É um gabinete num oitavo andar que espelha bem o amor que a presidente da Câmara Municipal da Amadora tem pela sua terra: nas paredes, há pinturas, há paisagens que retratam a cidade e, claro, algumas bandeiras oficiais. Da janela, em grande plano, a estação ferroviária. Foi aqui que o UALMedia apanhou a locomotiva para uma longa conversa que cruzou política e igualdade de género.
Começou o seu percurso político em 1993, na Assembleia de Freguesia da Reboleira. Hoje, aos 48 anos, pode dizer que se sente realizada a nível profissional?
Sou uma mulher realizada, sem dúvida. Tenho o privilégio de fazer o que gosto. As autarquias são muito interessantes, adoro a Amadora, é a minha terra.
Quando comecei [a trabalhar] na Assembleia de Freguesia, nunca me passou pela cabeça ter vida autárquica. Estava a trabalhar numa corretora da Banca. Sempre gostei muito de política. Convidaram-me para integrar a lista, não era sequer militante do Partido Socialista na altura. Era da Reboleira e achei a ideia engraçada. Fui para a Assembleia de Freguesia e fiz lá quatro anos, sempre a trabalhar. Em 1997, o anterior presidente convidou-me para fazer parte da lista da Assembleia Municipal e aceitei. Fui eleita por muito pouco, era a 15ª, salvo erro, sendo a última a ser eleita para a Assembleia Municipal. Quando o anterior presidente me convidou, disse que preferia continuar na Assembleia de Freguesia, mas aceitei o desafio de vir para a Assembleia [Municipal]. Surgiu a possibilidade, a convite novamente do anterior presidente, para integrar a lista para a Câmara, que aceitei.
Na política, a única coisa que me imagino a fazer é ser autarca, tenho o privilégio de fazer aquilo que gosto.
Em resumo, esteve um mandato na Assembleia Municipal da Câmara Municipal da Amadora em 1997, assumiu funções de vereadora durante três mandatos da Câmara e foi candidata à Câmara Municipal da Amadora. Sentiu alguma vez discriminação por ser mulher neste meio constituído maioritariamente por homens?
Sim, não posso dizer que não senti. O mundo da política é muito masculino e tudo está adequado aos ritmos masculinos. As reuniões tardias, por exemplo. Senti discriminação muitas vezes, mas as coisas têm vindo a mudar. Mas, sim, foi frequente mesmo quando assumi funções de vereadora. Muitas vezes, estar em reuniões só com homens e está ali uma única mulher… na altura, tinha 30 e poucos anos, o que tornou o processo mais difícil.
Quando cheguei à Câmara, já com funções de vereadora, os dirigentes eram maioritariamente homens mais velhos do que eu. Não foi um processo de início muito fácil. Penso que temos sempre de nos esforçar em dobro ou em triplo para demonstrar que estamos ali por mérito e competência. Ainda se sente [discriminação], mas naturalmente vamo-nos afirmando. Também é um mundo masculino, porque muitas vezes as mulheres não têm muita disponibilidade. Tornei-me muito masculina na política e acabei por ter sorte ao longo do percurso.
No entanto, nunca me senti discriminada do ponto de vista de aceder a cargos políticos, mesmo dentro do PS. Pelo contrário. Já sou de uma fase do partido [início dos anos (19)90, final dos anos 80] em que se puxava muito pelas mulheres do ponto de vista do partido e dos cargos. Tem vindo a melhorar, as quotas têm tido um papel importante. Como presidente, às vezes ainda se sente, [as pessoas] serem um bocadinho mais condescendentes. É um mundo onde sentimos muito machismo e, essencialmente, paternalismo.
“Fui buscar mulheres, por achar que tinham competência e não para cumprir quotas”
Segundo o jornal Público de dia 9 de março deste ano, “na Europa, de acordo com o Eurostat, a média de proporção de mulheres nos 28 governos nacionais fica-se pelos 30,2% (em Portugal é de 36,1%) e nos parlamentos pelos 29,9%. Em Portugal, onde temos 36,4% do Parlamento composto por mulheres, a nova lei da paridade em titulares de cargos políticos, que estabelece uma representação mínima de 40% de cada género, foi aprovada a 8 de fevereiro (…) A lei deveria entrar em vigor a tempo das legislativas de outubro, mas ainda não é certo que isso aconteça.” Existe uma assimetria entre homens e mulheres na política, que resulta de processos complexos e da interação de vários fatores que dificultam a mudança para a igualdade. Do seu ponto de vista, quais são os motivos que possam causar ou contribuir para esta disparidade?
