Não legitimado pela medicina até meados de 1980, a Perturbação Dissociativa de Identidade tem gerado controvérsia entre a comunidade médica, mas também suscitado o interesse da ciência. Com a ajuda de um psiquiatra, descubra o que é viver com múltiplos “eus” num único ser
Passados dois séculos sobre os primeiros estudos e descrições sobre a perturbação dissociativa de identidade, o tema ainda não é pacífico entre a comunidade científica e levanta dúvidas quanto às origens e poder que exerce sobre a mente humana. Até ao princípio do século XIX, os doentes que apresentavam aquilo a que agora se chama perturbação dissociativa de identidade eram considerados portadores de um estado de possessão. No contexto sociocognitivo da época, esta crença era considerada válida e ainda reforçada pela tradição.
O transtorno começou a ser estudado por Benjamim Rush, médico norte-americano, que forneceu uma descrição da doença, com base em relatos clínicos anteriores. Posteriormente, Jean-Martin Charcot e Pierre Jabet, médicos psiquiatras, identificaram alguns dos sintomas e acabaram por reconhecer a sua natureza dissociativa. Entretanto, Sigmund Freud e Eugen Bleuler, médico neurologista e médico psiquiatra respetivamente, no final do século, conseguiram identificar os seus sintomas.
O distúrbio das múltiplas personalidades caracteriza-se, segundo Rogério Pires, psiquiatra, “por um mecanismo de defesa, na qual uma pessoa cria personalidades alternativas para enfrentar situações que originalmente não seriam suportadas. Ao contrário das pessoas comuns que têm controlo sobe si mesmas e dos seus atos, independentemente de situações adversas, uma pessoa com múltiplas personalidades não tem consciência das suas várias consciências. A incapacidade que algumas personalidades têm em recordar informação pessoal importante (amnésia) mistura-se com o conhecimento simultâneo da informação por parte de outras personalidades coexistentes”.
Viver com Perturbação Dissociativa de Identidade pode comprometer o quotidiano de quem sofre desta condição. O médico psiquiatra esclarece que “a dissociação altera profundamente a forma como a pessoa vive o dia a dia. Enquanto tem uma determinada identidade e se comporta como tal, deixa de cumprir os papéis, as funções, as responsabilidades e os compromissos assumidos socialmente”.
Os alter egos podem possuir diferentes sexos, raças, idades, utilizar vocabulários diferenciados, comunicar fluentemente em outras línguas que não a identidade original e possuir sotaque. Conseguem, até mesmo, ter um estilo de escrita diferente ou serem canhotas, quando a identidade original é destra. As personalidades têm tendência a serem de natureza bem distinta, exaltando os extremos da personalidade da pessoa. “Muitas vezes, há incompatibilidades entre as duas (ou mais) identidades. Pode acontecer um doente cometer atos delituosos enquanto tem uma determinada identidade”, explica o psiquiatra.
Causas da doença
O desenvolvimento humano exige que, desde muito cedo, as crianças tenham a capacidade de se adaptar a diversas informações e experiências. À medida que aprendem a formar uma identidade coesa e complexa atravessam, inevitavelmente, fases nas quais se mantêm separadas diferentes perceções e emoções e, podem, consequentemente, empregar todas essas impressões para criar diferentes “eus”.
A causa da doença permanece desconhecida, mas, como revela o psiquiatra, “no historial do doente, há, em quase 100% dos casos, um acontecimento traumático, habitualmente na infância, geralmente relacionado a abuso físico ou sexual. Existe também uma conjugação de fatores ambientais como o envolvimento do paciente com pessoas significativas, as relações entre essas pessoas, o envolvimento social-família, escola, relações de amizade, etc.; uma alteração importante e traumática no meio envolvente, como a morte de um familiar com o qual tinham um vínculo importante ou até catástrofes podem desencadear uma perturbação dissociativa de identidade, não existente até então. Também a falta de apoio externo, nomeadamente ausência de suporte de uma figura protetora (um dos pais, professor, etc.) pode causar alguma vulnerabilidade ao doente que favorece o desenvolvimento da perturbação”.
Diagnóstico complexo
Rogério Pires admite que não é, de facto, fácil identificar alguém que sofra da perturbação. “Muitas vezes, o doente nega que tenha essas duas ou mais identidades e se lhe for proposto, pelos familiares mais chegados, seja o marido, mulher, pais, filhos, etc., que consulte um psiquiatra, muitas vezes recusa.” Por vezes, continua o especialista, “quem sofre de perturbação dissociativa de identidade refere-se a si mesmo como «nós», «ele» ou «ela» e quando confrontado com os relatos das pessoas que o viram com outra identidade, lhe é contado o que fez e lhe são mostradas roupas ou objetos que usou enquanto estava com outra identidade, acaba por aceitar que está doente e que tem que se tratar”.
Os doentes detêm um vasto percurso de três ou mais diagnósticos psiquiátricos prévios diferentes e que não responderam ao tratamento. “O diagnóstico é realizado pela clínica observação do doente e aquilo que ele conta – espontaneamente, ou questionado pelo terapeuta – habitualmente médico ou psicólogo. Também é relevante aquilo que outros informadores – familiares e outras pessoas – observam ou têm a relatar”, descreve. Não existem, refere o psiquiatra, “marcadores biológicos (análise clínicas) ou outros exames que comprovem ou ajudem a diagnosticar a doença.”
