Marcelo Rebelo de Sousa, professor catedrático, político e comentador, fala das suas escolhas de vida, da política, da atual e futura situação do ensino superior em Portugal, e da sua possível candidatura à Presidência da República.
Sei que teve algumas dificuldades em escolher a área profissional que iria seguir e que ia ser determinante para o seu futuro. Porquê o Direito?
Por uma razão muito específica e aparentemente surpreendente: o meu pai quis tirar o curso de Direito e o padrasto não autorizou e impôs o curso de Medicina. O meu pai foi médico à força. De alguma maneira, quis vingar aquilo que foi a educação forçada do meu pai. Muitos dos maiores amigos do meu pai eram professores de Direito, portanto, desde novinho sempre quis ser professor de Direito, não apenas formado em Direito. Havia muito o hábito das pessoas almoçarem e jantarem em família e com os amigos, e discutia-se Direito. Isso marcou desde muito cedo, aquilo que viria a ser a minha vocação e a minha carreira.
O facto de ter crescido rodeado de pessoas ligadas ao mundo político – como o seu pai e Marcelo Caetano – contribuiu para o seu interesse pela política e nomeadamente para a sua entrada para o PSD?
O meu pai era político, adorava fazer política, era salazarista. A minha mãe era muito política, anti-salazarista e assistente social, muito mais à esquerda do que o meu pai. Era muito, muito, frequente a discussão política em nossa casa. Desde miúdo, fiquei também muito, seduzido ou atraído, sensibilizado para a política.
A candidatura às presidenciais
O que pensa sobre a vontade que muitos portugueses demonstram em se candidatar à Presidência da República? É uma realidade que possamos ver em 2016?
Acho que não se sabe ainda. Ser-se candidato não é, ao contrário do que às vezes oiço dizer, uma questão de fixação ou de moda. Para mim, é uma questão que tem a ver com a realização pessoal. Por outro lado, também não é assim uma coisa que seja um devaneio. Bom… é-se ou não se é candidato presidencial, de acordo com um conjunto de circunstâncias. A primeira é: se se pensa que há uma razão nacional que justifica, num determinado momento, o dever de uma candidatura. Segundo lugar, se se acha que não há mais ninguém em melhores condições para, não só se ser candidato, como ser Presidente. Terceiro lugar: se se acha que naquele momento se tem as condições subjetivas e objetivas adequadas para uma candidatura dessa natureza e para o exercício de função. Ninguém se candidata seriamente, na minha visão, só por se candidatar. Admito que haja candidatos por outras razões, mas não é o meu caso. Há várias outras motivações, mas, no que me toca, só acho que faz sentido se for para concorrer, pensando em ganhar, o que significa que tem de se pensar se há, na altura em que se decide a candidatura, um conjunto de condições pessoais, famíliares, políticas e objetivas mais adequadas para isso. Essa ponderação, na minha opinião, deve ser feita este ano depois das eleições legislativas, não antes. Está tudo muito fluido, niguém sabe exatamente qual é a situação económica, social e política daqui até ao final do ano. Ninguém sabe qual é a situação que vai emergir das eleições legislativas, embora provavelmente seja a ausência de uma maioria absoluta e, portanto, uma grande instabilidade governativa, o que aumenta o papel do Presidente da República e a sua responsabilidade. Ninguém sabe como é que estão os portugueses de estado de espírito [pausa]. É imprevisível, em relação à crise. Ninguém sabe um conjunto de dados que são muito importantes para a pessoa se posicionar. Ninguém sabe, nomeadamente, como é que os partidos se vão posicionar perante as presidenciais: se cada um quer ter o seu candidato, se querem ter um candidato a concorrer imediatamente, se querem ter um candidato para utilizar nas legislativas – ligado à candidatura às legislativas. Todas estas circunstâncias afetam uma candidatura. Sou contra ligar as eleições presidenciais às legislativas, embora o calendário aponte para uma grande proximidade. Acho um erro um candidato presidencial ser uma espécie de elemento, como dizem os brasileiros, de chapa com o candidato a primeiro ministro. Não digo que não serei candidato. Uma vez que já disse que nunca seria líder do PSD e depois acabei por ser logo a seguir! Também não digo que vou ser certamente, porque basta, por exemplo, que haja um candidato da coligação que arranque forte daqui até outubro, e que tenha condições para, com uma vitória da coligação, prosseguir a sua candidatura, para poder retirar, eventualmente espaço a mais candidaturas. Teria de se ver.
