Estrela Novais nasceu no Porto, a 13 de março de 1953. Desde os quatro anos que sentia um gosto especial pelo mundo do espetáculo. É uma cara conhecida da televisão portuguesa, participou em várias novelas como Doce Fugitiva, Dei-te quase tudo, Feitiço de Amor e Belmonte. Hoje, Estrela roubou um bocado do seu tempo para uma conversa num café que não teve nada de conversa de café. Perto da escola onde é professora, Escola Secundária D. Pedro V, sempre num tom descontraído, mas também nostálgico, a atriz e professora fala sobre a sua estreia no teatro, a ida para Itália e o que faz para fugir às suas rotinas.
A sua estreia foi no Teatro Experimental do Porto, com a peça Bodas de Sangue, de Federico Garcia Lorca. Qual foi a sensação de estar a pisar um palco pela primeira vez?
Eu fiz uma semana de ensaios, estava assustadíssima, muito nervosa e houve um técnico de luz que disse: “menina, atiraram-na aos leões”, lembro-me desta situação. E no fim, tive o prazer de ver, que estavam na plateia o Rui Mendes, o João Lourenço e o Morais e Castro, que estavam em simultâneo a fazer uma peça no Teatro S. João. Quando eu vi aqueles atores sentados a assistir, foi uma honra e depois vieram-me visitar ao camarim e convidaram-me para ir ver o espetáculo deles. Isto marcou-me profundamente, senti que tinha uns padrinhos e depois ainda me convidaram duas vezes para ir trabalhar para um grupo de teatro, que na altura se chamava ‘Grupo 4’, e hoje é o Teatro Aberto. Mais assustada fiquei. Eu achava que as pessoas estavam a exagerar, tinha acabado de começar, como é que eu já tinha convites?
Essa noite, portanto, marcou-me profundamente. Eu lembro-me que estavam na plateia os meus amigos, que estudavam comigo à noite, o meu irmão. Foi uma noite muito bonita, tinha 17 anos.
Em 1973, ainda em época de censura, três jovens fundaram a companhia de teatro Seiva Trupe. A Estrela tinha aproximadamente 20 anos. Fundar uma companhia profissional sendo tão nova foi uma necessidade de afirmação da sua liberdade, uma aventura ou um delírio do momento?
Só havia o Teatro Experimental do Porto, era preciso criar outras unidades de trabalho, com um projeto próprio. E a Seiva Trupe criou-se tendo em conta a descentralização, para que a companhia não ficasse só no Porto, e começasse a invadir o Norte, Famalicão e Trás-os-Montes. Aliás cumprimos isso maravilhosamente bem. Nós fomos com a Seiva Trupe a sítios onde há 22 anos, não havia manifestações artísticas, nem sequer existia um espetáculo de variedades. As pessoas são um bocado desconfiadas e de repente quando chegávamos ao palco, tínhamos que voltar para trás. Era tanta gente que estava no palco, como é que eu podia representar? E houve sítios, onde isso aconteceu muito, tinham que se abrir as portas. As pessoas iam buscar cadeiras a casa e o espetáculo começava meia hora mais tarde. Portanto a criação deste grupo de teatro, não foi para competir, mas pelo contrário, para enriquecer culturalmente a cidade do Porto e a descentralização.
Ida para Itália
Aos 27 anos, candidatou-se à única bolsa da Gulbenkian que havia nesse ano. Como foi saber que tinha conseguido a bolsa para ir estudar para a Accademia Nazionale di Arte Drammatica Silvio D’Amico, em Roma, Itália?
Foi o maior prémio que eu recebi até hoje, e eu não queria acreditar, quando abri a carta muito devagarinho. Limitei-me a entregar o meu dossier e fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo também com medo. Quando entrei no avião, meti-me naquele voo, e não conhecia ninguém, quer dizer conhecia o diretor da Accademia, foi ele que me convenceu a concorrer para ir para Itália. Este prémio trouxe-me o renascer porque é o começar do zero. Fui para um curso não de atriz, mas sim de encenação. Já tinha muita experiência como atriz. Eu achava estúpido ir para encenação mas hoje, até gosto muito de encenar. Acho que está correto e aprendi muito com os mestres que tive lá fora, em Itália, que eram referências do teatro mundial. Eram e alguns ainda são porque estão vivos.
