Eu não estou a ver o António, mas o António apareceu quando a porta se abriu. Fixei essa imagem, melhor, essa esquadria ideal de um homem alto com a testa a brilhar em suor. Exibia um torso largo sobre os pés ainda assentes no lajeado do quintal e sorria, porque outra coisa não podia fazer. Acabara de chegar e era a surpresa do dia, por isso o defini, construí e iluminei nessa mesma medida (a percepção também tem os seus técnicos de luz).
O António era um brasileiro de Belo Horizonte com quem uma tia minha desenvolvia uma longa relação de correspondência. As pessoas escreviam-se durante anos, havia tempo. Não sei o que diziam, mas creio que teciam órbitas largas, manobravam a linguagem para sentirem em si o efeito de uma translação. Procuravam alguém que aceitasse ser satélite de uma solidão que se tomava como uma inevitabilidade tranquila.
Continuo a não ver o António que sempre ali esteve de pé junto à porta de entrada. Para o ver decentemente, devia ter anulado a gramática com que naqueles segundos o solevei nas alturas. Era como se o tivesse empurrado para cima de um plinto, deformando o que o homem, em bruto, seria. Por se tratar de uma surpresa, recebeu em correspondência na minha concepção (como diria Santo Agostinho) a imagem celebrativa com que o havia de memorizar para sempre. Um altar constrói-se invertendo o sentido desta operação, mas seguindo à risca o mesmo devaneio.
Eu era criança e não tinha uma fé particular fosse no que fosse, mas observava a fé das pessoas à minha volta com bastante fascínio. Não com aquele fascínio que conduz à imitação, mas com aquele outro que me levava a penetrar nos gestos, na prosódica e nos pequenos hábitos dos adultos para os experimentar e perceber-lhes o sentido como se fossem brinquedos.
A minha tia estava visivelmente embaraçada, subiu e desceu as escadas, improvisou um presente e convidou o António por duas vezes a visitar a cidade ou a tomar um refresco. A minha tia queria oferecer tudo ao António e não sabia na verdade o que fazer e onde se meter. Mas eu não conseguia sequer entender esse embaraço e limitava-me a observar a sequência das cenas como quem entra num filme com o papel de figurante acrítico e com instruções cingidas apenas ao movimento no espaço.
No fundo o António nunca tinha chegado e, por isso, a minha tia, tal como eu, não o conseguíamos sequer ver. Ele era ainda uma espécie de estátua que um imponderável qualquer colocara em frente à porta de entrada da nossa casa. O António não nos avisara da sua chegada mas escrevia-se com a minha tia há mais de 25 anos e enviava-lhe fotografias sem fim da sua cidade (parques, estádios, avenidas, lojas, etc.).
Sem dar por isso, depois do dia em que o António nos visitou, eu apercebi-me de que já era capaz de ser como um arquitecto que constrói altares barrocos, cheios de movimento e capazes de chamar a si a atenção e a emoção. Era o que eu tinha feito ao olhar para o António, naquele instante em que o distingui na minha frente, momento absolutamente congelado que deixou de ter passado e para o qual não existirá qualquer futuro. Creio que a minha tia deve ter percorrido uma aprendizagem muito semelhante a esta, pois, para ela, aquele seu interlocutor epistolográfico, ao fim e ao cabo, não existia.
A escrita cria e propõe-nos sempre os seus monstros fantasmáticos. Não apenas a escrita propositadamente ficcional, mas todas as escritas. Não há escrita que não efabule os seus próprios espectros, encenadores, aderecistas, contra-regras e técnicos de luz. Nem que seja a redacção de um pequeno bilhete (ou de um sms) onde se inscreva – “Venho já”. Haverá sempre um sujeito desconhecido, uma acção para qual somos inopinadamente chamados, um poço que é um tempo e ainda um espaço que não é, na realidade, deste mundo.
O António é uma memória de infância, mas ela é a nossa vida toda, ao mesmo tempo. O que vemos, teatralizamos. Assinamos todos os dias os actos do tempo em que vivemos deste mesmo modo: olhamo-los e efabulamo-los. Nunca chegamos a ter em mãos aquilo que o António – ou outra qualquer parte da realidade – em bruto seria. O mundo é para nós, em grande medida, uma (mera) assinatura. E já se sabe que uma assinatura é um rasgo precário, quase invisível: uma formiga sem biologia. A tatuagem dos navegantes ficava marcada na pele, mas a assinatura não, justamente porque é teatro. De cada vez que se encena, apenas a si se representa. E a mais não aspira.
No fim desse dia, o António, na realidade o “Antônio”, deixou a sua assinatura marcada no campo superior direito do meu ‘Cavaleiro Andante’. E eu fiquei feliz com mais esta derradeira miragem.