Bom, na Amadora, temos uma particularidade. Aqui, somos 11 no executivo municipal, contando comigo. Sete são do PS, uma vereadora é do BE, um do CDU e dois vereadores são do PSD. Mas no PS temos quatro mulheres, eu e três vereadoras, e temos três homens vereadores.
O PS sobre esse ponto de vista tem feito um esforço muito grande. Aliás, nas listas agora para as legislativas, o secretário-geral deu indicações claras às estruturas: uma lista 50-50, independentemente de ser 40% [a representação mínima] aprovada.
Aqui, ninguém impôs nada, quando fiz a lista foi opção minha. Fui buscar mulheres, por achar que tinham competência e não para cumprir quotas. Achava que, independentemente de serem mulheres ou homens, eram uma mais-valia. Escolhi pela confiança e empatia para gerar um projeto para a cidade, e aconteceu ser assim. As pessoas têm de ser, como costumo dizer, “leais institucionalmente e solidárias”. Tentamos que as equipas reflitam a realidade da comunidade que gerimos. Nesse ponto de vista, é importante que os partidos tenham mulheres, mas também jovens. É importante rejuvenescer.
A que se devem estes processos? Como é que isto se muda?
Passa um pouco pela alteração de mentalidades e pelas mulheres estarem disponíveis para estes papéis, não é? São importantes diversas questões, como gostarmos da vida política, independentemente de não ser a nossa atividade em determinado momento. A minha não foi durante muito tempo, mas já me envolvia muito. Quando gostamos, ajustamo-nos, é preciso ajustarmo-nos à vivência dos partidos. Gostar de discutir estratégias, de pensar o país e a cidade, de estar em focos de discussão.
E é preciso, sem dúvida, ter um bom suporte familiar e tenho essa sorte. Os meus pais acham muito interessante o facto de gostar de política, sempre me apoiaram em todos os momentos. Posso dizer que em casa, se me perguntar o que falta, não faço a mínima ideia. O meu marido é que gere isso. Por exemplo, esta semana não vou estar noite nenhuma, só vejo o meu filho de manhã, mas o meu marido compreende. É essencial haver esta colaboração familiar, para que tudo corra bem. Chego aqui cedo, maioritariamente trabalho com homens, passo noites em reuniões. Se tivesse um companheiro que não percebesse ou não confiasse em mim era muito mais difícil. Ter vida familiar é importante para nos sentirmos realizados. Gostarmos daquilo que fazemos é uma parte, mas depois precisamos do resto.
Na mesma peça, afirmava Carla Tavares [Gaspar], deputada socialista: “Não obstante termos cada vez mais mulheres nas listas para os vários lugares políticos, estas mulheres continuam a ser escolhidas por homens. Esta, sim, é uma circunstância que tem de ser alterada e que acreditamos que no futuro vai fazer toda a diferença”. De acordo com a sua experiência pessoal, as mulheres devem ser as primeiras a repensar se estão a tomar a atitude mais correta perante este tipo de situações de desigualdade?
Sim, devem repensar e estar presentes no momento da decisão, e isso hoje é possível. Por exemplo, a Catarina Martins, no Bloco de Esquerda, a Assunção Cristas, no CDS-PP, já são líderes de partidos. É ter a capacidade de sair da nossa zona de conforto.
É mais confortável estar de bem com toda a gente, e por exemplo dizer: “Eh pá, eu até podia participar aqui nalguma reflexão sobre a escolha de deputados, mas não quero criar atritos com ninguém. Eles que decidam.” É importante a capacidade de inverter isso. Se tenho responsabilidade nos momentos bons, também tenho nos menos bons. Há que ter coragem de nos momentos menos bons fazer algumas escolhas. Essas decisões não são fáceis, mas também nos compete estar e participar nesses momentos.
As mulheres têm um papel importante nas decisões e fazem questão de decidir. Se calhar, há 20 anos era impensável. Bem, tivemos a Maria de Lurdes Pintassilgo. Hoje, temos mulheres a liderar partidos de oposição e combativas, o que ajuda a mudar as mentalidades, porque estas questões da representatividade feminina não são monopólio de nenhum partido político. Aí não podem haver fronteiras, nem partidos. Temos de ajudar em conjunto. Somos parte dessa mudança, enquanto agentes políticos e enquanto mulheres na política. Tem que partir também da nossa vontade.