Em Itália, teve grandes mestres, como por exemplo Dario Fo. Uma vez disse: “Os alunos roubam sempre alguma coisa ao mestre.” O que roubou a Dario Fo?
Boa pergunta! O que roubei a Dario Fo… (pausa) A energia! Ele tinha uma grande energia! Ele fazia espetáculos sozinho no palco, para multidões. Sozinho em palco, era essa energia que ele tinha. Os tempos de comédia eram fabulosos. Ele sabia rigorosamente como o público era e adorei traduzir textos dele que foram representados pela Seiva Trupe. Por exemplo, ‘O mistério cómico’, que eu trouxe para Portugal e que ele, logicamente, autorizou-me que fosse para cena. Esse espetáculo, depois até esteve na Comuna Teatro de Pesquisa. Teve um êxito tremendo, sempre cheio e também era de um só ator.
De que forma esta experiência marcou a sua vida?
Culturalmente, e tecnicamente, aprendi muito. Aprendi uma nova literatura, apaixonei-me por autores que não conhecia, ‘Pirandello’ por exemplo, também trouxe essa peça para Portugal, que a Seiva Trupe apresentou, ‘Henrique IV’, que agora vai estar na Comuna, e é uma peça notável. Também trouxe coisas, quer dizer, até na maneira como hoje eu ensino a devo aos mestres que me ensinaram a mim. Aprendi com eles muitas dinâmicas de ensino. E uma vivência… foram os três anos mais felizes da minha vida. Nós lá éramos estrangeiros e quando nos dizem “Bravo” é um orgulho, porque não temos nenhuma cunha e nós os portugueses nas mais diferentes áreas. A mim chamavam-me “l’artista” porque era do teatro. Em arquitetura, restauro, pintura, em Itália éramos muito considerados. Nos locais onde estávamos, pela qualidade, pelo empenho, pelo rigor e pela pontualidade (os italianos na pontualidade eram de morrer a rir). E depois foi o viajar, viajei muito, conheci muita coisa, muitos museus, muitas igrejas, fui não sei quantas vezes ao Vaticano e ainda hoje digo que ficou muita coisa por ver, mas fui muitas vezes. Foi uma grande aprendizagem e tenho saudade desse tempo… (Pausa) Depois conheci pessoas espantosas, atores, atrizes, encenadores, arquitetos… E regressei com um espetáculo que era a ‘Medeia’, que atravessa desde a antiguidade até aos nossos dias, e tive vários prémios. Também há uma coisa que falar de Itália, ficaram lá muitos amigos, com quem ainda mantenho contacto. Em 2001 fui fazer um filme a Itália, e então uma das condições que eu pus, é que pagassem o hotel durante três dias em Roma. O meu marido foi comigo, e voltar a Roma passado tanto tempo foi muito bom. Aconteceu-me uma coisa fantástica. Eu mostrei ao meu marido os sítios onde eu vivi e as pessoas reconheciam-me, por todos os sítios por onde eu passava. Havia uma esplanada que eu gostava muito de ir, que era junto ao Pantheon. Houve um senhor que me disse “Bella” e veio sentar-se na mesa onde eu me costumava sentar. Ele lembrava-se disso e não nos deixou pagar nada, e isso marcou-me muito. Nesse regresso, eu senti que se calhar não voltava mais, mas talvez quem sabe… Eu deitei a moeda na Fontana di Trevi.
Quando é que a Estrela decide deixar a cidade do Porto e vem viver para Lisboa?
Finais de 1988… Foi em setembro lembro-me perfeitamente, decidi. (Pausa) Porque se calhar as coisas… (Pausa) Já não era a Seiva Trupe que eu tinha sonhado. Quando se parte de uma terra que é nossa e quando se tem um público é preciso coragem. Na altura já tinha 36 anos, portanto alguma mágoa ficou. Há mágoas… Mas a Seiva Trupe continua a existir. Tenho muitas saudades da minha terra e, quando lá estou, é uma saudade tremenda, é a minha adolescência, o teatro onde eu estudei, onde cresci, mas… não estou arrependida, fiz bem.
Estrela enquanto professora
Já há mais de 20 anos que dá aulas, na escola Secundária D. Pedro V. Começou com um atelier de expressão dramática e hoje dá aulas ao curso Artes do Espetáculo – Interpretação. Como surgiu a oportunidade de ser professora?
