Além da prestação de serviços e da resposta a anseios estéticos, a cadeira do barbeiro transforma-se, muitas vezes, na cadeira do psicólogo. A Filipe Barbearia, localizada em Casal de Cambra, concelho de Sintra, é não só o reflexo do percurso de vida do seu proprietário, mas também da relação de confiança e cumplicidade com muitos dos seus clientes.
10:00h, faz frio na Rua de Pisa, Casal de Cambra, município de Sintra. As nuvens encobrem o sol e o vento sopra devagar num dia acinzentado. Há gente na rua, enrolada em casacos, mantas e cachecóis. Mesmo com o denso nevoeiro é possível ver um colorido poste de barbeiro. Ao lado do poste, uma imagem em que um homem com barba avantajada branca e preta segura a tesoura e navalha. Não restam dúvidas de que se trata de um local onde os homens cortam o cabelo e fazem a barba.
Diogo, dono de um stand de automóveis, é um dos corajosos que enfrenta a manhã gélida. O jovem tem hora marcada para cortar o cabelo com Felipe Maciel, que surge cerca de dez minutos depois. Barbeiro brasileiro, 26 anos, é o proprietário do pequeno espaço com o seu nome.
A preocupação com o conforto é visível mal as portas se abrem. Um sofá preto para três pessoas à esquerda, poltronas aconchegantes – daquelas gigantes que, quando inclinadas, parecem uma cama – à frente de espelhos verticais e uma máquina de café, pronta para receber moedas num dia sonolento. Diogo ocupa uma das cadeiras, à espera de Felipe, mais uma vez. Porém, agora, descansa no conforto do ambiente aquecido: do lado de fora o dia continua frio e cinzento, cá dentro o visor do ar condicionado indica 23º C.
“A minha vida sempre foi muito dura”
A barbearia nasceu a 27 de março de 2021, mas a história começou muito antes. “Fui uma criança que cresceu sem pai, criado pela minha mãe. A minha vida sempre foi muito dura”, conta Felipe, com o olhar atento, como se estivesse a contemplar as imagens do passado. Aos seis anos, já saía para vender artesanato, ímans de frigorífico e salgados, de forma a “ajudar dentro de casa e trazer o sustento”. O agora empreendedor recorda não só o cansaço de uma vida difícil, em Cabo Frio, no interior do Rio de Janeiro, mas também os conselhos da mãe. “A minha mãe não teve muitas oportunidades na vida, casou cedo para sair de casa. A minha avó não tinha condições de mantê-la e ela sempre deixou explícito: se você não quer ser igual a sua mãe, não quer depender dos outros, estude, trabalhe.”
Assim foi. Ainda no Brasil, por volta dos 16 anos, começou a investir na sua formação. Trabalhava e nas horas vagas estudava. Até que se interessou pelo curso de barbeiro. O começo não foi fácil, “suava frio” e “tremia” ao cortar os primeiros cabelos, mas não desistiu. As frustrações e adversidades fomentaram a perseverança que Felipe teve de aplicar para abrir, em março de 2017, a sua própria barbearia. A muito custo, e com “um espelho quebrado”, “uma cadeira velha” e uma “sala simples” lá constituiu o negócio. E o negócio cresceu. “Uma carteira de clientes foi criada, quatro colaboradores foram contratados”, diz com orgulho.
A despretensiosa barbearia do jovem brasileiro ainda existe (o dono é um outro barbeiro a quem Felipe trespassou o espaço), e também ele poderia por lá ter continuado, caso tivesse resistido ao convite de um amigo, em 2019, para se aventurar em Portugal. “Sempre desejei conhecer outras culturas, foi uma oportunidade que resolvi considerar.” O início de uma nova experiência, num novo país, mas a mesma paixão e profissão.
“Ires a outro sítio é sempre um risco”
Mais uma vez, Filipe teve que se superar. Hoje, com o título de residência e uma filha nascida em Portugal, as questões que envolveram a sua chegada estão sanadas, mas o processo foi conturbado: “Fiquei preso durante três dias na primeira vez que vim para Portugal. Emagreci, cheguei a ficar doente.” Foi deportado. Ficou naturalmente “desanimado”, mas mentalizou-se de que tentaria novamente. “Brasileiro não desiste nunca”, garante.
À segunda tentativa correu bem. Já em território luso, começa a trabalhar em algumas barbearias dentro de centros comerciais. Descontente com os horários abusivos e, mais tarde, com a insustentabilidade gerada pelo período pandémico voltou a aventurar-se por conta própria. À medida que cortava cabelo ao domicílio, a situação melhorava: “Foi então que eu encontrei essa sala” — hoje a Felipe Barbearia, no número 10, loja frente, da Rua de Pisa. E, de novo, um “espelho quebrado”, uma “cadeira velha” e outros improvisos deram forma ao sonho.
Perto de completar três anos de existência, a barbearia de Felipe é palco de muitos encontros e conversas, agora já com bons espelhos e cadeiras novas. É neste lugar de conforto que Felipe está a finalizar o corte de Diogo, o corajoso que enfrentou o frio da manhã. Entre o zumbido uniforme da máquina e o detalhe da tesoura, Diogo conta que é a segunda vez que está a cortar com Felipe e que será fiel ao barbeiro, até porque ir “a outro sítio é sempre um risco”.
O barbeiro é um psicólogo
Há uma cumplicidade visível entre as pessoas que se juntam numa barbearia. Felipe vai mais longe e diz que o barbeiro cumpre, muitas vezes, o papel de psicólogo. Ouvir, interagir e até consolar o cliente é parte integrante da profissão.
Wellington, de 37 anos, também ele brasileiro, é um dos colaboradores da casa. Está no seu horário de intervalo. Enquanto almoça, olha com frequência as marcações no telemóvel, de forma a conferir o próximo corte. “Ouvimos muitas histórias, cada novo cliente é uma história diferente. O nosso trabalho é tratar bem, ser simpático, amigo”, afirma. “Ser barbeiro é lidar diretamente com a autoestima da pessoa.”
Paulinho, barbeiro há duas semanas na barbearia de Felipe, diz que sim com a cabeça e complementa dizendo que aprendeu a cortar cabelo enquanto estava “privado da liberdade” e que era sempre “gratificante” quando um detido que estava prestes a receber visita pedia para cortar o cabelo. “Queriam ficar bem-apresentados perante os seus familiares.”
Para Felipe, se houvesse a possibilidade de usar uma história como resumo dos vínculos que aqui são criados usaria a história de uma senhora que é mãe de três meninos, todos clientes da barbearia. “Essa senhora teve cancro. O pai foi embora, abandonando-a a ela e às crianças e ela resolveu rapar o cabelo na barbearia dos filhos.” A meio do corte, Felipe e outro colaborador raparam o cabelo também, em solidariedade ao momento difícil daquela mãe. “Ela ficou muito grata”, lembra, com visível orgulho. “Uma barbearia exerce um papel fundamental na vida das pessoas, na sociedade.”