Sinopse:
“Quando Pi tem 16 anos, a família decide emigrar para a América do Norte num navio cargueiro juntamente com os habitantes do zoo. Porém, o navio afunda-se logo nos primeiros dias de viagem. Pi vê-se na imensidão do Pacífico a bordo de um salva-vidas acompanhado de uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Em breve, restarão apenas Pi e o tigre.”
Crítica:
Para os que já tiveram o prazer de ver o filme no cinema, a história de “A Vida de Pi”, escrita por Yann Martel, não é desconhecida: o jovem indiano Piscine Patel (que mais tarde recebe a alcunha de “Pi”) parte com a família, responsável por um jardim zoológico, numa viagem de barco até a América, juntamente com os animais. A desgraça atinge o barco e Pi encontra-se náufrago num barco salva-vidas com um dos animais mais perigosos, um tigre de Bengala. A história que se segue é de fé e esperança, com elementos que conseguem tanto suscitar o pânico como o espanto.
Com 100 capítulos que vão alternando entre o passado e a tragédia de Pi, e o seu presente no Canadá, o livro prende a nossa atenção mesmo antes de começar o seu elemento dramático.
Começamos pela infância feliz de Pi, os seus dias passados no jardim zoológico a descobrir várias religiões. De facto, a forma como Martel escreve sobre a religião através dos olhos de Pi é um dos pontos mais interessantes do livro. Pi interessa-se pelo hinduísmo (a sua primeira religião), pelo cristianismo e pelo islamismo, querendo inclusivamente professar as três religiões, não entendendo a razão de ter de escolher apenas uma, visto que todas se baseiam em “amor” e “fé”. Pi tem também curiosidade de conhecer o ponto de vista do ateísmo, acerca do qual fala com o seu professor de ciências. Fala-nos, ainda, dos animais do zoo e dos seus hábitos de uma maneira quase alegórica, como se estivesse a contar uma fábula. É esta a essência do livro: uma mistura de realidade e factos com fé e milagres, a junção da ciência com a religião. Para sobreviver ao naufrágio, Pi tem de aplicar os seus conhecimentos sobre os animais, sempre sem perder a fé e a esperança. É necessário um equilíbrio.
Apesar de a primeira parte sobre a infância de Pi ter reflexões bastante interessantes, quando se dá a tempestade que afunda o barco é que somos realmente ‘puxados’ para a história. Assim que se inicia a leitura sobre as tentativas de sobrevivência de Pi – que tem que lidar com uma zebra, um orangotango, uma hiena e Richard Parker, o tigre – é muito difícil pousar o livro. Sentimos tanto a ânsia de Pi como a sua esperança de que esta história terá um final feliz. Esta parte do livro está muito bem conseguida, acaba por parecer um cruzamento de fantasia com realidade. Por um lado, lê-se como uma tragédia (o que está de facto a acontecer a este rapaz) e, por outro, pode ser lido como uma viagem figurativa que desafia todas as crenças de Pi, tendo este de provar ser forte como um tigre para as ultrapassar.
A viagem feita por Pi e Richard Parker não é fácil, especialmente quando Pi parece estar à beira da morte, esfomeado, desidratado e quase desesperado. Quanto mais difícil a sobrevivência, mais fantasiosa se torna a história (e vice-versa), chegando o jovem indiano a encontrar uma ilha que parece estar viva e sofrer de alucinações que nem ele nem o leitor ficam completamente certos se são reais ou não. Existem momentos em que Pi parece até deixar-se cair na loucura, a qual tenta sempre ultrapassar. O tigre, Richard Parker, é tanto um perigo, como uma companhia; tanto pode atacar a qualquer momento, como agir pacificamente. Sentimos que o tigre é humano, no sentido mais natural da palavra, tal como Pi.
Quando Pi finalmente chega a terra, após ser abandonado por Richard Parker, é questionado sobre o que aconteceu no barco, como este afundou e como conseguiu sobreviver. Aqui, ele conta duas histórias: a primeira, a que lemos – e que é posta em causa pelos interrogadores; a segunda, é mais “real”. Nesta, não há animais, mas pessoas; não há tigre, apenas Pi, sozinho no mar. Nesta interrogação, prova-se o último teste à fé do ser humano: se esta história nos fosse contada não por um livro (que nos assegura que é ficção), mas por uma pessoa conhecida, seria difícil acreditarmos, principalmente com tantas evidências científicas que colocariam em causa o sucedido. A segunda história pareceria mais plausível. Então, qual das histórias é a real? Essa questão não é exatamente respondida, ficando à mercê da opinião do leitor. No entanto, antes de a responder, deverá pensar primeiro: qual das histórias prefere?
“A Vida de Pi” é uma obra indescritível, é uma experiência. É uma leitura que deverá ser apreciada e refletida, que toca no tema da natureza humana, das nossas crenças e da Ciência, do desespero e da esperança. Verdadeiramente merecedora do seu renome, é uma obra que nos faz pensar e sentir, porque nos vemos nos olhos de Pi e, de certa forma, nos olhos do tigre.
Se gostaste de “A Vida de Pi” também irás gostar de “O Ministério da Felicidade Suprema”, de Arundhati Roy.