A atual pivot do ‘Jornal da Noite’ da SIC partilha a sua opinião sobre a alegada perda de rigor jornalístico nas redações e ainda as mudanças que os meios de comunicação enfrentam com as novas tecnologias. A jornalista defende que a profissão está a viver o período mais apaixonante e desafiante da sua história.
É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e ambicionava ser professora até iniciar o seu percurso, em 1986, na rádio. No entanto, foi no jornalismo que vingou quando, em 1992, optou por pedir a sua Carteira Profissional de Jornalista. Estreou-se em televisão como apresentadora de um programa de desportos radicais na RTP. Mais tarde, abraçou o desafio de realizar testes de admissão de jornalistas-repórteres para a TVI. Acabou por ser escolhida para ser pivot do bloco informativo ao fim de semana e tornou-se o primeiro rosto dos noticiários da TVI. Hoje, é uma das profissionais mais admiradas da estação de Carnaxide.
Alguns analistas dos media identificam alguma tendência para alguns meios priorizarem o escândalo e a tragédia, possivelmente, devido à pressão de superar a concorrência. Cabe ao jornalista intervir de modo a combater esta tendência?
A única obrigação do jornalista é para com a verdade. Os casos de escândalo ou tragédia não me parecem menores do que os casos políticos, sociais… Há escândalos na política. Há tragédias na sociedade. O 11 de Setembro foi uma tragédia. Watergate foi um escândalo. Reportá-los e investigá-los é jornalismo. Se estiver a referir-se ao crime corriqueiro do dia a dia, aí é uma opção editorial. O Correio da Manhã é um jornal que tem esse cunho e é o diário mais lido em Portugal, o que revela mais do povo que somos do que do jornalismo que fazemos. No caso da SIC, mantemos o nosso código de conduta de não alinhar jornais prioritariamente com essas notícias, o que não significa que elas desapareçam.
Um caso como o da morte de Luís Grilo tinha obviamente destaque. Até os telespectadores da SIC estranhariam se não falássemos disso. Mas o atropelamento na passadeira não terá, a menos que seja um caso com impacto social, por exemplo, o atropelamento de peregrinos a caminho de Fátima, como já aconteceu. E mesmo o crime mais comum pode ser uma notícia relevante se impactar seriamente na vida das pessoas ou de uma comunidade, nomeadamente, um bairro onde numa semana ocorram várias situações de violência. Provavelmente, não daríamos a notícia à primeira ocorrência ou à segunda, terceira, mas à quarta já tem relevância jornalística, pela repetição. Depois, a diferença é como se dá, se escreve, se mostra, quem se ouve, que percurso de investigação se segue a partir daí, etc. Digamos que a gestão da informação no dia a dia nem sempre é fácil. Temos de encontrar um ponto de equilíbrio dando prioridade à relevância jornalística, mas sem esquecer o interesse natural das pessoas por certos assuntos.
A comunicação social atravessa um período difícil com o aparecimento das novas tecnologias, que afeta não só a imprensa, mas também a televisão. Acredita que os meios tradicionais irão sobreviver? Será uma questão de descobrirem quais os formatos e a fórmula certos?
Sim, as novas tecnologias não são o inimigo, são a oportunidade para revolucionar métodos. Mal seria do mundo se nas revoluções as tivéssemos tentado combater em vez de as acompanharmos. O que seria de nós hoje sem a Revolução Industrial? A revolução tecnológica é exatamente igual. Não há espaço para velhos do Restelo que se tentam agarrar a antigos formatos condenados tal como estão. Precisam de evoluir. As televisões estão a fazê-lo, os jornais também. Os jornais sabem que o papel está condenado e, por isso, já têm forte presença no digital – o ‘Expresso’, por exemplo, dos 80 e tal mil jornais que vende, um quarto é de assinatura digital.
O grande desafio do jornalismo é outro. É manter-se relevante perante a ameaça da desinformação que deixa nas pessoas um sentimento de desconfiança em relação aos jornalistas. E se a “informação” sem triagem jornalística lhes chega através das redes sociais de uma forma muito semelhante àquela que veem nos jornais ou nas televisões, aí sim, temos um problema porque não se apercebem de grandes diferenças entre ambas e começam naturalmente a retirar importância à leitura de um jornal ou a ver um noticiário televisivo.
