É um nome de que decerto os jovens portugueses guardam memória. Escritora e jornalista desde os 18 anos, autora de sucessos como “Rosa, Minha Irmã Rosa” e “Os Olhos de Ana Marta”, aos 76 anos não faltam a Alice Vieira novas histórias para contar. Eis algumas delas.
À conversa com Alice Vieira no conforto da sua sala de estar, uma sala que transborda de livros, alguns já envelhecidos pelo tempo, mas onde também habitam muitos postais e muitas cartas. Percebe-se o denominador comum: a paixão pelo papel. Ressoa nas paredes a gargalhada forte característica da escritora, senhora muito bem-humorada mesmo sendo 10:00 horas da manhã de um dia chuvoso. Nesta entrevista, fala-se da sua vida como jornalista antes do 25 de abril de 74, do jornalismo atual, da literatura juvenil que subestima os jovens e do gosto pela leitura.
Escreveu o primeiro romance, “Rosa, Minha Irmã Rosa”, para os seus filhos. O desejo de escrever mais histórias nasceu associado às crianças que a liam?
Não, não tinha desejo nenhum de escrever mais. Pensei que era uma história para dar aos meus filhos para ficarem contentes. Depois foi publicado e recebeu um prémio, e quando há prémios as pessoas compram logo. O editor pediu-me outro livro para “apanhar a onda” do prémio, então, tive de escrever o “Lote 12, 2º Frente”. Depois, pediu-me mais outro e escrevi o “Chocolate à Chuva”, e a trilogia acabou aí. Pensei mesmo: “Acabou!” (risos) Mas não acabou, foi ficando até hoje. Se os meus patrões da Leya me dissessem agora que podia parar, parava logo. Os jornais não, fazem-me falta. Porque é isso que sou: jornalista. Ainda trabalho para uma revista e dois jornais, e se realmente isso acabasse, era complicado. É claro que gosto muito da escrita, se não gostasse também não o fazia, mas entre as duas coisas, ao fim destes anos todos, largava os livros por um bocadinho. São duas escritas completamente diferentes.
Não seria capaz de deixar o jornalismo?
Não, o jornalismo nunca. Entrei para um jornal com 18 anos. Nessa altura, o jornalismo era uma profissão que as mulheres não tinham, havia muito poucas nos jornais. As nossas famílias achavam que jornalistas eram homens muito perigosos, muito feios, muito fortes, aquilo era um perigo! (risos) Quando eu disse lá em casa que queria ser jornalista, as minhas velhas tias levaram as mãos à cabeça. Então, tive de prometer que ia para a faculdade, fazia o curso todo, e elas deixavam-me entrar para o jornal. Entrei para o Diário de Lisboa, foi o primeiro jornal em que estive, e desde aí nunca mais parei.
Alice, a jornalista
Como disse, começou a fazer jornalismo já há 58 anos, tendo passado por diferentes redações como o Diário de Lisboa, Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Foi jornalista antes do 25 de abril. Como foi a transição de jornalismo censurado para o jornalismo em democracia?
Vocês nem sabem! Às vezes, quando vou a escolas perto das comemorações do 25 de abril, costumo levar as provas de censura do Diário de Lisboa, porque fiquei com muitas. Hoje dá vontade de rir, mas naquela altura não dava vontade nenhuma, os jornais eram mesmo muito cortados. Eram levados pelos comboios, não havia a tecnologia que há hoje. Muitas vezes, tínhamos de ter um outro jornal pronto, para poder entrar depois de tudo ser cortado, porque os cortes da censura eram feitos quando o jornal fechava, à hora de irem para os comboios. Era muito complicado lidar com isso. Também foi complicado escrever sem censura. Lembro-me de estar uma vez a escrever algo em que se falava de alguém que dantes [durante o Estado Novo] não se podia falar. Estava a tentar arranjar forma de falar nisso e depois penso: “que disparate, posso falar de qualquer coisa!” (risos) Agora, podemos falar de tudo, já não precisamos daquelas metáforas que arranjávamos. Tem muita graça porque era um jogo com o leitor, e o leitor percebia. Lembro-me de um dia em que foi cortada toda a primeira página do Diário de Lisboa, então, o jornal nesse dia foi publicado com a primeira página toda cheia de receitas de cozinha! (risos) É obvio que as pessoas viam aquilo e sabiam que algo havia acontecido! Tinha de haver muitas artimanhas para arranjar maneira de dizer aquilo que não se podia.