Muito engraçado, eu nunca quis ser professora, mas já na Seiva Trupe insistiam para eu dar um curso. A secretaria de estado da cultura, e eu ia até à Figueira da Foz, a Trás-os-Montes, a Bragança e insistiam que eu tinha muito para dar… Eu respondia que não, que o que eu quero é ser atriz e não professora. Bom, quando estava cá em Lisboa, foi muito interessante e foi o Agostinho da Silva que me pediu, para organizar um espetáculo com textos deles para ser realizado na igreja de Vila Nova de Cerveira. Muito bem! E eu convidei atores, e de entre eles um foi a Amélia Videira. A Amélia disse-me que dava aulas numa escola, mas que não tinha tempo. Que eu é que devia dar aulas… Eu respondi que não, não estava interessada. Mas a Amélia disse-me que eu tinha que de ir à escola pessoalmente, dizer que não. Porém é sempre assim, e todos os sítios onde eu fui dizer que não, acabei sempre por ficar e pronto, assim foi! Descobri que gosto disto! É o que fica e eu gosto de dar isso aos outros. Para mim dar aulas é uma reciclagem contínua, que me obriga a estar sempre muito atenta à vida social, nos adolescentes que são a vida do futuro, como também nos nossos limites como atores ou encenadores e estar sempre a partir do zero e a pôr-me no lugar do aluno. O que é engraçado é quando eu ia dizer não no Teatro Experimental do Porto e também acabei por ficar. Vários momentos aconteceram e isto são momentos importantes. Adoro, todos estes anos passados na escola foram as minhas maiores alegrias. São sempre os meus alunos, os meus grandes companheiros nos momentos bem difíceis. Ou no silêncio, eu sei… Por isso todos os aplausos para eles, por tudo o que me deram, por tudo o que me ensinaram, pelo que cresci como ser humano e pela família que construí. No fundo também é uma família.
Como se sente quando vê os seus alunos a representar na escola?
Quando são trabalhos meus de direção artística, projetos meus tenho muito orgulho neles, primeiro que tudo! Mas também me sinto nervosa e assustada, porque é como se fosse aquelas almas que estão em cena. É como se estivessem todas aqui metidas, dentro do meu corpo. É como se eu fosse todos, por isso eu sinto o mesmo receio que eles, a mesma alegria que eles, e quando estão a receber os aplausos, é como se estivessem dentro de mim.
E como se sente quando os seus ex-alunos se tornam colegas seus em palco?
Muito orgulho e feliz. Já contracenei com alunos e é muito bonito. É muito… a gente sente que afinal já fez qualquer coisa, cumpri qualquer coisa e é muito rico. A Maria Gil que é belíssima, foi minha aluna. Podia dizer muitos nomes, Ricardo Castro, que é um belíssimo ator, enfim são muitos e não me quero esquecer de nenhum. E agora a Lara, mais recente, o Tiago que já anda aí nas lutas, porque isto não é fácil. Nesta profissão, como eu costumo dizer quem aguenta os dez primeiros anos, aguenta tudo. Mas o que é difícil são estes dez anos, porque pode não haver trabalho, podem não o chamar e é preciso aguentar e levar a cruz como dizia o Lorca “o ator calça sapatos de chumbo”. É pesado, mas depois é muito gratificante a vida de um ator, porque todos os dias estamos a trabalhar num novo projeto, a imaginação está sempre a trabalhar, as alegrias, novas pessoas, novos contactos, novas personagens, novas observações, é muito rico, é de ouro, está cá dentro e ao fim de tantos anos parece que já nada nos surpreende, porque já conhecemos tão bem as pessoas. Pronto e isso é uma grande riqueza.
A Estrela ainda se sente nervosa antes de pisar um palco ou antes de começar a gravar?
