Histórias com H é uma rubrica onde relatamos as mais belas histórias do desporto mundial. O relato desta semana é sobre o combate que marcou e marca gerações, Douglas contra Mike Tyson.
Há acontecimentos que marcam quem os vê, seja no desporto ou em qualquer outro assunto. Esses momentos transformam a monotonia, que às vezes impera em alguns desportos, e eleva-os a outra dimensão. Quem assiste, lembrar-se-á para o resto da sua vida daquele dia. É essa a beleza.
Hoje, aqui n´O Desportista, dá-se asas a um desses hinos. Esta é a breve história de como James “Buster” Douglas, contra todas as probabilidades (e mais algumas…), derrotou por KO o denominado “The baddest man on the world”, Mike Tyson.
A memória daqueles que experienciaram ao vivo esta surpresa mantém-se intacta. Quem não gosta de um bom “underdog”? É refrescante quebrar a rotina, e foi isso mesmo que aconteceu há mais de 25 anos atrás.
Para entender a espectacularidade do combate e, principalmente, do seu desfecho completamente inesperado, é preciso recuar para o passado recente dos dois boxeadores. Ele explicará a razão pela qual ambos imortalizaram um combate, que antes do seu início, pouco pecava pela sua aparente qualidade ou profundeza emocional – era apenas mais um combate, pensou-se…
“Buster” Douglas tinha passado ao lado de uma carreira extraordinária. Apesar de ser considerado, antes do combate, número 7 do ranking mundial de pesos pesados, a sua potencialidade poderia ter sido materializada em outros voos, algo que nunca aconteceu, pelo menos até então. O maior argumento para a diferença abismal entre a sua qualidade, e os resultados palpáveis dentro de ringue, é talvez um dos mais comuns para estes casos: a falta de ética de treino e de ser atleta. Enquanto, e comparando com um dos melhores de sempre, Tyson aliava a sua extrema qualidade intrínseca ao treino duro e metódico, do outro lado, Douglas preteria as horas no ginásio por outras actividades. Essa é a diferença entre os bons/acima da média e os melhores, que ganham e não se contentam com os mínimos. Apesar de tudo, “Buster” tinha tido a oportunidade de vencer um título três anos antes frente a Tony Tucker, apenas para a perder na 10ª ronda. Após esse desaire, não mais perdeu, conquistando 6 vitórias seguidas, o que lhe deu a hipótese de lutar contra Tyson.
Esse ímpeto moral, ganho através de vitórias atrás de vitórias, viu-se em risco três semanas antes do combate contra “Iron” Tyson. Isto porque a sua mãe, Lula Pearl, faleceu 23 dias antes do combate, criando mais um muro entre a oportunidade de uma vida frente a Tyson. Para adicionar ao revés, a mãe do seu único filho padecia de uma doença renal, que piorava a cada dia que passava. Ou seja, por detrás desta vitória monumental, outras se adicionavam. Anónimas, mas ainda mais exigentes, e que poderiam ter comprometido o jogo de Douglas frente ao “monstro” do boxe mundial.
Do outro lado da moeda, temos o campeão. Era-o da WBC, da WBA e da IBF. Só este currículo era suficiente para tornar esta história num verdadeiro David contra Golias. O seu recorde antes do combate era por si só expressivo do domínio brutal que tinha sobre os outros atletas: 37 vitórias frente a 0 derrotas. O combate anterior tinha acabado com o KO brutal de Carl “The truth” Williams, nada que fugisse ao normal. Não existe melhor explicação para o que era Mike Tyson nesta altura do que a de “Buster” Douglas: “Ele era um terror. (…) Tinha um controlo absoluto sobre toda a gente. Ele decapitava cada um que se opusesse… ninguém tinha chance contra aquele homem. Ele era um monstro.”
Apesar de tudo, fora dos ringues, o campeão passava por dificuldades. Tyson tinha acabado de sair de uma relação conflituosa com Robin Givens, e que tinha sido descrita pelos media com contornos abusivos. Para sobrepor, o seu treinador de longa data, Kevin Rooney, tinha sido substituído por outro menos experiente, e na altura do combate ainda se desenrolavam os casos judiciais contra o seu manager de longa data, Bill Clayton, e o seu ex-promotor, Don King. Mas, e mesmo tendo em conta o cenário fora dos ringues de Tyson, o poderio dentro da arena de combate era mais do que suficiente para arrebatar um simples oponente como “Buster”. Era um combate tido como treino para o campeão. Um aquecimento para os grandes combates que se seguiriam. Contudo, do outro lado, através da motivação e da vontade de orgulhar uma mãe que pouco antes o tinha deixado, e de mostrar ao mundo que era capaz de se nivelar com os maiores, James “Buster” Douglas preparava uma das maiores surpresas do desporto mundial. Para Tyson, eram apenas mais 6 milhões de dólares na sua conta, e sem muitas mazelas ganhas preferencialmente.
O combate ocorreu no dia 11 de Fevereiro de 1990, no Japão. A atmosfera à volta do jogo, contando com as bancadas cheias do Tokyo Dome, arena escolhida para o evento, era a de um treino. O silêncio imperava pela arena, descansando e adormecendo um combate que nada de extraordinário poderia proporcionar ao público presente, quanto mais aos milhões de espectadores, que presos às tv’s pelo mundo inteiro, esperavam o segundo sempre espectacular do murro monstruoso de Tyson ao seu anónimo oponente. Mas enganaram-se. O combate começou com a primeira mão cheia de rondas a serem um autêntico massacre para o “champ”. Ninguém, nem os especialistas presentes, conseguiam explicar o espancamento ao vivo e a cores que Mike Tyson estava a sofrer. Apesar da energia mortífera de Douglas, o campeão ripostou e impôs o seu jogo, fazendo o seu oponente cair com baque. Mas Douglas ainda não tinha acabado, e após se levantar antes da contagem final, derrotou Tyson com 5 murros seguidos e imperdoáveis.
O improvável tinha acontecido. O “Monstro” do boxe tinha sido derrotado. Provou-se, ali mesmo, que Tyson era humano. A mística e o mistério de um dos maiores de todos os tempos continuaram, mas em moldes diferentes. Para “Buster”, aquilo tinha sido a prova do seu valor desperdiçado. No boxe, como em qualquer outro desporto, passa-se de besta a bestial numa questão de dias. Foi o que aconteceu com Douglas. O desconhecido de ontem, é o famoso de hoje. Para Douglas, esse título ficou marcado para a eternidade. Fê-lo com estilo. Porque os muros que o separavam de uma possível vitória eram imensos, sem contar com a qualidade do seu oponente. A morte da sua mãe dias antes, a doença da sua mulher ou o ímpeto de Tyson, que despedaçava todos aqueles que se metiam no seu caminho. Douglas pegou em tudo o que de negativo se abatia sobre si e transformou-o em motivação, em energia positiva que funcionou como combustível para o treino e para a concentração antes, durante e depois do combate. É também a prova irrefutável que no desporto tudo pode acontecer. Não existem vencedores crónicos, nem tão pouco perdedores da mesma natureza. Para qualquer um que se prenda numa das duas categorias, é necessário ter humildade e a cabeça bem assente, para entender que dentro deste mundo o que pode acontecer vai acontecer, mais tarde ou mais cedo.
Foi o dia em que o imbatível Tyson foi derrotado.