A celebrar o 25 de abril de 2018 [Imagem: Facebook da autora]
Que diferenças nota no jornalismo hoje em dia?
Agora, há muitas escolas de jornalismo, mas não me parece que seja uma ótima altura para os jornais, falando em imprensa. Hoje, carrega-se num botão e tem-se os jornais todos, por isso, é muito difícil para o jornal em papel. O que ainda se vende muito são os jornais regionais, porque falam das pessoas daquele lugar, sabem o que se deve escrever, o que se deve fazer. Eu trabalho para o Jornal de Agualva, que é a minha terra, e para o Jornal de Mafra, que é um jornal online. Mas é diferente com um jornal impresso, é difícil. Quem é que lê os jornais em papel? Não são os novos que compram o jornal, vão tomar café e ler. Quem faz isso são os mais velhos. Às vezes, os jornais nem estão feitos para os jovens. A maneira de escrever, o que se escolhe, as entrevistas… Os jornais de hoje não têm nenhum público definido. Depois, há os jornais online. Há muitas maneiras hoje de fazer jornalismo, tens a televisão, as rádios… a gente tem a nossa profissão e tem que a defender, e hás de tu e outra gente nova tentar pegar nisto.
Falando em jornais online, as suas crónicas são publicadas no Jornal de Mafra, como disse, e é bastante ativa no Facebook. Acha que o jornalismo alguma vez irá migrar por completo para a internet?
Essa é como aquela velha história de se perguntar se os livros vão acabar. Em 1800 e não sei quantos havia um escritor, o Léon Bloy, que dizia “a bicicleta vai matar a leitura”, quando apareceram as primeiras bicicletas. Há sempre qualquer coisa que mata a leitura ou os jornais. Eu quero acreditar que não. Creio que, apesar de tudo, apesar de não se lerem muitos jornais, ao fim de semana ainda se lê qualquer coisa. Penso que se acabar, há de ser daqui a muito tempo, mas quero acreditar que o jornalismo em suporte de papel ainda vai continuar a existir.
Como disse anteriormente, continua a escrever crónicas. É o seu género jornalístico favorito? Como começa o processo de criação?
Sim, gosto muito. Acho que, para além da reportagem, saber escrever uma crónica é uma das partes fundamentais do jornalismo. Primeiro que tudo, tenho de ver para que jornal é a crónica. Normalmente, há sempre qualquer coisa que aconteceu nesse dia que dê para escrever uma crónica. Investigo e, então, escrevo. É mesmo o que gosto mais de fazer, é a crónica. Tem de se contar uma história em muito poucas linhas, e não é contar da mesma maneira que se conta um romance, uma novela ou um conto. Tenho três livros só de crónicas: a “Bica Escaldada”, “O Que Se Leva Desta Vida” e, o último, “Só Duas Coisas Que, Entre Tantas, Me Afligiram”
E os jovens também leem esses livros ou “fogem” por ser um género jornalístico?
Às vezes, encontro uns que leram. Acho que até gostam de ler as crónicas porque são pequeninas. Podem ler uma ou duas e acabou, não é como os romances que têm de continuar até ao fim do livro. Até mesmo nas escolas, há miúdos que me falam de uma crónica ou outra que leram.
Chegou a dirigir o suplemento juvenil no Diário de Lisboa. Quais as principais diferenças e constrangimentos que se encontram na escrita jornalística direcionada a jovens?
E era um grande suplemento! Também trabalhei numa coisa parecida que era o “DN Jovem”. Acho que ainda hoje era algo capaz de segurar um jornal. Se os jornais tivessem esses suplementos – bem feitos como eram os nossos – isso era capaz de vender. As pessoas gostam sempre de ver as suas coisas publicadas. Não é a mesma coisa ver uma história nossa ou um poema nosso na internet e vê-lo num jornal, com o nosso nome jornalístico. O juvenil do Diário de Lisboa, quando começou, era de gente praticamente adulta, uma pessoa de 18 anos era um adulto. Era muito cortado o juvenil, porque, obviamente, os poemas naquela altura falavam sempre de coisas que eles não queriam. Agora, acho que não há muitos constrangimentos. Se for um suplemento infantil é outra coisa. Estive num suplemento infantil do Diário de Notícias, que era o “Catraio”. Aí, já se tem de ter mais cuidado. Agora no juvenil, acho que não, o que se escreve ali, tanto pode ser para adultos como para jovens.
