A paixão pela fotografia falou mais alto que a formação em História ou o trabalho como designer. Viajou até os Estados Unidos, em 1986, e regressou a Portugal, um ano depois, com uma mala repleta de equipamento fotográfico e negativos. Com 11 livros publicados, atualmente, é o rosto por trás das fotografias do primeiro-ministro, António Costa.
Teve o primeiro contacto com uma câmara fotográfica com apenas 4 anos e desde essa altura que o “clique” faz parte da sua vida. A infância dividida entre a Europa, o Médio Oriente e a América do Sul, devido ao emprego do pai, na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), despertou-lhe a vontade de documentar, através da fotografia, realidades que conhecia. De criança, guarda vivências de países tão diferentes como o Brasil, o Afeganistão, a Bolívia ou a Itália.
Entrou no mundo do fotojornalismo em 1987, no jornal ‘Expresso’ e, em 1995, decidiu trabalhar como freelancer. Entre várias confissões, Clara Azevedo confessa gostar de desafios, revela que odeia estar fechada entre quatro paredes e lembra, com nostalgia, a perda do processo mágico de revelar e imprimir os filmes, além da sua difícil adaptação ao digital. Numa conversa descontraída nas escadas da galeria da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, onde decorre, até 16 de dezembro, a sua mais recente exposição ‘Entre Laços’, Clara Azevedo viaja pelas memórias que transpôs para a nova obra e o duplo significado do nome da exposição.
A vivência em lugares com tradições culturais tão diferentes de Portugal contribuiu para desenvolver um olhar mais abrangente sobre o mundo e uma maior capacidade de observação? Influenciou-a a ser fotógrafa?
Não sei se tenha contribuído totalmente, mas como comecei a viver, consecutivamente, em países diferentes desde os 4 anos, não tenho essa perceção. Lembro-me que, com essa idade, já tinha uma câmara fotográfica e imensa curiosidade em fotografar. É óbvio que, seja em Portugal ou a viver noutros países e noutros continentes, tudo o que nos rodeia, nos influencia. Neste caso, tive, de facto, a sorte de ter uma diversidade de culturas, pessoas e costumes completamente diferentes e de poder observá-los. Claro que essa convivência desperta muita curiosidade, principalmente, quando somos crianças e à medida que vamos crescendo.
Sempre quis ser fotógrafa ou, em alguma fase da sua vida, sentiu vontade de seguir outro caminho profissional?
Por acaso, tinha pensado em seguir História. Tenho uma paixão por história. Entretanto, numa fase em que não sabia muito bem que curso escolher, pensei no que é que história me poderia dar a nível de saídas profissionais e acabei por tirar, na altura, o curso de Design e Decoração de Interiores, no IADE (Instituto de Arte e Decoração – Creative University). E aí comecei a trabalhar em Design Gráfico. Trabalhei em vários ateliers, mas o “ser designer” não me satisfazia. Ainda hoje, gosto imenso de Design, concebo tudo na minha cabeça antes de executar algo e tenho a perceção do que quero e como quero que as coisas fiquem. Mas não gosto de estar fechada num espaço. Na realidade, gosto de estar sempre em movimento.
Nesse tempo, já conciliava o design com o trabalho de fotógrafa. A fotografia esteve sempre presente. Aliás, até tínhamos uma disciplina de Fotografia, no IADE. Depois de completar o curso de Fotografia no AR.CO (Centro de Arte e Comunicação de Lisboa), ainda a trabalhar como designer gráfico, decidi apresentar a proposta de um trabalho para fotografar. Consegui uma bolsa atribuída pela Secretaria de Estado da Cultura – atualmente, Ministério da Cultura – e, com a colaboração da Fundação Luso-Americana, fui para os Estados Unidos para fotografar a comunidade portuguesa, na Nova Inglaterra, entre 1986 e 1987. No fundo, foi esse trabalho que fez com que, finalmente, me dedicasse apenas à fotografia.
Foi graças a esse trabalho que obteve a afirmação da sua identidade enquanto fotógrafa?