Segundo a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género: “Também ao nível local, o número de cargos de Presidente de Câmara ocupados por mulheres constitui um bom exemplo disso [de desigualdade], tendo atingido o seu máximo nas eleições autárquicas de 2009, com 23 mulheres a ocuparem o cargo, em 308 câmaras existentes”. Qual foi o motivo que a levou a candidatar-se ao cargo de presidente da Câmara Municipal da Amadora?
No meu caso, acho que era quase natural, não é? Tive 12 anos de vereadora. Nos 12 anos de vice-presidente da Câmara, naturalmente fui preparada e deixei-me preparar. Tive de me deixar preparar, para me candidatar, pelo PS, à Câmara Municipal da Amadora. Sinceramente, falei com a minha família, na véspera de ser escolhida e votada no partido. Acho estas coisas muito voláteis nos partidos políticos. Diziam: “Ah! Vais ser tu!” e respondia: “Oh pá, está bem, vemos quando chegar a altura.” Não escondo que não era uma coisa que me desagradava, mas também não tinha que ser a qualquer preço.
Acho que tem muito a ver com as autarquias. É ainda um bocadinho difícil, porque também não há muitas mulheres. Somos 18 na Área Metropolitana, e até é muito bom. Somos três presidentes de Câmara na Amadora, Almada e Setúbal. De facto, não há muitas mulheres disponíveis para as escolhas que a vida pública e as funções que a sua natureza obrigam. Muitas vezes, de facto, não se aprecia tanto porque não se está tão disponível para preterir momentos com a família. Há concelhos onde não há, de facto, mulheres. Julgo que se deve a este conjunto de fatores. Os partidos ainda são muito masculinos.
“Havia muita pressão silenciosa à minha volta para que abrandasse mais, para deixar mais a Câmara e o Partido”
De acordo com o jornal Público do dia 24 de junho do ano passado, “um estudo sobre carreira política feminina – promovido pela Women Political Leaders e feito em 2014, com base no depoimento de 457 deputados de 84 países – traça um retrato previsível: elas tendem a iniciar a carreira política mais tarde, a ter menos filhos, a passar mais tempo a cuidar da família e a organizar-se para encurtar deslocações; tudo indica que só as que têm retaguarda familiar avançam com uma candidatura; os homens tendem a fazê-lo mesmo que a família os desencoraje”. Sendo mãe de um rapaz e, ao mesmo tempo, tendo um cargo que exige tanta dedicação da sua parte, como consegue conciliar ambas as funções?
Tenho um filho com 11 anos e trabalhei até ao último momento antes de ir para a maternidade. Ele tinha três semanas e ficou entregue aos meus pais. Fui trabalhar. Acabei por me adaptar muito bem a um mundo que é muito masculino, e que se sente. O meu filho nasceu em 2007, quando engravidei era vice-presidente da Câmara. Nesta vida, vamos ganhando muitos anticorpos: toda a gente apostava que me ia afastar porque “agora vai ser mãe”. Mas não me imaginava em casa seis meses. Tinha a sorte de os meus pais viverem aqui perto e o facto de serem novos e reformados cedo. Ainda por cima, o meu filho é filho único e primeiro neto, foi um neto muito desejado…
Dados que corroboram as conclusões do tal estudo.
Sim. Fui mãe tarde, com 37 anos, numa altura em que não pensava muito sê-lo, mas foi um filho muito desejado. Havia muita pressão silenciosa à minha volta para que abrandasse mais, para deixar mais a Câmara e o Partido. O meu filho nasceu no dia 29 de agosto. No dia 11 de setembro era feriado e disse ao anterior presidente que me apresentava para a ação solene. O João ficou com os avós até aos 3 anos, depois foi para a escola. É verdade que precisava de mostrar que a maternidade não era uma doença e que conseguia ser uma boa mãe, mesmo não gozando os seis meses e não amamentando. Precisava do meu ritmo, da agitação do dia a dia para conseguir ser uma melhor mãe e tinha isso presente.
Poucas mulheres assumiriam este facto, não lhe parece?
Sim, e conto-lhe mais. Na segunda consulta a que fui com o meu filho, para o teste do pezinho, cheguei atrasada. Estava a minha mãe e o meu marido, cheguei aflita, era o primeiro filho e atrasei-me. Lembro-me de a pediatra dizer: “Relaxe, o que importa é que está com o seu filho e que os momentos em que está com ele são de qualidade.” Senti-me muito culpada, mas aquela conversa ajudou-me.