[Imagem: Hemeroteca Digital de Lisboa]
Alice, a escritora
Diz que escreve os seus livros “para si”. No entanto, são mais jovens que os leem do que adultos. Há alguma literatura juvenil que subestima os jovens?
É mesmo para mim. Por isso é que não gosto muito de escrever livros para crianças pequenas, tenho de estar a pensar um bocadinho. Agora, a partir dos jovens de 5º, 6º ano, não escrevo a pensar que eles os vão ler. Se não percebem os livros logo, percebem depois. Uma vez estive tentada a isso, num livro que se chama “Este Rei Que Eu Escolhi”, que é sobre a Revolução de 1383. Tinha incluído dois ou três capítulos a que chamei “Lamentações da Cidade de Lisboa”. Ali, interrompe-se a história e é a cidade de Lisboa que fala. Li aquilo e pensei “eles são capazes de não entender isto, é melhor retirar”, porque não fazia diferença nenhuma, não tinha a ver com a história. Mas depois, como nunca tinha retirado nada de um livro, também não retirei aquilo. Nunca fiz nada a pensar “eles não percebem isto, deixa pôr de outra maneira”. Mas há literatura que os subestima. Mesmo na literatura infantil, mas principalmente na literatura juvenil. Depois há outro fator a ter em conta: uma coisa são os romances, outra são os livros didáticos. Não se pode ensinar coisas nos romances. Mesmo em livros didáticos – e tenho uma série deles, que me deram imenso trabalho porque eram para mais pequenos –, as professoras podem pegar nas histórias e podem trabalhar com os alunos, mas se os miúdos não souberem, também não dão por nada. Pode-se fazer uma história com piada e com conteúdos de gramática. Mesmo aí, não sou muito de ensinamentos, eu não ensino nada a ninguém. Mas voltando a responder à pergunta, sim, subestimam-nos muito.
O seu último livro é o “Diário de um Adolescente na Lisboa de 1910” publicado em 2018. Inclusivamente disse numa entrevista ao Observador, em 2017, a propósito dos jovens, que “os dramas são os mesmos, os «adereços» é que são outros”. Como são os jovens de hoje, afinal?
Então, Beatriz, as vossas angústias, as minhas e as de toda a gente são as mesmas. Portanto, o que é que muda? É o que está por fora! Quando era miúda, tinha um livro do Érico Veríssimo (aponta para o retrato do autor que tem na sala) para adultos, chamado “Clarissa”, mas que pode ser lido por gente nova. É um romance de sentimentos e sensações. Ainda hoje o vou dando a todas as adolescentes que conheço. A minha filha já o levou e as minhas netas também, e todas elas chegam a uma altura que dizem: “A Clarissa sou eu!” E o livro foi escrito em 1939! São tão levadas a lê-lo, que não há telemóveis, não há computadores, não há nada disso. Por causa das sensações, essas é que são importantes. Porque é que o “Rosa, Minha Irmã Rosa”, que já tem 40 anos, ainda continua a ser lido? Exatamente pela emoção principal do ciúme, porque a miúda tem ciúmes da irmã. Quando vou às escolas, muitas vezes eu é que lhes tenho de dizer: “Mas não achas estranho que a coisa mais divertida que a miúda tivesse para fazer fosse colar cromos?” (risos) É a isso que chamo os adereços e são esses que realmente mudam, porque o resto é o mesmo.
Por falar nisso, vai muito às escolas e interage com as crianças. Alguma vez deu de caras com uma que dissesse “não gosto de livros”?
Não. Os miúdos gostam mais de ler do que aquilo que se pensa. Quando vou às escolas, eles já leram e já foram preparados pela professora, portanto, ninguém me diz “não gosto”. Podem dizer “não gosto muito deste livro”, isso é verdade. Pronto, se não gosta, não tem que ler até ao fim. Mas, pelo contrário, encontro miúdos que fazem muitas perguntas. Nunca encontrei nenhum a dizer isso. E nunca tive uma má experiência numa escola, pelo menos por parte dos miúdos (risos).
Por parte dos professores já é outra história?
São muitos mais os bons do que os maus, mas há coisas que, às vezes, fazem confusão. Como levarem-me à sala, os alunos ficam entregues e a professora vai-se embora. Uma vez aconteceu isso ao Mário de Carvalho, foi a uma escola e a professora saiu [da sala]. Ele olhou para os miúdos e perguntou: “Vocês têm muita vontade de falar comigo?” E eles todos ao mesmo tempo: “Não!” Então, foi-se embora. E a professora nem perguntou o que tinha acontecido! Mas com os miúdos não costuma haver problema.