Essa experiência foi muito interessante. Estive sozinha uns meses, nos Estados Unidos. Durante esse tempo, percorri as cidades da Nova Inglaterra, sempre em contacto com a população portuguesa que lá morava. Foi, de facto, um trabalho muito profundo e bastante solitário. Deu muito tempo para pensar no que queria fazer e ter as ideias bem estruturadas. Nesse aspeto, foi muito bom e cresci imenso com esse trabalho. Quando voltei, em 1987, trazia na mala quilos de equipamento fotográfico e de negativos. Era quase tudo feito a preto e branco, apesar de também ter fotografado a cores, os designados slides. Trouxe imensas coisas e fiz a minha primeira exposição em Lisboa, na galeria Diferença. Chamava-se “Deus – Pátria – Dollar”. Com esse trabalho, fui depois ao ‘Expresso’, mostrar o meu portefólio e foi assim que comecei a trabalhar nesse jornal. Portanto, foi um trabalho muito determinante para o meu futuro, quer como fotógrafa, quer como pessoa. Aprendi a estar sozinha, a ter as ideias bem estruturadas e a pensar exatamente no que queria. Organizar bem na minha cabeça o que queria fotografar, como gostaria que saísse, como é que tinha de continuar o meu trabalho e qual o fio condutor. E isso ajudou-me imenso.
Do analógico ao digital
Foi difícil começar a trabalhar profissionalmente como fotógrafa, em Portugal, sobretudo porque as redações eram muito masculinas?
Quando comecei a trabalhar no ‘Expresso’, não havia praticamente mulheres. Acho que para além de mim, só me recordo, sinceramente, da Luísa Ferreira e da Catarina Costa Cabral, que depois deixou o jornal. Era completamente um mundo de homens. Por um lado, era bom porque me davam toda a atenção. Mas, por outro lado, havia também aquela questão “da equipa de futebol em que a menina não entra”.
Tendo trabalhado como fotojornalista para jornais como ‘Público’ e ‘Expresso’, que diferenças encontra entre o fotojornalismo/jornalismo que se faz hoje do que existia quando começou?
Hoje em dia, está muito mais fácil por um lado e muito mais difícil e complicado, por outro. Temos ótimos fotojornalistas em Portugal, mas os jornais estão a passar por uma época muito difícil, embora note que há mais pessoas interessadas na fotografia e que fotografam. São pessoas muito mais abertas e que procuram muito. Talvez, no caso de Portugal, quando iniciei a carreira, a fotografia fosse mais confinada. Atualmente, temos fotógrafos que trabalham em diversos sítios no estrangeiro. Com as redes sociais, existe toda uma facilidade em divulgar o nosso trabalho em vários lugares do globo. Não se fica limitado apenas ao local onde se trabalha porque essa matéria pode ser visto em qualquer sítio, o que acaba por ajudar imenso e dar maior visibilidade e amplitude. A nível do equipamento fotográfico, antigamente, era o analógico e, hoje, é o digital.
Como foi a adaptação do analógico para o digital?
Ainda fotografo com o analógico, de vez em quando. Tive imensa dificuldade em adaptar-me ao digital. Tive mesmo quase até ao fim, quando já não podia mais e as pessoas já me pediam trabalhos em digital. E lá tive de ceder e comprar a minha primeira câmara digital. Contudo, fotografar é a mesma coisa porque o olhar não muda. Gostava imenso do analógico, de revelar o filme e imprimir as minhas fotografias. Tudo aquilo era um processo mágico. E agora, não tem essa magia. Vamos para o computador e passamos lá horas. Aquela magia da câmara escura e imagem a aparecer já não existe. No entanto, o processo analógico não seria compatível com os tempos presentes, em que a notícia tem de ser imediata.
A propósito da crise do jornalismo e da consequente falta de emprego nas redações, como é que os fotojornalistas têm enfrentado esta conjuntura? Como têm reagido para ultrapassar esta fase?
Vejo imensos fotojornalistas que fazem os seus trabalhos no estrangeiro e que os divulgam através das redes sociais. Trabalham, por exemplo, para ‘The New York Times’ e para outros jornais internacionais. Deram um salto, não estão apenas em Portugal. Hoje em dia, estamos num mundo global e toda a gente consegue ter ao alcance outros meios de comunicação. É assim que as coisas estão a resultar, felizmente.
Fotógrafa oficial do Primeiro-Ministro
Nos últimos anos, tem trabalhado como freelancer. Quais são maiores dificuldades de trabalhar em regime livre?