De facto, tenho absoluta consciência de que os momentos que tenho com o João são de qualidade e onde a família está presente. É a única pessoa que me consegue fazer desligar dos problemas do dia a dia. Nos tempos livres, quando estou com ele, sou mãe e não presidente da Câmara. Nós [mulheres] também precisamos da compreensão da família, de ter pessoas ao nosso lado que são o nosso suporte, para avançarmos e entender que isto é uma missão tão nobre e honrosa quanto outra qualquer. Há dias que custa, mas encararmos com naturalidade. Não é fácil. Se calhar, não estive em determinados momentos importantes, mas acho que sempre consegui compensar isso.
Tenho uma excelente relação com o João. É quem mais me preocupa, no meio de todos estes processos. Não aparece comigo, não gosto que apareça. Mas há sempre dois momentos em que está comigo: quando apresento as candidaturas e quando tomo posse. Sinto genuinamente que é o meu grande fã.
“É importante que mais mulheres estejam e se encantem pela vida política”
Ainda citando a primeira notícia do jornal Público, existem “dados apresentados pela diretora do EIGE que mostram que 45% das mulheres nunca discutem assuntos relacionados com políticas europeias com amigos ou familiares. Entre os homens, a proporção desce para 35%”. Que mensagem gostava de deixar a futuras candidatas à vida política? Algum conselho em particular, para ultrapassar alguma adversidade?
Acho que a política está em tudo na nossa vida, até na reunião de condomínio. Não tenho nenhuma mensagem especial, quem sou eu? A política é uma missão muito nobre e cada vez mais difícil devido ao escrutínio ser grande. Como em tudo na vida, há o bom e o menos bom. O que se vai construindo à volta dos cargos políticos de menos positivo é muito relevante. Continuo a dizer: é preciso gostar e acreditar no que fazemos. Sem desprimor para qualquer outra função, é das funções mais desafiantes. Também pela particularidade de estar na minha terra, não faz sentido ser de outra maneira.
Pode falar-nos um pouco desses desafios?
Tive sorte, comecei a trabalhar cedo quando ainda estudava, os tempos eram muito mais fáceis e tive a oportunidade de começar a trabalhar numa área que gostava muito. Foi bom. Aos 20 anos, uma pessoa estar a acabar de estudar e poder começar a trabalhar numa área que gosta e, ao fim de seis meses, passar para os quadros… hoje era impensável. Desde que tenhamos o privilégio e a sorte, tudo se torna mais simples. Há coisas na vida que não podemos fazer por receita médica. Não podemos dizer: “anda cá que isto é giro”. É preciso gostar, ter apetência. Sempre fui absolutamente fã da Amadora, irritava-me quando diziam mal da cidade, achava que não era nada daquilo. Era muito jovem quando comecei a interessar-me pela freguesia. Conhecia as pessoas e estava habituada a dar-me com pessoal do PS e do PSD. Éramos da Reboleira. Achava giríssimo. Os meus pais ajudavam no recenseamento. Este meu envolvimento veio muito daí.
As mulheres fazem falta na política, porque esta deve refletir a sociedade. Só conseguimos se tivermos em órgãos de decisão mulheres e homens, para ajudar a construir uma sociedade mais justa. É importante que mais mulheres estejam e se encantem pela vida política, e que participem. É uma forma nobre de contribuir para uma sociedade mais coesa.
E para uma cidade mais equilibrada…
É importante ter os setores todos e tentar que na lista esteja [repensada] a cidade. A cidade faz-se disso. Quanto maior a diversidade que reflita o território conseguirmos trazer para as equipas, melhor será o nosso trabalho. Precisamos de sangue novo, que se encante por vivências políticas, e cada vez mais vejo isso. No próprio PS, a preocupação em abrir a independentes, a jovens, a mais mulheres, ter as questões da multiculturalidade muito presentes no nosso país. Isso só vai fazer com que tenhamos melhores equipas, quanto mais representativas forem da realidade. A comunidade que gerem é feita de mulheres, de homens, de pessoas mais jovens, de pessoas menos jovens. Tentamos refletir a comunidade na equipa. Temos pessoas como o vereador Agostinho, com 60 anos, a Margarida, jovem e vereadora pela segunda vez. No mandato passado, a Margarida também estava na lista, foi aluna da Secundária da Amadora, começou a assumir funções de vereadora, ainda estava no 12º ano. Assim se reflete a comunidade na equipa!