É grave porque esses canais – perigosos porque não escrutinados – começam a tornar-se credíveis para elas. E depois é o que vemos – sem sentido crítico acreditam em tudo o que lhes chega. Por isso, no jornalismo, temos de apostar em abordagens inovadoras e mais criativas e diferenciadoras – como já faz ‘New York Times’. Esteve pelas ruas da amargura porque as pessoas não iam pagar para subscrever um jornal se achavam que tinham toda a informação de que precisavam, de forma gratuita, a correr na net. Começaram a criar conteúdo de muita qualidade, pagos, pelo qual as pessoas pagam. É a prova de que o futuro dos jornais em papel, sem papel, é no online com estes conteúdos. As pessoas pagam por jornalismo de qualidade. Não pagam se for mais do mesmo.
Na sua opinião, como é que se pode conciliar as potencialidades das novas tecnologias e a preservação dos princípios fundamentais do jornalismo?
Os princípios fundamentais do jornalismo nunca se perdem só porque temos novas tecnologias ao dispor. Obriga-nos apenas a novos métodos de trabalho e abordagem. Já me parece da pré-história a forma como se faziam noticiários televisivos ou jornais em papel há uns anos. O jornalista chegava, tinha o dia todo para fazer a sua história e depois ia para casa. A menos que acontecesse algum sobressalto, tinha um dia de trabalho mais previsível e tranquilo.
Hoje não. O jornalista chega ao trabalho e não pára. Seja porque, na televisão, a peça que foi realizar vai ter de entrar no canal de cabo que tem noticiários de hora a hora, seja porque depois tem de passar conteúdo para o online, e fazer a peça de maior fôlego para o noticiário principal. E como as redações têm hoje menos pessoas, provavelmente, ainda tem de escrever uns off’s ou sair para um direto de última hora ou mesmo para fazer outra reportagem. E nos jornais, a mesma coisa. O papel é o fim da linha. Tudo entra primeiro no site. E é por aí que se percebe que o papel está condenado. Quando sai na manhã do dia seguinte, todos os assuntos já foram noticiados no dia anterior. Muitas vezes, acabado de sair, já está desatualizado. Percebeu-se muito bem nas tragédias dos fogos do ano passado. Às duas da manhã no fecho, falava-se de 20 mortos – e assim foi para a gráfica – e de manhã já se sabia que eram cerca de 60. Mas o jornal que tínhamos dessa manhã, fresquinho, estava completamente ultrapassado. Inútil.
Atualmente, há quem use o termo do “jornalista- cidadão”, pessoas que não sendo profissionais da área produzem conteúdo ou transmitem notícias. Esta tendência tem contribuído, de certa forma, para a perda de credibilidade do jornalista. Acredita que o jornalismo vai desaparecer ou com o perigo das fake news, as pessoas ganharão consciência da sua importância e voltarão a procurar informação com filtros dos profissionais?
Há em todos nós um jornalista, como há um médico. Acha-se sempre que se sabe o que está em causa e na dúvida vai-se ao “doutor Google”. Pena que uma dor de cabeça, no “doutor Google” possa ser desde uma noite mal dormida a um tumor maligno no cérebro ou, quem sabe, um aneurisma prestes a explodir. Não. O chamado “jornalista-cidadão” é o doutor Google e só reforça a necessidade de haver um verdadeiro jornalista, como um verdadeiro médico. Ele é apenas um cidadão mais ativo que filma algo pela vantagem da proximidade ou reporta informação que lhe chegou ou que testemunhou. Quando a informação passa aos órgãos de comunicação social, precisa de ser vista e verificada por um jornalista para se tornar jornalisticamente relevante. Cidadãos mais ativos, neste campo, sempre houve.