É aquele sentimento de nunca sabermos o que é que vai aparecer. Mas também é positivo porque não ficamos quietos à espera que as coisas aconteçam. Fazemos com que aconteçam. E isso é muito bom, não acho que seja uma dificuldade. Simplesmente, colocamos ideias em prática e, acima de tudo, ter iniciativa. No entanto, há meses, semanas ou até dias que existem inúmeros trabalhos e outros meses que não há tantos. Mas é tentar conciliar as coisas. É um desafio.
É a fotógrafa oficial do primeiro-ministro, António Costa. Que responsabilidades esta função representa?
Representa algumas responsabilidades, especialmente porque era uma função que não estava habituada a exercer. Somos dois fotógrafos, eu e o Paulo Vaz Henriques. Por um lado, é uma responsabilidade e, por outro, é uma atividade muito interessante. Temos de saber comunicar a imagem do primeiro-ministro de forma correta e que esta seja percetível para as pessoas que o veem e o seguem. Outra preocupação é a de transparecer uma imagem muito próxima das pessoas e esse é o nosso principal objetivo. Colocamos muitas fotografias do primeiro-ministro nas redes sociais, como é o caso do Instagram e Twitter, para que passe o aspeto de figura humana como todas as outras pessoas são. Quando se é fotógrafa oficial do primeiro-ministro, acabamos por apanhar muitos momentos da história que se está a viver. Então, essa parte é muito estimulante. Em contrapartida, os meus horários não são horários. Não há a estabilidade de um emprego normal. Não há horas nem fins-de-semana, nem existe o típico “eight to five” ou das 8 à 5 da tarde.
Tendo em conta a visibilidade desta figura governamental, além do carácter humano que referiu, qual a maior preocupação quando o fotografa?
Não tenho muitas preocupações. Na realidade, não há nada que nos condicione. Sinto-me muito à vontade em fotografá-lo. Tenho as mesmas preocupações que teria em comunicar a imagem de qualquer outra pessoa. Tenho os cuidados normais, como por exemplo, verificar se está numa boa posição ou com uma determinada expressão que também não gostaria de ver noutra pessoa. Em função disso, faço a minha escolha e o Paulo faz a dele. António Costa é uma pessoa muito aberta. Ele próprio gosta imenso de fotografar com o telemóvel.
Resgatar de memórias
Tem realizado diferentes géneros da fotografia, desde reportagem, fotografias de viagens a retratos. Diz que a sua preferência são projetos pessoais na área da fotografia documental, o que a levou à publicação de onze livros. Por quê esta área em particular?
Também não sei, mas é algo que tenho muito presente em mim. Gosto, de facto, de reportagem. Está em mim desde sempre. Como comecei a fotografar desde pequena e já fotografava pessoas e fazia fotografia de rua, quando ia com a minha mãe, este é um tipo de fotografia que sempre gostei muito. A fotografia documental surgiu naturalmente. Embora faça outros trabalhos, foi a fotografia documental que deu origem aos livros. Outra vertente de que também gosto muito é a fotografia de retrato. Gosto muito de retratar as pessoas e da sensação de entrar um bocadinho dentro da alma delas.
Quais são os trabalhos que mais a marcaram?
Definitivamente, o trabalho dos emigrantes portugueses na Nova Inglaterra. Ao longo dos anos, houve imensas reportagens que fiz que me marcaram, como por exemplo, a vida de um Papa. Outra reportagem foi quando houve um derrame de crude, em Porto Santo, onde acabei por ficar um mês. Foi um trabalho muito extenso e que acompanhei intensamente. No final, todas as coisas nos marcam. Tudo o que seja notícia marca-nos, obviamente. Há trabalhos que eu própria tenho e fiz e que quero continuar a realizar, os quais sinto que também me marcaram muito. Publiquei vários livros, sendo que, dois deles foram em parceria com uma grande amiga, Lúcia Vasconcelos.
