Desta vez não foram apenas lamentos, nem protestos verbais, mesmo que o tenham sido também. Foram também acções, uma delas sem precedentes – meia centena de chefes de Estado e de governo de braço dado numa manifestação.
Desta vez não foram apenas lamentos, nem protestos verbais, mesmo que o tenham sido também. Foram também acções, uma delas sem precedentes – meia centena de chefes de Estado e de governo de braço dado numa manifestação.
(É certo que pudemos reconhecer, no desfile político, rostos de meia dúzia dos mais violentos predadores da liberdade de imprensa – censores e torturadores de jornalistas e de bloggers nos respectivos países. Aos quais se juntaram representantes de governos democráticos, cujas práticas lhes deveriam aconselhar igualmente o bom senso de não exibirem tão despudorada hipocrisia em cerimónia pública de tamanha dignidade cidadã.)
Em qualquer dos casos, e ainda que igualmente simbólicas (o que já não seria pouco), todas estas reacções de repúdio ao atentado contra a redacção do Charlie Hebdo atingiram uma dimensão planetária, reconfortando a nossa cidadania global.
Do muito que se disse e escreveu, tocaram-me em particular estas palavras proferidas por Daniel Cohn-Bendit, antigo eurodeputado ecologista e líder da revolta estudantil que, em Maio de 1968, a partir da Sorbonne, incendiou Paris e atingiu a sociedade e a política francesas, inspirando toda uma cultura de vida de uma geração inteira.
É a nossa geração, é a geração dos caricaturistas, umas das últimas formas do espírito do Maio de 68, que foi assassinada.(…) Não é o islão [quem cometeu os assassinatos], são fascistas, não se pode poupar nas palavras. Como houve um fascismo vindo da civilização ocidental, há um fascismo vindo da civilização do islão. (…) [Mas, é preciso] não misturar tudo. O que é aqui atacado, é o direito à crítica radical de todas as religiões. Charlie Hebdo é a crítica anticlerical, é por isso que eles foram mortos. A nossa civilização, o que queremos defender, é o direito a esta radicalidade.
[Tradução pessoal. Original completo da entrevista aqui]
Eram 15h44 em França, quando as palavras de Danny, le rouge, surgiram na edição online do Libération. Polémicas para alguns, elas constituem, para mim (razões de solidariedade geracional?), a mais certeira síntese do que aconteceu.
Só lhes juntaria a ideia (mais virada para o presente incerto que vivemos) de que este foi um ataque armado sem precedentes ao coração do jornalismo, que é uma redacção, e ao lugar sagrado do jornalismo que se faz numa redacção, que é a hora da conferência de redacção.
Os primeiros dias de 2015 anunciam-nos, pois, um ano trágico, na linha do annus horribilis que foi 2014 para o jornalismo e os jornalistas. Nesta espécie de “terceira guerra mundial em fragmentos” (Papa Francisco), emergiu um outro personagem, tornado protagonista forçado, enquanto vítima. Aquilo que o Estado Islâmico não estava a conseguir fazer, tentou alcançá-lo através das decapitações de James Foley e de Steven Sotloff. Logo seguidas da humilhação suprema da profissão, na pessoa do repórter fotográfico britânico John Cantlie, refém transformado em “repórter de televisão”, a apresentar-nos, voz segura e técnica perfeita, imagens da cidade síria de Kobane e desfiando “mentiras” da imprensa ocidental.
No passado dia 7, a Al Qaeda situou momentaneamente a frente da guerra numa redacção localizada numa avenida de Paris. Determinou quem eram os inimigos. E eliminou-os um a um. Duas Kalashnikov contra uma dezena de homens e mulheres empunhando lápis e esgrimindo palavras.
“Matámos o Charlie””, gritaram as Kalash.
Hoje, sete dias depois, o Charlie Hebdo regressou à rua. De novo disposto a enfrentar Kalashs e censores de todos os bordos. O coração do jornalismo, que é uma redacção, voltou a palpitar. 60 mil exemplares transformaram-se em cinco milhões. Disputados por um exército de cidadãos conscientes de que sem um jornalismo livre, não há uma sociedade digna e muito menos democrática.
Adelino Gomes *
14.1.2015
* Adelino Gomes é Doutor em Sociologia, Jornalista e Professor na Universidade Autónoma de Lisboa