O problema agora é que, com as redes sociais, as pessoas, muitas vezes, optam por publicar e disseminar esses factos, sem qualquer critério. São mais contadores de histórias. Chamar-lhes jornalistas é claramente abusivo. O jornalismo está a viver um dos períodos mais apaixonantes e desafiantes da sua história mais recente. E a sociedade, deveria estar preocupada com os ataques ao jornalismo que o visam, propositadamente, desacreditar. Não é preciso ser muito inteligente para saber as consequências que traz. Basta olhar um pouco para a história e perceber como foi logo por aí que os ditadores atacaram. Não há democracia sem uma imprensa livre e rigorosa.
Jornalismo em mudança
Como jornalista não pode ter uma voz ativa em casos polémicos, mesmo os que dividam os portugueses. No entanto, não deixa de ser cidadã. Considera que é possível equilibrar estes dois estatutos?
O único equilíbrio possível é manter, para mim, a opinião sobre assuntos fraturantes que dividam a sociedade e que, ao serem revelados, criem no público a ideia de que possa estar a assumir um dos lados. Aí, o dever de reserva não é só uma opção. É uma obrigação. No meu caso, nunca senti qualquer dificuldade nesse campo.
Que medidas devem ser tomadas para que o jornalismo regresse à sua essência de procura da verdade e do rigor informativo?
Enquanto jornalista, eu e os meus colegas sempre tivemos princípios orientadores de que nunca abdicámos. O sentido de rigor é sagrado. A procura da verdade também. Isso não mudou nunca, apesar das campanhas obscuras de desinformação que visam precisamente desacreditar o jornalismo e os jornalistas para ganhar poder junto dos cidadãos mais incautos. Essas sim, sem rigor e que procuram instituir uma verdade alternativa ou uma pós-verdade que lhes convém. São sinais dos tempos e que exigem um combate feroz de todos. Jornalistas e cidadãos.
Como é que se encontram formas de financiamento para projetos de profundidade e investigação jornalística, nomeadamente, numa altura de crise financeira?
Fazer bom jornalismo exige bons jornalistas, com inteligência, entrega, dedicação à causa pública. E temos muitos. Os que estão a começar têm de aprender com os mais experientes e têm que desejar apostar mais em ganharem cultura geral e estarem bem informados. Muitos nem são muito bem pagos, mas fazem-no diariamente por amor à profissão. A rentabilidade do jornalismo não se mede dessa forma – o jornalismo é serviço público, não é um serviço comercial. O valor do jornalismo está na credibilidade gerada por bons trabalhos – tanto no dia-a-dia como trabalhos de fundo – e que depois gera valor para a empresa.
A SIC sempre teve uma equipa de jornalistas inteiramente dedicados a fazerem grandes reportagens que levam meses e nunca a questão dos gastos com essas equipas foi um óbice. Não é o dinheiro que afeta o trabalho do jornalista. Aliás, nem temos de nos preocupar com isso porque o jornalismo não se compra e não se vende. O jornalismo faz-se. Eu não vendo notícias. Dou-as. A marca de credibilidade sai reforçada com um bom trabalho jornalístico, e é isso que depois reforça a confiança do público e que leva as agências e as marcas a optarem por investir mais publicidade numa ou noutra estação, não em trabalhos jornalísticos, que esses não estão à venda. Porque temos connosco as classes com mais poder de compra e mais bem informadas – a marca SIC é uma marca de confiança – é natural que certas marcas queiram investir na SIC e não noutro canal.
O jornalismo não exige investimento direto, as reportagens não se compram a peso, o que acontece é que manter uma televisão no ar exige muito investimento, mas a parcela gasta em salários e funcionamento de uma redação é brutalmente inferior à das novelas e programas por exemplo. Resumindo, a qualidade jornalística é o principal fator para reforçar a marca de credibilidade que contamina positivamente a captação de investimento para um canal, não ao contrário. Só a qualidade traz bom investimento. Não nos interessa ser uma loja do chinês com produtos de duvidosa qualidade.
Nem tudo se resume a números, há que criar empatia. Como se cria esse tipo de relação com o público?
