Cristina Cavalinhos é atriz e dobradora portuguesa. Começou por realizar peças de teatro amador na sua terra, Setúbal. Apaixonou-se pela área e foi estudar para a Escola Superior de Teatro e Cinema. Já trabalhou em cinema e televisão, tendo grande destaque nas dobragens.
Começou o seu percurso no teatro em 1982, em Setúbal. Pode-nos contar os seus primeiros passos na área da representação?
Sim, foi aí que descobri o teatro por acaso. Estava no 10º ano e na minha escola não havia nada para fazer, não havia um recreio, não havia uma associação de estudantes. Então, criámos uma associação de estudantes, criámos um espaço para ter uma sala de convívio para os alunos e, depois de tudo isso feito, pensámos ok, já fizemos e agora o que é que vamos fazer. Então, pensámos fazer um grupo de teatro, música. Criámos o Ora Viva. Fomos falar com a junta de freguesia e a Câmara Municipal de Setúbal e eles, por incrível que pareça, cederam-nos um espaço, a Casa da Cultura em Setúbal, onde formámos um grupo de teatro. Fui para o teatro, para experimentar e apaixonei-me. Percebi que era aquilo que queria fazer para a minha vida.
Quando entrou no grupo Ora Viva, como referiu, qual foi o momento em que percebeu que o teatro a faria feliz, que era o seu caminho?
Quando experimentei os exercícios, representar, escrever uma narrativa. A primeira vez que subi ao palco e comecei a fazer teatro pensei: “ok, isto é o que quero fazer”.
Visto que ainda estava no início, não pensou em algum “plano b”?
Se desse errado, na altura, não me preocupava. Acho que na minha época os jovens não eram tão pressionados. Era jovem, nem pensei muito, mas sinceramente já tinha “o plano b” que era ser auxiliar de educação no jardim de infância, onde trabalhei alguns quatro ou cinco anos.
Chegou a participar em alguns projetos que marcaram uma geração, como a ‘Floribella’ e ‘Morangos com Açúcar’. Sente que algum dos papéis que já realizou a fez crescer a nível pessoal?
Papéis de televisão, para crescer artisticamente, não dão muito. Dão para adquirir experiência. Manter a mesma personagem durante dois anos é muito cansativo. Por exemplo, a Helga da ‘Floribella’ era uma personagem com sotaque alemão e gastava tanta energia! Estávamos todos os dias a gravar horas e horas, à espera e a gravar. Deu-me estaleca. Onde vou buscar inspiração, onde experimento é no teatro. Aí é que acho que já fiz algumas personagens que foram muito importantes.
Em algum momento da sua vida percebeu que reproduzia certos hábitos ou até as mesmas falas das personagens?
Foram muitos meses para conseguir tirar certas expressões. Na altura, dava aulas e, às vezes, ficava muito envergonhada porque as palavras levam algum tempo a sair. Há frases de peças que me ficam para a vida toda, porque no fundo os atores têm esse privilégio, não é?
No entanto, além do lado da representação que ama, também sei que faz dobragens de desenhos animados icónicos, que marcaram muitas gerações, como a Sailor Moon e a Bulma, de Dragon Ball.
Sim… (risos)
Esta vertente que ainda não é muito falada. Pode-nos contar como é este universo, como se processa?
As dobragens são uma coisa que existe muito pouco em Portugal, porque vemos tudo legendado. Só existia quando comecei no âmbito de trabalho para crianças, nos desenhos animados. Já se começa a dobrar algumas séries, mas ainda não para os adultos, só para os jovens. Há pouco trabalho, é uma área que, no fundo, faz parte do trabalho do ator. Tem a ver com outras coisas, com ritmo, velocidade, com versatilidade, na metamorfose da voz. Ainda faço dobragens e ainda tenho o privilégio de conseguir fazer tanto a Bulma, do Dragon Ball, com uma Sailor Moon. Às vezes, vêm novas séries e eles ainda me chamam para fazer a voz, embora já se tenham passado quase 30 anos.
A nível da representação, quais são as maiores diferenças entre televisão, teatro e dobragens?
