Ninguém ainda descobriu a fórmula mágica para suspender o tempo. Por mais cuidados alimentares, tratamentos estéticos ou cirurgias de rejuvenescimento a que alguém se sujeite, perder a juventude exterior é uma cruzada invencível que faz parte da condição humana. Já perder a beleza da alma – se alguma vez existiu em alguns seres humanos -, instigar a raiva e o ódio parecem ser vulnerabilidades mais propícias a quem habita na ignorância, tem um nível cultural e educacional limitado, além de princípios morais turvos que obscurecem o humanismo.
A alma de quem sempre abriu portas para o mundo através de viagens a lugares longínquos ou próximos, de quem procura conhecer e compreender outros povos, vivências ou diferentes gerações é resistente à deterioração. O tempo, nestes casos, tende a ser um poderoso aliado, uma vez que, quando mais se viveu, mais oportunidades de enriquecimento pessoal foram concretizadas. Mesmo que o corpo físico comece a ceder, o interior mantém-se intacto e protegido das intémperies dos anos.
A reflexão surge de um incidente ocorrido, numa manhã tranquila e pintada de azul, num jardim de Lisboa, quando um grupo de jovens estudantes foi vítima da ignorância de um velho louco que transferiu, como em delírio, os direitos que teria num quintal privado para o espaço público. O que leva alguém que procura a pacatez e o silêncio de um jardim isolado a insurgir-se contra a energia da juventude, quando se apercebe que está a ser captado para o interior de câmaras fotográficas alheias? A mágoa por ter perdido a jovialidade de outrora e vislumbrar nos jovens uma vida mais fácil do que a sua, a ignorância sobre o mundo virtual onde as imagens se propagam sem cálculos ou a corrosão da alma, que possivelmente nunca foi alimentada com as coisas belas da vida? Apostaria na confluência das três hipóteses, agudizada por uma falta de educação que habita alguns sítios mais degradados da capital.
Proibir alguém de fotografar num espaço público, tentar recorrer ao poder perverso da falta de educação e verbalizar uma vontade errada vem dos mais tristes homens, aqueles que nunca tiveram a oportunidade de assistir a uma aula na universidade, apreciar uma imagem de Henri Cartier-Bresson, o fotógrafo do instante decisivo, de ir a um museu ou de sentir as vibrações de um concerto de música que acontece numa das salas de espetáculos a dois passos da sua casa. Alguém que deseja um pouco de paz e recato, mas destrata os outros perdeu a razão. Bastaria pedir. “Seria possível não me fotografarem, por favor.”
A presença ocasional da Polícia no tal jardim público ajuda os velhos loucos – a falta de bom senso tem tendência para a dissiminação nos inscientes – a acharem que se tiverem o compadrio das forças da autoridade ainda podem reforçar o poder da ignorância sobre os jovens que apenas procuram imagens num percurso académico de rotina. Para acalmar os ânimos de quem se sentiu roubado de sossego quando viu dezenas de telemóveis e câmaras em punho espalhados pelo jardim, dois agentes da Polícia fingem uma chamada de atenção contra a juventude, confidenciando, no entanto, a loucura do homem que confunde o jardim público com o seu quintal privado. Como se fosse um palco montado para uma farsa em que a infantilidade dos velhos loucos sai vitoriosa contra a maturidade dos jovens prudentes. Como se os papéis estivessem propositadamente trocados. Afinal, não deveria a idade avançada ser uma manifestação de sapiciência e a juventude um reflexo de impulsividade e insensatez. Tal como acontece com a perda de vitalidade física que o passar dos anos provoca, na vida, a falta de acesso à educação, ao contacto com referências culturais e de convívio com seres humanos bons mantém estas pessoas presas na mais tenebrosa escuridão e ignorância, desprovidas de pilares que protejam as suas estruturas enquanto seres humanos, espalhando raiva por cada trilho que pisam. É como se retirar estas almas penadas deste estado de toxicidade interior fosse uma tarefa tão impossível como travar o tempo que nos rouba a beleza e a memória.
De câmara em punho, a juventude segue o seu caminho, chocada com a loucura dos inscientes, mas certa de que os fotógrafos da atualidade têm uma dura missão na sociedade das imagens. Só que ao contrário da ideia de Régis Debray, o ditador desta crónica não foi a imposição dos ecrãs, mas o medo que os dispositivos eletrónicos provocam em quem não os sabe compreender e nem tem capacidade de prever o seu poder.