É um processo que leva anos. Imagine o que é estar exposta no ar a ser escrutinada por todos. Se se errar, vai tornar-se um saco de pancada, ainda mais hoje com as redes sociais. É uma pressão enorme. Cria-se empatia na forma como se transmite a informação às pessoas, na forma como elas, ao longo dos anos, aprenderam a confiar em nós porque nos reconhecem a independência e qualidades necessárias para estar nessa função. A empatia e a credibilidade conquistam-se a pulso, provando todos os dias, no ar, ser mais e melhor. A margem de erro é mínima. Um jornalista mal informado, tendencioso, que não saiba entrevistar, moderar debates, pensar um pouco fora da caixa para marcar pela diferença, dificilmente vai conquistar as pessoas a esse nível. Todos os dias, somos postos à prova sob grande pressão. Nem todos têm capacidade para isso e, assim sendo, destacam-se os melhores.
Nos anos 70 e 80, as redações ainda eram tradicionalmente masculinas. No entanto, nos últimos anos, a percentagem de mulheres na área tem vindo a aumentar. Hoje, as mulheres representam 41% do total de profissionais com carteira profissional. Da sua experiência, o que mudou para as mulheres jornalistas, ao longo destes anos?
Mudou quase tudo a esse nível. Os homens podem ser ligeiramente mais, mas as mulheres estão em maioria, por exemplo, na apresentação de noticiários. Algo impensável há poucas décadas. Eles são mais em cargos de direção e chefia, mas também isso está a mudar. Isto acontece porque há mais mulheres nas faculdades de comunicação e jornalismo. Na verdade, acontece em todas as áreas do saber. Os homens estão de novo mais virados para as engenharias e, assim sendo, o jornalismo tem cada vez mais mulheres. Mas não quero pensar que no futuro as redações possam ser compostas só por mulheres. É necessário equilíbrio. Se o jornalismo é feito para homens e mulheres com diferentes sensibilidades, também nas redações deve ser assim. Jornalistas com sensibilidades diferentes, abordagens diferentes, formações académicas diferentes, sexos diferentes só enriquecem uma redação.
Sendo a única jornalista portuguesa que foi pivot dos principais noticiários dos três canais generalistas, sente que tem uma responsabilidade acrescida?
Não sinto por isso, por ter estado nos três canais generalistas. Sinto uma responsabilidade acrescida por ser o elo de comunicação com o público: de estar a representar toda a redação. A pressão dessa responsabilidade obriga-me a nunca dormir no posto, a ser sempre super exigente comigo própria e a colocar-me pressão quando mais ninguém à minha volta a coloca, porque acha que já faço aquilo com uma perna às costas. No dia em que achar que aquilo é fácil e que já não tenho de dar muito de mim, é o princípio do fim.
Em 1992, pediu a Carteira Profissional de Jornalista optando definitivamente pelo jornalismo. O que a fez apaixonar por essa profissão?
A possibilidade de impactar positivamente na vida das pessoas ao esclarecê-las, ao dar-lhes informação relevante, ao fazê-las pensar mais um pouco pelas suas cabeças também. A possibilidade de trazer a verdade para o espaço público. A possibilidade de fiscalizar os que poluem a democracia. O bom jornalista é um soldado da verdade, sem medo de ir para a guerra e sem medo de morrer nela. Um jornalista que se deixe intimidar, que não tenha coragem para colocar uma pergunta dura, não serve para a profissão. É só um pé de microfone.
Um estudo realizado pelo investigador Miguel Crespo do ISCTE concluiu que 46% dos jornalistas consideram extremamente difícil conciliar a vida pessoal e a vida profissional. Enquanto jornalista, sente que a sua vida pessoal fica de certa forma colocada de lado devido à exigência que a sua profissão requer?
No meu caso não. Os repórteres têm uma vida mais complicada a esse nível. Mesmo sem horários, tenho mais liberdade para os gerir. No caso do repórter com serviços marcados que tenha de percorrer o país e andar sempre em “bolandas”, é mais complicado. No meu caso, tenho de trabalhar a seguir ao almoço e termino depois do jantar. Muitíssimas vezes, trabalho em casa, por exemplo, a preparar entrevistas ou debates. Não tenho obrigatoriamente de estar na redação e isso acontece nas minhas horas de descanso. Mas é mesmo assim, já estou habituada. Há alturas de maior aperto e outras mais tranquilas. Tenho conseguido gerir com equilíbrio.