O primeiro livro que publiquei foi sobre as termas portuguesas, que estavam completamente abandonadas. Percorremos o país todo, fomos até aos Açores fotografar. Depois, esse trabalho deu origem a outro e a mais um livro. Quando descobrimos as termas, vimos também os palácio-hotéis – os grandes hotéis de Portugal – e fizemos o livro “Splendid Isolation: O Mito do Grande Hotel”. Foram projetos que trabalhei continuamente durante dois anos. Claro que, também tinha o trabalho do jornal, pelo que, só ia fotografar quando podia. Mas são trabalhos que têm muito a ver com aquilo que procuro, que é “um resgatar da memória”. Esta recente exposição ‘Entre Laços’ teve como origem as retrosarias e é também um trabalho de resgate de memórias.
Tem alguns fotógrafos e autores de referência que a inspiram?
Imensos. Há muitos, quer em Portugal, como no estrangeiro. Existem aqueles fotógrafos clássicos, como por exemplo, Josef Koudelka e Cristina Garcia Rodero. Uma obra incontornável é a de Henri Cartier-Bresson, que é, desde sempre, um fotógrafo que admiro. Também gosto imenso de André Kertész. Até acho que me identifico muito mais com ele. Há muitos profissionais da fotografia de quem gosto e que me revejo um bocadinho com o seu trabalho.
É possível dissociar a Clara Azevedo no seu lado mais pessoal da Clara Azevedo fotógrafa ou a fotografia é algo omnipresente?
Por acaso, nunca tinha pensado nisso. Penso que seja quase impossível. Mas, agora que penso nisso… tudo o que vejo, esteja a conduzir ou sentada a ver um filme, estou sempre a ver imagens e transformo-as mesmo, inevitavelmente, em fotografias. Separo tudo o que vejo por imagens. É algo inato, já faz parte de mim. De facto, não consigo descansar o olhar, porque está continuamente a trabalhar. Não é fácil, não consigo dissociar uma coisa da outra. Acaba por ser, às vezes, extenuante, mas é como sou e como vivo.
O poder da fotografia
Qual considera ser o poder da fotografia, nomeadamente, quando documenta certos assuntos e como elemento essencial na informação?
É enorme. Há aquele cliché que diz “uma imagem vale mais que mil palavras” e é verdade. A televisão tem, hoje em dia, um papel fundamental e muito impacto em todas as pessoas que a veem. Acredito e acho mesmo que uma boa fotografia marca intemporalmente alguém, fica para sempre. Tem um poder incrível e há fotografias que estão na memória de todas as pessoas. Se formos pensar em televisão, as imagens passam e ficamos com um conjunto de imagens, mas na fotografia não. A fotografia tem uma importância enorme.
De que maneira é que a fotografia contribui para dar força à função mais nobre do jornalismo: a de informar no sentido da procura da verdade?
Tem de ser mesmo esse o objetivo, informar no sentido da verdade. E acho que, nos últimos anos, é o que tem acontecido. Temos construído uma história da fotografia e do jornalismo muito consistente, exatamente por termos bons fotógrafos.
Contrariamente a outras linguagens fotográficas, o fotojornalismo requer uma atitude espontânea. Como é que tenta captar o “instante decisivo”, usando a expressão de Cartier-Bresson?
É também um bocadinho espontâneo. É necessário ter curiosidade e estar atento. Ao mesmo tempo, há um fator de sorte. Muitas vezes, as coisas acontecem, mas também é preciso estar atento e não desistir. Já me aconteceu e acontece muitas vezes pensar “isto assim seria engraçado”, mas depois estou ali, naquele preciso momento e não acontece aquilo que achei que deveria acontecer e que tinha tudo para acontecer. E então, às vezes, é uma questão de esperar e ter paciência. Depois, existe a felicidade de termos esse “tal” momento que aconteceu naquele bocadinho e que já não se repete… a fotografia nunca se repete. É sempre uma memória. A fotografia que já fizemos há três segundos, já passou a ser memória.
Com a migração da imprensa para o digital, o fotojornalismo teve de adaptar a sua forma às novas tecnologias. Como vê o fotojornalismo no futuro?
Isto está tudo a evoluir tão depressa que já não sei. Mas para já, temos jornais e notícias online e acho que o digital vai ter sempre cada vez mais importância. Aliás, já tem. A maior parte das pessoas lê as notícias na Internet. Imagino que, de facto, no futuro, continuará a ser assim. A evolução é tão rápida que, quase todos os dias, se sentem mudanças. Não sei exatamente prever qual e como será o futuro do fotojornalismo, mas será sempre algo consultado e acessível para todos. Embora deseje que os jornais impressos não desapareçam. Felizmente, ainda há grandes jornais. Em Portugal, há poucos, mas lá fora ainda existem alguns.
