Afonso Pimentel, 39 anos, é um dos atores do elenco de “Glória”, a série que leva a ficção nacional à plataforma de streaming mais famosa do mundo. O ator conta ao UALMedia como se sente por integrar a primeira produção portuguesa para a Netflix.
O Afonso tem uma vasta carreira na representação: ator de cinema e televisão, mas também realizador de curtas-metragens, telefilmes e telenovelas. Na sua biografia, destaco os filmes “Mistérios de Lisboa”, “As Linhas de Wellington” e a série “Sul”. Alguma vez tinha ponderado trabalhar para uma plataforma como a Netflix, que chega a um público muito mais vasto e geograficamente disperso?
Trabalho há 20/25 anos e cresci numa fase em que dispararam os videoclubes. Nessa altura, tinha um fascínio muito grande para tentar que um trabalho meu estivesse aí. Agora que surgem as plataformas digitais e em que há este impacto, obviamente que há “um desejo secreto” de poder estar numa destas plataformas, sobretudo pelo facto de aumentar exponencialmente o número de pessoas que podem ver o teu trabalho e que podem ouvir as tuas histórias.
Acha que por ser uma produção para a Netflix a sua responsabilidade “aumenta” enquanto ator? Que os espectadores esperam mais de si?
Não penso dessa forma. Houve um peso durante a rodagem para todos, não só atores, como realizadores, a direção de arte e todos os técnicos, para fazermos algo de que nos orgulhássemos e que não fosse uma oportunidade perdida. Que fosse algo que não nos envergonhasse, mas em que tivéssemos orgulho. Não tanto por uma questão nacional, mas por uma questão de grupo, pois isto pode ser muito bom para todos. Uma plataforma destas, com o peso que tem, pode significar trabalho para muita gente. Para isso, tem que estar bom e bem feito, e essa era a nossa preocupação. Até de proteção do nosso mercado, mantendo o nível de tabelas e, se possível, subir. Não pelo dinheiro, mas pelas condições de trabalho e para poderes escolher os projetos e continuar a trabalhar nesta área.
“O trabalho de ator não se pode limitar a decorar o texto e a dizê-lo”
Falemos agora do seu personagem, o Gonçalo, um tipo de homem bastante diferente do homem do século XXI. Onde se inspirou para a construção do personagem, desde o vocabulário utilizado, às expressões físicas e demais características?
Primeiro de tudo, no guião. O guião é a tua primeira bíblia de trabalho. Depois, quando pegas no guião e vês a escrita das frases, entendes porque ele [o personagem] diz determinada coisa.
O trabalho de ator não se pode limitar a decorar o texto e a dizê-lo. Passa por perceber o que se passa na cabeça daquele homem. Ele tem uma frase que diz “as estrangeiras são todas umas putas” e tu podes dizer isto de mil formas diferentes. O Tiago Guedes [realizador de “Glória”] disse-me “acho que ele diz isto porque, muito mais do que ser machista, é uma questão de se referir às mulheres de fora, que não são tão sérias como as portuguesas”, virando-se sempre para o lado mais político. Isso ajudou-me a descobrir de que forma o Gonçalo pensa e de onde vem toda esta vontade de sobreviver social e politicamente.
O Gonçalo não quer ser miserável a nível social, quer ter um status, e esse status vem destes jogos de poder. Tudo o que foi construído para o personagem, a maneira de falar, andar, comer, beber, foi pensado tendo isso como fundo.
“Glória” é uma série que retrata uma parte negra da História do nosso país, mergulhado num regime ditatorial. Tendo em conta os tempos que vivemos, com os extremismos a ganhar voz e até alguma força, esta série veio no momento certo? Pensaram que, mais do que informar como se vivia naquela época, pode alertar para a necessidade de se ter em conta escolhas críticas e participativas, de cidadania, a partir da noção do que é viver privados da liberdade?
Gostava que ajudasse, mas duvido que tenha sido criada com esse intuito. Como é um retrato tão artístico não tem um objetivo específico e tão direcional, mas acho que tem tudo para fazer pensar: a questão da emancipação da mulher, a questão da identidade de género, a questão da liberdade política e de pensamento acho que podem e devem ser objeto de reflexão.
“Fico muito contente, não só por estar na plataforma, mas por poder abrir espaço para que haja mais trabalhos para mim e para os outros, para que possamos crescer artisticamente’’
Portugal é um país que, às vezes, é visto como “pequeno” e “que pouco alcança”. Agora já demos mais um passo para o exterior, com “Glória” na Netflix. Isto deve ser visto como um impulso para continuarmos em frente e ganharmos autoestima? Para os nossos atores, encenadores, produtores e realizadores serem mais valorizados cá dentro?
Sempre defendi isso. Atualmente, tenho mais dúvidas. Sempre achei que precisávamos de uma série que corra muito bem lá fora para nos começarmos a respeitar mais. Mas também há tantas outras que fizemos e que são tão boas, mas sofreram do preconceito de serem portuguesas. Acho que isto pode servir para começarmos a procurar outras coisas que já saíram, muitos dos nossos filmes foram grandes sucessos em festivais internacionais. Gostava que fossem ver, por exemplo, “A Herdade” do Tiago Guedes, que fossem ver o “Coisa Ruim”. É mais desejo do que uma certeza, mas gostava que servisse para isso também.
Acha que o facto de estar nesta série é uma forma de reconhecimento do seu trabalho? Um privilégio?
Acho que sim. É algo que me orgulho de ter feito. Tenho muito orgulho por dois motivos diferentes: primeiro, porque artisticamente me deu um gozo muito grande, foi difícil e tive de descobrir como ia fazer o personagem. Tive algumas dificuldades em perceber como o Gonçalo seria e não queria cair no estereótipo, queria que fosse credível. E depois, comercialmente, como hipótese de trabalhos futuros. Fico muito contente não só por estar na plataforma, mas por poder abrir espaço para que haja mais trabalhos para mim e para os outros, para que possamos crescer artisticamente.
Há diferenças entre uma produção nacional e internacional?Há. Tu decides, por exemplo, que podes estar só um dia a ensaiar quatro cenas seguidas e dar-te ao luxo de a filmares só amanhã. Há uma cena na série, que é a explosão de uma casa, que teve só dois dias de ensaios porque tinha um plano de sequência complicado. Foi muito ensaiado e, quando estávamos prontos para filmar, a luz já não era exatamente a que se pretendia. Como tínhamos tempo, ficou para o dia a seguir. Se fosse outra novela ou série [em Portugal], tínhamos de filmar naquele dia. Aqui o realizador decidiu, em conjunto com a produção, fazer aquela cena no outro dia, e assim foi. Aí, notas que é diferente.
Como pergunta final, o que é ser ator?
Para mim, é a possibilidade de ser feliz a trabalhar. É poder fazer algo que gosto e que me deixa feliz, mas ao mesmo tempo instável e inseguro de como fazer, sabendo que tens as ferramentas corretas, mas tens ali um espaço de imprevisto e imprevisibilidade. Isso, para mim, é o que é ser ator, é a coisa que mais gozo me dá.