Uma das suas obras, “Leandro, Rei da Helíria”, é de leitura obrigatória no 7º ano de escolaridade e muitas outras fazem parte do Plano Nacional de Leitura (PNL). O que pensa sobre existirem estas “leituras obrigatórias”?
A palavra “obrigatória” é muito má. Se obrigas alguém a jogar à bola, essa pessoa já não vai querer jogar à bola. No caso do “Leandro, Rei da Helíria”, penso que seja por ser uma peça de teatro, há muito pouco teatro para jovens. Acerca do Plano Nacional de Leitura, não me importo, desde que os livros estejam adequados [às idades]. Uma vez, o livro “O Que Dói às Aves” foi colocado no Plano Nacional de Leitura e recomendado para os 7 anos e é um livro para adultos. A partir daí, fui sempre ver o que estava no PNL. Mas, na maior parte dos casos, até penso que estão adequados. É uma certa orientação, porque às vezes há miúdos que não leem e os professores também ficam mais orientados.
Mas os livros obrigatórios até tiram a vontade de ler.
Os livros obrigatórios, sim, são horríveis, acho que tudo o que seja obrigatório é penoso. A minha neta mais nova no ano passado disse: “Ai avó, que chatice, lá na escola é obrigatório ler um livro teu.” Depois descobriu que até já tinha lido o livro mas, mesmo assim, logo à partida, era uma chatice.
E mesmo quando os livros obrigatórios são lidos, aceitam apenas uma interpretação da obra nos testes.
Isso também nunca percebi. Como são capazes? Porque um texto tem tantas interpretações! Uma vez, há muitos anos, fui ao teatro ver a peça “Inox – Take 5”. A peça era exatamente a mesma cena, vista por cinco pessoas diferentes, e cada uma tinha a sua versão. Porque, realmente, uma pessoa pode pensar em algo de outra maneira, pode ter dado importância a outras coisas, e não deixa de ser a mesma obra. Só aceitarem uma resposta é algo muito estranho.
Também escreve poesia, como o “Olha-me Como Quem Chove” que saiu em 2018. Tem uma postura diferente perante este género literário?
Escrevo a minha poesia à mão. A poesia tem de ser escrita à mão, deitada fora, rescrita, e só quando já está assim mais ou menos, então, sim, passo para o computador. É completamente diferente. Se fosse hoje, tinha escrito a minha poesia com um heterónimo, de tão diferente que é da minha prosa. Com a poesia, não me posso sentar ao computador e forçar, tem de haver uma… bem, não digo inspiração, porque essa é outra palavra horrorosa. É preciso apetecer-me. Se me apetece, então escrevo. Tenho uma postura completamente diferente. Por isso é que só tenho quatro livros de poesia. Quando escrevi o primeiro, concorri a um prémio, o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Estava numa escola quando me telefonaram a perguntar se tinha sido eu a escrever aquilo, no júri ninguém acreditava que sim! (risos) Esse teve um prémio e houve outro que também foi finalista do Pen-Club.
Alice ainda criança. [Imagem: Facebook da autora]
É possível não gostar de ler?
(Forte gargalhada) Custa-me muito pensar nisso. Quando era muito pequenita, aprendi a ler sozinha, com os jornais. Tive uma infância complicada e andei sempre a saltar de casa em casa, mas como sabia ler, podia ler os livros que quisesse em cada casa. Eu li tudo, o mau, o bom, o assim-assim. Tudo o que podia ler, lia. Foi isso que me ajudou a sobreviver. Quando ouvia alguém dizer que não gostava de ler, ficava muito espantada, porque ler, para mim, era como almoçar e jantar. Para mim, não gostar de ler é uma coisa estranhíssima. Claro que acredito que haja gente que não gosta de ler. O que quero é que as pessoas leiam, seja em suporte papel ou digital. O vocabulário fica muito reduzido quando não se lê, quer em jovens ou adultos. Se a pessoa se habitua a ler, abrem-se os horizontes, sobretudo na linguagem e nas palavras. E é fundamental as escolas fomentarem o gosto por ler. Quando vou às escolas, percebo logo se têm uma professora que se esforçou. E há muito boas professoras. Preparam-nos muito bem, fazem com que eles gostem de ler. Os professores são os nossos intermediários. Não podemos esperar que todos os miúdos tenham livros em casa ou pais que leiam. É fundamental haver alguém que os faça gostar de ler.