Apesar de afirmar que não será, neste momento, candidato à Presidência da República pensa regressar e participar na vida política ativa? De que maneira?
[pausa] A haver regresso à política, a única e a última hipótese que vejo é esta das presidenciais. Se sim ou não…veremos. Não vejo a hipótese de voltar à liderança de partido, não vejo a hipótese de pensar outra vez em funções governativas, mas pode acontecer que venha a ter outra vez funções autárquicas. Não é provável, mas pode acontecer, isso nunca se sabe. Mas não é propriamente política nacional, é política autárquica. Diria que o mais natural, pela lógica das coisas, é ou ser candidato presidencial, e correr bem e ser Presidente,ou correr mal e não ser Presidente ou não ser candidato presidencial.
Atualidade e futuro do ensino superior em Portugal
“Num País tão pequeno, não haver uma ligação estável, duradoura entre universidades e politécnicos… Devia haver, mas enfim, nasceu como nasceu e correu como correu”
Como vê, enquanto cidadão e como professor o futuro do ensino superior em Portugal?
A primeira ideia que tenho é a de que sou um defensor de um ensino superior não binário, não dividido de forma estanque entre universidade e politécnicos. Não é essa a posição dominante, hoje. As universidades acham os politécnicos um ensino de segunda e os politécnicos também não querem misturar-se com as universidades, têm medo que a universidade lhes tire o seu campo de intervenção. Agora, está a estudar-se fazer consórcios entre eles. É um desperdício, num País tão pequeno, não haver uma ligação estável, duradoura entre universidades e politécnicos… Devia haver, mas enfim, nasceu como nasceu e correu como correu. Com o RJIES ficou uma orientação binária – sou contra. Em segundo lugar, acho que as universidades deviam ter sinergias muito maiores. Isso aconteceu com a Universidade de Lisboa, fundindo duas universidades, mas isso aconteceu de uma forma mais mitigada com o Consórcio de Universidades no Norte, no Continente (Minho, Trás-os-Montes, Porto). Foi bom, mas não acontece com outras universidades, que ficam assim um bocadinho penduradas e com problemas de massa crítica. É o caso, por exemplo do Alentejo. Já não digo do Algarve, mas um bocadinho o caso dos Açores e da Madeira, embora com realidades autónomas. No mundo de hoje, ou há uma dimensão apreciável das universidades ou há uma colaboração entre elas que faça com que possam, em conjunto, candidatar-se a fundos internacionais, possam ter parcerias com grandes empresas, possam ter peso na sociedade portuguesa e no estrangeiro. As coisas muito pequeninas são muito agradáveis mas depois têm muita dificuldade em viver. Em terceiro lugar, penso que o ensino superior tem que ser mutável, porque o Mundo muda a um ritmo alucinante. Entendo que é cada vez mais importante o papel dos mestrados e dos doutoramentos, não só para a carreira académica, mas outras formas de pós-graduação. Um dos dados adquiridos é de que a educação é permanente, vai até ao fim da vida, e, portanto, o ensino superior tem de estar preparado para, permanentemente ver regressar a ele aqueles que por lá passaram. Depois, é muito importante a ligação ao mundo da ciência, da investigação científica. Esse mundo da ciência implica uma aposta muito grande, porque é isso que faz a diferença das sociedades. As mais avançadas são as que têm uma qualidade humana mais desenvolvida e mais potenciosa. Diria que o ensino superior em Portugal sofreu muito com a crise, pela falta de meios, e continua a sofrer. Tenta dar a volta ao texto com os recursos que tem – e bem – porque as qualificações que damos são, em média, particularmente boas à escala internacional. E depois há o ensino privado. Esse ensino privado é um ensino que acabou por sofrer muito com a crise e que, inevitavelmente, vai ter que se integrar em estruturas mais amplas, internacionais. Aquilo que aconteceu em pequenino, com o avanço de algumas universidades internacionais aqui em Portugal, provavelmente vai acontecer de outra maneira com as universidades privadas e com as públicas também. Hoje, não é possível ter ensino superior forte se não há uma perspetiva internacional. Para os estágios, para os complementos de formação, para a entrada na vida ativa, para a investigação científica, que é fundamental.
Relativamente à implementação do Processo de Bolonha… o professor acha que existiram mudanças significativas em relação à qualidade dos cursos?