A mudança de uma identidade para outra é, habitualmente, brusca e, durante cada estado identitário, o doente mantém-se amnésico em relação aos outros estados. “O diagnóstico faz-se pela presença ou ausência, naquela pessoa concreta, de ter duas ou mais identidades diferentes. Por exemplo, habitualmente apresenta-se como professora, mãe, dona de casa. Noutros dias, surge como uma mulher que se veste de uma maneira provocante, vai para locais de diversão noturna, bebe excessivamente e envolve-se sexualmente com homens que desconhece. Nos dias em que trabalha como professora e trata dos filhos, não se recorda das saídas noturnas e, do mesmo modo, quando está num bar, não se lembra que é professora e que tem filhos”, clarifica Rogério Pires.
Perturbação, género e cultura
Os enquadramentos culturais podem condicionar muitas características da perturbação dissociativa de identidade. “Em contextos onde a possessão normativa é comum, as identidades fragmentadas podem tomar a forma de espíritos, divindades, demónios, animais, figuras míticas, etc. Por outro lado, a maneira de fazer a triagem e o registo das doenças mentais difere de país para país, tornando qualquer comparação difícil, ou conduzindo a resultados de uma comparação sem rigor”, acrescenta.
Os valores da incidência e a prevalência da perturbação dissociativa de identidade varia de estudo para estudo. Os resultados divergentes deverão ser o reflexo da utilização de metodologias diferentes. “Um pequeno estudo de comunidade, lançado pela Associação de Psiquiatria Americana, já incluiu o problema no DSM-5- Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, que estabelece diretrizes internacionais de tratamento dos problemas de saúde mental nos Estados Unidos da América. Esta pesquisa comprovou que, no espaço de 12 meses, o predomínio da doença foi de 1,5 %. A prevalência, por sexo, nesse estudo foi de 1,6% para os homens e 1,5% para as mulheres”, expõe o psiquiatra.
Por outro lado, de acordo com uma pesquisa citada no “Manual de Psiquiatria Kaplan & Sadock´s Synopsis of Psychiatry”, as perturbações dissociativas de identidade representam 5% de todas os problemas de saúde mental. Nesse estudo, a maioria dos doentes a quem foi realizado o diagnóstico é composta por mulheres. “A explicação será que a maioria dos homens afetados por esta disfunção entraria no sistema de justiça criminal e não no sistema de saúde mental”, afirma. Este último estudo comprova que esta desordem não é tão comum como a ansiedade ou a depressão, mas não é uma doença tão rara como alguns acreditam.
A condição também em nada tem a ver com a esquizofrenia, ao contrário do que crê a maioria das pessoas. “Na perturbação dissociativa, há uma disrupção e/ou descontinuidade na normal integração da consciência, memória, identidade, representação mental do corpo, controlo e comportamento. No caso da esquizofrenia, a vida psíquica está fragmentada, mas de uma maneira persistente. Existem alterações da percepção, do pensamento, dos afetos, das funções cognitivas, etc.”, esclarece o especialista.
Psicoterapia como tratamento
A perturbação dissociativa de identidade não tem uma cura específica. Não existem remédios estabelecidos para tratamentos desta doença. No entanto, os sintomas podem ser controlados e amenizados com o tratamento indicado pelo psiquiatra, com o objetivo de transformar as múltiplas identidades em apenas uma. “A psicoterapia será o tratamento de eleição, uma vez que os sintomas dos transtornos dissociativos ocorrem em simultâneo com outros distúrbios, tais como ansiedade e a depressão. Os medicamentos para tratar os problemas coexistentes, caso estejam presentes, são por vezes usados em adição à psicoterapia”, avança o médico, acrescentando que “o tratamento com antipsicóticos quase nunca é indicado e o tratamento com ansiolíticos e antidepressivos não se tem mostrado eficaz para o tratamento da afeção. Há estudos que relatam que anticonvulsivantes como a carbamazepina beneficiam certos doentes.”
Múltiplas personas
Existem vários pontos de vista dos profissionais da saúde sobre esta pertubação psíquica, em especial, nos últimos anos. Antigamente, o transtorno era designado de dupla ou múltipla personalidade. Mais recentemente, a entidade mórbida passou a ser conhecida por perturbação dissociativa de identidade. Esta alteração reflete a perceção de que há mais para além de mudanças na personalidade. De facto, comportamentos, memórias, nacionalidade, etnia, entre outras características, também se podem alterar.
Rogério Pires defende que “não existem ou coexistem múltiplas personalidades, na mesma pessoa.” O conceito de personalidade refere-se à noção de integração do modo como a pessoa pensa, se sente e se comporta e à apreciação de si próprio como ser unitário. “Na perturbação dissociativa de identidade, o doente reveste várias entidades, mas não várias personalidades. Cada doente tem a sua personalidade intrínseca que apresenta de uma maneira dominante, comparativamente com as outras, sendo a mesma que o doente revela no consultório do médico ou do psicoterapeuta”, conclui.
Sabia que…
Os transtornos neuróticos associados ao stress podem desencadear alterações corporais, como a cegueira e a paralisia em determinadas personalidades, pois existem perturbações sotatoformes (em que o doente tem sintomas físicos que não são devidos a doença física) e esses sintomas podem ser de foro neurológico, podendo haver cegueira, paralisias e perdas de audição sem que os olhos, os músculos e o aparelho auditivo estejam lesados.