As redes sociais têm sido um contributo importante para que se conheça mais sobre o feminismo negro. Questões inovadoras sobre o movimento de mulheres negras começam a ser colocadas na agenda, mas quem dá a cara por estas causas considera que ainda há muito a mudar em Portugal.
A luta pelo reconhecimento da mulher negra tem vindo a sofrer transformações ao longo dos anos. Os meios de comunicação exercem um papel importante para dar voz ao feminismo negro. Através das redes sociais, o ativismo digital tem universalizado causas desconhecidas. Várias organizações e instituições foram criadas para unir mulheres, como é o caso do Instituto da Mulher Negra em Portugal (Inmune). Segundo Ângela Graça, presidente da Inmune, fundada pela deputada independente Joacine Katar Moreira, “o feminismo negro é uma corrente que deve, antes de mais, ser sempre associada à interseccionalidade”.
A interseccionalidade ou teoria interseccional é uma vertente do feminismo que pretende analisar e combater a desigualdade de género, tendo em conta raça, classe social, religião, deficiência e orientação sexual. Thiffany Odara, transgénero, travesti, feminista negra, educadora social e especialista em género, raça, sexualidade e etnia, que faz parte de instituições como o Fórum Nacional de travesti e transexuais negras e negro, e Rede Nacional de Feministas antiproibicionista, esclarece: “O movimento de mulheres negras questionou a ideia de que as mulheres eram um grupo homogéneo que compartilhavam as mesmas vivências. As opressões de mulheres brancas não eram as mesmas que as vivenciadas por mulheres negras, com deficiência, pobres, indígenas, muçulmanas e LGBT’s.”
A partir dessa nova forma de luta, procura-se entender como a junção de género, raça e classe determinam o que é o feminismo. Segundo Ângela Graça, “as mulheres não são invisíveis. São invisibilizadas por parte de um desinteresse do Estado português em promover leis igualitárias para mulheres negras. O surgimento de movimentos feministas negro e interseccional vem trazer para o debate estas demandas, até então, desconsideradas”.
A emergência do feminismo
A primeira onda do feminismo surgiu no final do século XIX e século XX, tendo como principal impulsionador a Revolução Francesa e as transformações sociais da época. O movimento era composto, maioritariamente, por mulheres brancas. Tinham como finalidade a discussão e a luta pelos direitos das mulheres, ao questionar os direitos políticos, à liberdade de escolhas e o gozo da vida pública. Foi nessa primeira onda que emergiu o movimento sufragista pelo direito ao voto das mulheres.
O filme As Sufragistas, lançado em 2015, com autoria de Abi Morgan, retrata o que aconteceu naquela altura. Serve de referência para se perceber como o grupo militante de feministas, através do olhar de uma trabalhadora de uma lavandaria, contribuíram para que as mulheres tivessem o direito ao voto. Segundo Carla Akotirene, investigadora de doutoramento em Estudos Feministas, é uma causa que tenta, desde sempre, “colocar fim ao patriarcado, mas que ainda precisa ser trabalhado para abranger todas as mulheres e assim colocar fim a seletividade”.
A segunda onda aconteceu entre os anos 60 e 90, onde houve uma maior projeção mundial do movimento. A partir dessa época, verificou-se um despertar: feministas negras e LGBT juntaram-se a luta. No entanto, as mulheres negras começaram a renunciar os discursos racistas e seletivos das feministas brancas. Nasceram movimentos dentro de outros movimentos, como por exemplo, o feminismo negro.
Thiffany Odara explica que “o feminismo negro é um movimento teórico que emergiu, a partir da necessidade de reivindicar a existência da mulher negra. Luta por direitos a políticas de equidades sociais, uma vez que negras eram vistas como burros de cargas. Eram animalizadas. Tratadas de uma maneira onde a dignidade humana não existia. Ao estarem sempre na frente de insurgências contra o machismo e o racismo, as mulheres negras sempre lutaram pelo direito à vida e à existência, contra o patriarcado. O feminismo negro surgiu para subverter e apontar para o feminismo hegemónico. A luta precisa ser interseccional”.
Toda essa hegemonia é consequência de desigualdades sócios raciais que a História testemunha. Em Portugal, segundo Rosa Monteiro, secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, mulheres ganham em média menos 3600 euros por ano que os homens, sendo que, quando se fala de raça, a média ainda é menor. Ângela Graça refere que a perceção de ser mulher nunca será a mesma para todas: “Se pensarmos na luta feminista da mulher branca ocidental, existem várias problemáticas próprias da comunidade negra, que não são refletidas. Costumamos dizer que a mulher negra está na base da pirâmide e, com isto, também, os seus desafios, demandas e ambições.”
Na terceira onda do feminismo, em 1990, surge o termo interseccionalidade, criado pela feminista e professora especializada em raça e género, Kimberlé Williams Crenshaw. A investigadora usa o termo pela primeira vez numa pesquisa de 1991 sobre as violências vividas pelas mulheres de cor nas classes desfavorecidas nos Estados Unidos.