O Processo de Bolonha foi um processo um bocadinho importado de cursos essencialmente de ciências duras, ciências exatas, ciências experimentais. Nem sempre correu bem nas ciências sociais porque acabou por ser aceite a contra gosto, os cursos tradicionais reagiram mal a isso. Acabaram por fazer uma coisa, uma manobra hábil, que foi pegar na matéria dada em x anos e condensá-la em menos anos. Não foi dar coisas diferentes e de forma diferente, foi dar a mesma coisa, com pequenas diferenças, em menos tempo… uma corrida contra-relógio! E portanto, nem sempre deu bom resultado. Há países onde o Processo de Bolonha pode ou não ser adotado pelas universidades ou pelos cursos. Os que não o adotam, já sabem que alguns aluno preferem entrar rapidamente na vida profissional, preferem alternativas, e aquelas são diferentes. Aqui houve uma rigídez muito grande, talvez excessiva. Houve uma resistência grande em algumas estruturas, uma má compreensão do que era Bolonha. Onde Bolonha já era vívido ou era fácil de compreender correu bem, onde não foi assim correu menos bem.
As mulheres na justiça
De que forma assiste à crescente feminização na área da Justiça? As mulheres trabalham a Justiça de forma diferente dos homens?
Acho que a feminização vai acontecer em toda a sociedade portuguesa. Não só por razões demográficas, haver mais mulheres do que homens, qualquer dia também por razões políticas, porque eleitoralmente são mais numerosas do que os homens, também porque passaram a concluir, de forma massiva, a formação superior – o que não acontecia há dez, 20, 30 anos – estão nas empresas, são trabalhadores independentes, na administração pública. Já chegaram á administração pública, a diversos setores, como a justiça ou a diplomacia por exemplo, e vão chegar às finanças e por aí em diante. Acho que é muito importante, porque – correndo o risco de ser considerado um bocadinho machista – entendo que as mulheres têm, em muitas situações, uma perceção do concreto enorme e uma sensibilidade social mais apurada do que o homem. O homem tem a visão macro, a visão global, a visão sistemática, e a mulher tem a visão concreta, e isso, em alguns domínios em que se trata de prestações sociais muito sensíveis, é fundamental. É fundamental na educação, na justiça, na solidariedade social, na política, está a chegar à política pura e demorou mais tempo do que os homens. Nesses domínios da prestação social, acho que a mulher tem não apenas uma mais valia, tem uma perspetiva mais rica no concreto. Mas claro que as generalizações são sempre abusivas.
A importância da família
Professor, ao longo da sua vida teve de tomar muitas decisões tanto a nível pessoal como a nível profissional. Se tivesse a oportunidade de voltar atrás e mudar alguma coisa…o que seria?
Não sei…é muito difícil. Não deixaria de ser professor de Direito, não deixaria de ter tido alguma intervenção cívica, não deixaria de ter ido para o domínio da comunicação social. Talvez tivesse constituído família mais tarde, mas naquela altura constituía-se muito cedo. Não estou arrependido substancialmente de ter tido os filhos muito novo. Isso é uma vantagem, e foi sobretudo uma vantagem quando eram muito novos. Talvez tivesse aceite alguns convites internacionais que não aceitei, mas havia constrangimentos famíliares ou constrangimentos de carreira muito fortes. Senti que questionavam a família ou questionavam a minha vocação, que era académica – deixava-a cair. Depois há outras decisões, mas, genericamente voltaria a ter aquela experiência que tive na Revolução, a ter sido deputado à Constituinte, a não ter sido deputado a seguir á Constituinte – na altura, arrependi-me um bocadinho – a ter sido membro do Governo quando fui, a ter sido líder do PSD quando fui, até a ter sido candidato a Lisboa nas condições difíceis em que fui, a ter sido autarca como fui, em várias autarquias, muito cedo. Genericamente, não me arrependo das grandes opções que fiz, nem das amizades que criei ou que fomentei. Talvez por isso me sinta, apesar de tudo, uma pessoa feliz, porque não tenho muitas queixas a fazer em relação às escolhas que realizei. Umas deram mais certo, outras deram mais errado, mas, provavelmente, não teria mudado muito aquilo que fiz.
Do que é que mais se orgulha?