Antes de pisar um palco, cada vez mais, porque à medida que sabemos que o público exige, e ao fim de alguns anos de carreira, o público exige cada vez mais de nós. O publico está ali mais para ver o que que acontece. Mas aquele nervosismo que eu senti na estreia das Bodas de Sangue mantém-se sempre, e havia colegas meus que se espantavam com isso, “Mas tu ainda estás nervosa?”. Gravar é assim, o primeiro dia de gravações… As gravações não são feitas em sequência, a primeira cena, a segunda cena, a terceira cena… temos que começar muitas das vezes por exemplo pelo sexto episódio a gravar e tem que estar a personagem…
(neste momento há uma pausa na conversa porque apareceu um rapaz e perguntou “aqui há algum sítio que venda tabaco?” e logo a Estrela recordou-se de uma situação parecida) Estava a decorrer um espetáculo da oficina de expressão dramática, e o pavilhão da escola estava cheio. Havia uma portinha onde as funcionárias vestiam a roupa e uma funcionária ficou lá dentro. De repente toca o telefone e ela atende, entra pelo espetáculo a dentro “Ai eu acho que não, é que está muita gente e eu não a vejo” … Os que estavam a interpretar olham para aquilo… Bata cinzenta, eu nunca me hei- de esquecer, e não se ia embora. Até lhe batiam palmas, e aí é que ela ficou contente e não se ia embora. E eu disse-lhe para pousar o telefone, ela pôs o telefone no descanso e ainda foi pior… o telefone fazia “pi, pi, pi” e aquele som… E agora pareceu-me insólito esta personagem vir aqui (imita) “Tem tabaco?” (ri-se). Depois deste pequeno episódio retomamos a nossa conversa.
Nas primeiras gravações, eu tenho que ter a personagem. Eu posso estar no décimo episódio, mas depois a personagem é aquela a mesma no décimo episódio e não a posso perder mais. Em tudo o que é arte, em todos os meus trabalhos, quando eu dirijo os alunos, quando apresento trabalhos, estou sempre numa pilha de nervos. Por isso é que às vezes nem assisto aos meus espetáculos, tudo por causa de isso. Eu venho cá fora desanuviar, depois o tempo que nunca mais passa e depois olho para o relógio e vejo “ai, já falta pouco tempo”. Depois começo a contar para ver o ritmo, para ver quanto tempo falta para acabar o espetáculo e fico muito satisfeita quando se supõe que o espetáculo tem uma hora e o fizemos em 50 minutos. Aí fico toda contente, porque quer dizer que estava no ponto certo.
Como faz para controlar os nervos?
O que eu vou dizer não é didático (ri-se) eu fumo muito. E também…o que controla é acreditar! Eu acredito sempre no que fiz, nos meus alunos e é um bom calmante!
Não gosta de rotinas. Como faz para fugir “delas”?
As rotinas que agora tenho tido são-me impostas, mas gosto muito de ler… E gosto muito de ir ao teatro, mas ultimamente não tem acontecido. Gostava muito de cozinhar, mas agora como o meu marido não está em casa, há um ano, não cozinho. Cozinhar era uma maneira. Mas também porque eu sabia, que ele gostava do que eu cozinhava e quanto mais o surpreendesse, melhor. E, lá está, era uma maneira de eu fugir à rotina, relaxa-me muito, mas agora sozinha não o faço, a não ser que vá à casa de uma amiga. Fugir à rotina… Eu fujo! Eu posso ir num barco diariamente, mas estou sempre muito atenta ao que se passa à minha volta. Lá está, a guardar coisas no meu baú de recordações. É uma fuga à rotina! E hoje uma das coisas que assusta no barco, e no metro são as pessoas só com os olhos postos no telemóvel e a manejá-lo com o dedo durante toda a viagem. É assustador! As pessoas não olham umas para as outras. Por exemplo, a mim encanta-me ver uma pessoa, os sapatos que ela tem, pode ser isto, pode ser aquilo, é a minha imaginação a trabalhar. E isto é uma forma de fugir à rotina.
Vai participar na nova série ‘Onde está Elisa’, da TVI, na qual interpreta Sofia Mendes. O que podemos esperar da sua personagem?
Ela é um enigma, é ternura, mas é uma personagem inquietante. Pelo menos eu construí-a assim. Vamos ver se o público a recebe assim.
O seu lema de vida é viver. O que significa para si viver?
Adoro ouvir o cantar dos pássaros, os miúdos a correr, ver o mar e ter saúde! E dos afetos, dos amigos e das pessoas. Gosto muito de pessoas. Todos os dias descobrir algo, todos os dias ter motivação. E a minha motivação é viver. Viver sempre, até agora. Mesmo em momentos maus, eu nunca desisto porque nós também somos necessários aos outros.