A técnica base é a mesma para todos. A projeção vocal, a dicção, articulação, memorizar textos, colocarmo-nos na posição da personagem. Depois, as técnicas são específicas para cada área. Nas dobragens, temos de dar tudo na voz, tudo aquilo que daríamos se estivéssemos lá de carne e osso. Temos que dar vida a um boneco e é preciso muita energia e emoção na voz. Na televisão, temos que nos estar a ver também um bocadinho de fora e perceber o que é que funciona e não funciona no plano. No teatro, temos a possibilidade de experimentar personagens, ensaiar, voltar a fazer, crescer com o público, portanto, para mim é a verdadeira arte. A televisão não é uma arte, é uma indústria criativa.
Uma curiosidade e talvez uma pergunta difícil. Se tivesse de escolher, qual a área por que optava?
Era difícil escolher uma, porque gosto de fazer tudo. Mas se tivesse mesmo de escolher, escolhia o teatro.
Já que falou nestas diferenças das personagens e escolheu o teatro, há muita gente que tem curiosidade nos bastidores. Como é que a Cristina se prepara antes de cada espetáculo? Tem algum ritual?
Tenho, sim. Costumo aquecer a voz, costumo vestir-me, fazer alongamentos. Começo a pensar nas razões da personagem. Depois, ou canto uma canção, às vezes também rezo, no fundo é a minha concentração. Quando o grupo permite, gosto muito de fazer uma rodinha e desejar muita “merda” a todos para que estejamos todos com a mesma energia em palco.
Numa conversa que teve, já há alguns anos, na SIC com a Maria Helena, referiu também que, além de atriz, dá aulas de representação. Como é conciliar o facto de ser atriz e ser professora de teatro?
Aprende-se imenso sendo atriz e professora em relação a mim, ao conhecer melhor os alunos, as fragilidades deles e as coisas mais fortes. Gosto mesmo muito de dar aulas. Os alunos sabem que podem contar comigo e, portanto, às vezes é também saber gerir. Os meus alunos para mim já são todos os meus filhos. Estou na mesma escola desde 2009 e tenho sempre todas as semanas visitas de alunos.
Atualmente, qualquer pessoa supostamente já é “ator”. Mas o que não sabe é o trabalho que ser ator exige. Como definiria o que é ser ator?
Ser ator é uma profissão que ocupa a nossa vida na totalidade. A nossa profissão é artística, a dedicação e a devoção são muito maiores. Não começa às nove e acaba às seis horas, começa quando acordamos e acaba quando nos deitamos. Todos os atores devem ter formação. O que acontece é que, por uma questão de preconceito, estereótipo e ignorância, os atores em Portugal ainda têm que ser todos bonitos e terem as medidas certas. Vão buscá-los às agências e isso é muito injusto, porque há miúdos desde pequenos que estão a batalhar. Isso faz com que seja um meio perverso onde depois os que não são atores e começam a fazer coisas vão-se deparar com imensas dificuldades, porque não tiveram técnica. Portugal tem que acordar para a vida como Espanha já acordou.
Quais são os apoios que o nosso país devia ter?
Não há grandes apoios. O apoio sou eu própria que ganho de um lado para investir no outro. Para fazer teatro, tenho que investir, não tenho lucro. Quando comecei não era assim, havia uma profissão, havia ordenado, tínhamos subsídio de férias, tínhamos essas coisas todas. Neste momento, é muito complicado.
Com o que me acabou de dizer, uma questão: acha que já se nasce um ator ou forma-se um ator?
Pode-se nascer com essa potencialidade mas, enquanto não se for para a escola, não se forma um ator. Ser ator é uma profissão/vocação que tem que ser trabalhada como qualquer outra. Pode-se ter apetência para ser médico, mas se não se for para Medicina não se vai conseguir ser médico.
O talento…
O talento só vale 10%, o resto é mesmo trabalho, suor e lágrimas [muitos risos].
Para quem está agora a começar o seu percurso como ator e vê que a cultura em Portugal é muito desvalorizada, muitas vezes pensa em desistir. O que diria para ajudar alguém que tivesse receio de seguir a carreira de ator, de concretizar os seus próprios objetivos?
Acho que tem de ter coragem e seguir em frente. Tem que decidir se quer ter todos os confortos, ter a carta depois do 12º ano, o carrinho e o apartamento… e aí vai ser difícil. O mercado da cultura é muito vasto, há muita oferta e verão que vão conseguir. Mesmo sem o apoio do Estado, é meter as mãos na massa. Metam as mãos na massa!
Ir à luta!
É isso mesmo (risos), ir à luta!