De duas coisas. Acho que sou um bom pai, mas é uma coisa muito discutível. E acho que sou um bom avô…muito discutível. Os filhos acabaram por seguir caminhos diferentes daqueles que tinha sonhado, mas, apesar de tudo, não é isso que define um bom pai. Um bom pai é ter criado as condições que lhes permitiram fazer escolhas e seguir caminhos, mesmo que alguns dos quais não teria seguido. Em relação aos netos também me considero um bom avô, tanto quanto é possível, com a distância do Oceano Atlântico. Engreno bem com eles e eles engrenam bem comigo. Por outro lado, sinto-me muito orgulhoso como professor. Acho que consegui ser um bom professor, isto é, deixar na vida de muitos alunos e alunas um traço significativo. É evidente que não se é igualmente bom ao longo de toda a carreira. É-se melhor quando se é mais novo, tem-se outra energia, quando se está ali nos 30 anos de idade. Talvez tenha sido a minha fase melhor, na minha atividade como professor, ali no começo dos anos 80, e começo dos anos 90. Não só guardo desse tempo as melhores recordações, como tinha uma energia, uma capacidade para cobrir vários domínios… Depois a idade começa a marcar, quer dizer, aos 40 e tal está-se diferente, aos 50 e tal está-se diferente, e aos 60 e tal muito diferente.
“Houve uma moda da televisão, e não há um número ilimitado de estações de televisão, o recrutamento é também muito limitado”
Como opinion maker e presença regular na televisão (nomeadamente nos “Comentários do Professor Marcelo Rebelo de Sousa”), que conselhos deixa a futuros jornalistas no Portugal precário de hoje?
Primeiro, que sejam muito corajosos. Ser-se jornalista é uma vocação que nos tempos de hoje, é uma vocação difícil, ao contrário do que acontecia nos anos 80, 90. Também era difícil no tempo da censura e da ditadura. Depois passou a ser mais fácil, apesar de tudo nos anos 80 e 90, o período em que houve o boom de publicações, o boom de televisões, o boom de rádios. Havia emprego, havia saídas profissionais, e nós estamos num período precisamente em que sucede o contrário. A imprensa regional e local está numa grande crise, as rádios locais estão numa grande crise, as televisões numa grande crise, os jornais nacionais numa enorme crise. É verdade que surgem outras formas de intervenção (agências, freelancer’s, ONG’s, organizações internacionais), há um mundo para quem não queira ficar cá (ou não possa ficar cá) mas exige uma grande coragem, porque não é fácil, não é muito fácil em termos de mercado de emprego, saídas profissionais…não é nada fácil. Em segundo lugar, porque há tentações e há algumas que são mais possíveis que outras. Há modas… Houve uma moda da televisão, e não há um número ilimitado de estações de televisão, o recrutamento é também muito limitado. A televisão tem vantagens, mas gasta de uma forma brutal. Além de haver gente de gerações anteriores – que apesar de tudo, não é tão velhinha assim – os mais novos são muitas vezes utilizados como “carne para canhão”, em estágios de curta duração ou em experiências com uma rotação muito acelerada. Há casos em que acaba por dar certo e há muitos casos em que acaba por não dar certo. Na rádio é ainda pior, porque há talvez menos saídas a não ser em alguns pontos a nível local. Há depois a imprensa. A pessoa tem de descobrir se aquilo que gosta realmente de fazer é o jornalismo escrito ou se é o jornalismo oral ou o jornalismo televisivo – que é visual – e são completamente diferentes, em termos de tempo, em termos de forma, em termos de modo. E depois há outras formas de jornalismo que já não são bem jornalismo, mas utilização da comunicação em sentido amplo. Eu sugeriria que, primeiro, enriquecessem a formação. Quanto mais formação, maior vantagem comparativa. É melhor ter mestrado do que não ter mestrado, é melhor ter formações complementares e atualizações permanentes. Segundo, quanto maior a dimensão internacional melhor, até para uma hipótese de se ter de sair para o estrangeiro. Se não for possível logo aquilo que se sonha… ficar ao lado e continuar a formação. É preferível ir fazendo outras coisas que não são o que se sonha e continuar a formação, a ficar parado ou a ficar frustrado. É fundamental o diálogo intergeracional (não com as gerações mais próximas mas com todas), para ter um retrato, para cima e para baixo, do que se passa. Quem faz comunicação social, tem de ter uma independência económico-financeira mínima, por isso, a família umas vezes facílita, outras vezes difículta. Muitas vezes, vejo com preocupação a forma como se aceita passar-se de assessor da comunicação de alguém na política e depois regressar à comunicação social. Por causa destas exigências todas, e muitas mais, é que o desafio é fascinante, muito mais complexo do que se pensa. Normalmente quem vê de fora, só vê o lado bonito da comunicação social.
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular “Técnicas Redactoriais”, no ano letivo 2014-2015, na Universidade Autónoma de Lisboa.