o que significa um crescimento de cerca de 25% face a 2022. Que impacto poderá o crescimento da venda de livros em inglês ter no futuro do mercado literário português?
Acho que terá um impacto muito negativo, para já, porque continua-se a valorizar o que vem lá de fora, mas isso já tem a ver com a nossa mentalidade um bocado provinciana. Nunca valorizamos os nossos artistas, a não ser quando eles já foram valorizados lá fora. As pessoas têm a desculpa de que gostam de ler o original, isso está certo, mas depois acabam por ler também autores de outras línguas em inglês. Depois, os livros são mais baratos em inglês, e eles são mais barato porque a tiragem de um livro na Inglaterra é maior do que em Portugal, logo, o preço será menor. Se as pessoas querem que os preços dos livros baixem têm de os comprar.
A pirataria literária é algo que sempre existiu, mas tem-se tornado um problema que afeta cada vez mais autores. Muitos dos leitores nem têm noção dos prejuízos causados, devido à falta de conhecimento dos valores de direitos de autor pagos pelas editoras. Que medidas poderiam ser implementadas para impedir ou pelo menos mitigar esta tendência?
As editoras, possivelmente não têm a disponibilidade financeira para o fazer, mas é a tecnologia blockchain, que impede as pessoas de partilharem e copiarem. Mas se a tecnologia é demasiado cara para as editoras portuguesas, então devia entrar o próprio Estado para financiar estas tecnologias que impedem a pirataria. Porque as pessoas não têm noção de quanto é que os autores ganham. Nós, autores, ganhamos 10%, portanto, imaginem os livros que seriam precisos vender por mês para um autor português conseguir viver da escrita. E, se as pessoas não comprarem autores portugueses, qualquer dia as editoras também deixam de investir neles.
“Não gosto de me repetir”
Considera a seleção a parte mais desafiadora do seu processo criativo?
Sim, porque não gosto de me repetir. Há autores que gostam de revisitar as mesmas temáticas, mas eu gosto de fazer o contrário e, às vezes, as pessoas querem que volte às minhas histórias, mas não tenho interesse em retomar aquelas personagens. Para mim, aquilo foi uma história e acabou. Mesmo que tenha tido um final aberto, gosto de ir buscar outras coisas e reinventar-me. Por isso, é mais difícil escolher para onde vou com as minhas histórias.
Todos os escritores têm ambições e sonhos que gostariam de alcançar nas suas carreiras. Enquanto escritora, qual é o seu maior sonho?
O meu maior sonho é viver da escrita. É poder simplesmente escrever e que os meus livros vendam tanto que permitam que mesmo com 10% de royalties [risos], tenha dinheiro para viver. Mas acho que isso é um problema de todos os artistas em Portugal.
Tem esperança de que as gerações mais novas venham a melhorar o panorama literário em Portugal?
Sim, até porque, segundo os dados da APEL, a faixa etária dos 25-34 anos é quem mais compra livros, e a faixa etária que mais cresceu percentualmente em relação aos dados anteriores foi a dos 15-24 anos. Isso são ótimas notícias. Significa que os jovens estão, de ano para ano, a ler mais. Isto é um trabalho que tem de se manter, tem de ser um esforço de todos. As histórias são uma maneira de conhecermos o mundo e de o compreendermos. Vai sempre haver contadores de histórias, pois o interesse por histórias faz parte do nosso ADN.