Imigração e desigualdades
Nos anos 60, a imigração africana começou em Portugal, mas só aumentou após o 25 de Abril de 1974, com o fim da Guerra do Ultramar e da Revolução de Abril. Os homens negros chegaram para trabalhar nas obras e as mulheres como empregadas domésticas e, após 46 anos, a situação mantém-se. As pessoas com nacionalidade dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) estão, segundo um estudo desenvolvido em 2011 pela ISCO – Elementary Occupations, três vezes mais em profissões menos qualificadas e, para esse mesmo tipo de profissões, recebem, em média, menos 103 euros mensais (dados 2009, Quadros de Pessoal do Ministério do Emprego e Segurança Social). Além disso, de acordo com o INE, têm o dobro da taxa de desemprego: 29,8 versus 12,9%.
A Agência Europeia para os Direitos Fundamentais revela que a discriminação racial é prática comum em 12 países europeus, incluindo Portugal. Afirma que os negros se sentem discriminados no mercado imobiliário, no trabalho e em muitos aspetos da vida quotidiana, para além da referência a assédio racial e ataques físicos. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Atividades Diversas (Stad), o setor da limpeza tem 67 mil trabalhadores e quatro mil empresas. Mais de 80% são mulheres e 70% são imigrantes vindas do continente africano.
Nesta perspetiva, as mulheres negras viram-se na obrigação de criar espaços próprios de luta ao perceberam a falta de apoio e reconhecimento dos seus direitos igualitários: “Existem outros movimentos que não é feminismo negro, mas são outras possibilidades de luta e de insurgências de mulheres negras. O mulherismo africano não é feminismo negro, mas é uma forma de se reinventar e resignificar diante de uma sociedade colonial que é estruturada com bases racistas, patriarcais, misógina e LGBTfobicas.” Dentro de outras causas também existem vertentes do feminismo, como o trans-feminismo. Surge na minha vida a partir de uma resistência diante de uma sociedade que nega a minha existência. O feminismo como uma maneira de atuação e de combate a opressões que recaem sobre o meu corpo”, considera Thiffany Odara.
Em Portugal, ainda não há censos que tenham perguntas sobre a origem étnico-racial. Numa investigação desenvolvida pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica, com 1906 inquiridos portugueses, encomendada pelo Governo, consegue-se perceber que 78% das pessoas são a favor da inserção de perguntas nos Censos 2021 sobre assuntos étnicos-raciais, sendo que 90% afirmaram existir discriminação racial em Portugal.
O Instituto Nacional de Estatística (INE) chumbou a inserção dessas perguntas no próximo Censos. O Conselho Superior de Estatística (CSE) alegou que se trata de uma questão complexa e que será necessária mais recolha de informação. Solange Salvaterra, ativista defensora do direito das mulheres negras, opina em relação ao veto das perguntas nos próximos Censos de 2021: “Têm medo de inserirem as perguntas porque revelará o quanto racistas alguns portugueses são. E, sobretudo, que existem muitas desigualdades e discriminação no acesso à educação, à saúde e no mercado de trabalho. Mostrará as fragilidades e as desigualdades existentes na sociedade portuguesa.”
Visibilidade do feminismo negro
Com o aparecimento da internet, as lutas foram transformadas e ganharam maior visibilidade. Artigos, jornais, livros e revistas sobre o feminismo negro internacional chegaram a Portugal para dar o impulso que as mulheres precisavam. A ONU também se tem mostrado participativa face a estas causas, ao pedir a participação de todos os países membros para a criação de igualdade em todos os aspetos da sociedade.
Em 2014, foi criado a Década Internacional dos Afrodescendentes, cujos temas são reconhecimentos, justiça e desenvolvimento. Foi a partir daí que organizações, associações e institutos direcionados as mulheres negras foram criados em Portugal, como, por exemplo, o Inmune e a Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afro Descentes e Portugal (FEMAFRO). “O Inmune nasce para dar continuidade ao despertar português. Surge para acabar com os estereótipos sobre as mulheres negras, por um fim à invisibilidade e ao silenciamento a que estão sujeitas. Isso significa, basicamente, beneficiar as famílias, os filhos, as filhas e envolver os homens”, explica Ângela Graça.
Em Portugal, a afirmação da mulher negra tem sido evidente em áreas como o jornalismo, onde se evidenciam Carla Adão e Conceição Queiroz; no meio académico, com Iolanda Évora, Inocência Mata e Sheila Khan a conquistar um lugar destaque, mas também na política, representadas por Romualda Fernandes, do PS, Joacine Katar Moreira, como deputada independente, Beatriz Dias, do Bloco de Esquerda e, entre outras figuras, a mais mediática Francisca Van Dunem, ministra da Justiça.
A última eleição, por exemplo, ficou assinalada devidos as grandes conquistas por parte de mulheres negras no âmbito político português. Mesmo assim, a presidente da Inmune, Ângela Graça, acredita que Portugal ainda tenha muito caminho a percorrer: “Portugal ainda precisa de se olhar realmente e de se conhecer. Reconhecer a sua história. Quando esse click se concretizar, haverá espaço para um diálogo transparente e para mudanças efetivas. É um caminho que esta a ser trilhado, muito lentamente e cujo fim não está à vista. Cá estaremos e as próximas gerações para conseguirmos as conquistas que merecemos.” Com a mesma conviccção com que defende a sua causa, Thiffany Odara acredita: “Enquanto tiver voz, vou lutar, mesmo que não seja ouvida. Um dia, sei que fará a diferença. Não quero que gostem de mim, só quero que me respeitem como uma pessoa igual a qualquer outra.”