De que forma, tenta ou não objetivar a mensagem de uma fotografia, uma vez que a imagem pode desencadear inúmeras interpretações subjetivas ou conotações?
Isso varia de pessoa para pessoa. Depende das interpretações e emoções que cada um vai desencadear ao olhar para uma fotografia. No meu caso, construo as imagens ou um trabalho segundo aquilo que sinto. No entanto, a interpretação das pessoas é livre.
O que é que considera mais impactante na fotografia?
Julgo que se trata da fotografia estar ao alcance de todos e, sobretudo, o facto de esta ser tão democrática e abrangente. A fotografia tem-se democratizado de uma forma incrível. Atualmente, a sua evolução não poderia estar mais democratizada e universal. Com as redes sociais e com esta nova era tecnológica, toda a gente é um bocadinho fotógrafa. A fotografia tornou-se numa ferramenta fundamental de todos, algo que considero muito bom e positivo.
‘Entre Laços’ e novos projetos
A exposição ‘Entre Laços’ foi inaugurada dia 8 de novembro e retrata o mundo dos tecidos. Revelou, numa entrevista à ‘TSF’, que esta exposição nasce das memórias que guarda de quando ia com a sua mãe à retrosaria. Que principal mensagem pretende transmitir: apenas uma vertente autobiográfica da sua obra ou um apelo à memória das coisas sensíveis?
Quando pensei neste trabalho, a ideia era passar a memória das retrosarias. Só me dediquei a fotografar as retrosarias da Rua da Conceição – são seis as que subsistem. Quero preservar a memória dessas retrosarias e espero que o meu trabalho possa contribuir para esse fim. Este é um trabalho que tem muito de mim também. Há uma fotografia das gavetas das retrosarias que fui buscar às “gavetas” das minhas memórias.
Lembro-me de quando era pequena e sempre que vínhamos a Portugal, ia com a minha mãe à Baixa de Lisboa às retrosarias, porque nos sítios onde vivíamos, como por exemplo, no Paquistão, não havia este tipo de lojas. O meu artigo preferido das retrosarias era, sem dúvida, as madrepérolas. Então, a minha mãe levava essas coisas para os outros países. Recordo-me também de recortar os moldes da revista ‘Burda’, que era um sucesso na minha infância.
Uma outra memória feliz é o dia do meu casamento. O meu vestido de noiva foi feito pelo estilista José António Tenente, que é um grande amigo. Pedi-lhe para fazer o vestido e deixei ao seu critério. Para minha surpresa, quando fiz a minha primeira prova do vestido, vi que era todo feito com as entretelas, sedas e tules das retrosarias que visitava na minha infância. Acredito que nada acontece por acaso e, portanto, achei que fazia sentido a exposição não ter somente as memórias de infância, mas mais algumas memórias. Por isso, acrescentei o dia do meu casamento. A partir do momento em que estas retrosarias foram fotografadas, já passam a memórias. São imagens que já foram feitas, logo, já são memórias, embora sejam recentes.
As retrosarias são cada vez menos frequentadas, uma vez que as pessoas tendem a comprar a roupa já pronta a vestir. Na sua visita a este tipo de lojas, identificou este desuso das retrosarias?
Fiquei muito contente porque ainda há muita gente a ir às retrosarias, especialmente estrangeiros – mais estrangeiros do que portugueses. Desde japoneses, alemães, eles procuram imenso as retrosarias. Fiquei surpreendidíssima porque eles entravam e sabiam exatamente o que é que queriam. Felizmente, ainda há quem procure estas lojas. E espero que continue a acontecer.
Que caraterísticas diferenciam ‘Entre Laços’ das demais exposições que já realizou?
Um facto importante sobre a exposição é o seu duplo significado. “Laços” de retrosaria e os laços afetivos e das memórias. É uma exposição que quis, exatamente por serem as retrosarias, que fosse de certa forma táctil, tanto visualmente como sensorialmente. Obviamente que não é para as pessoas estarem a tocar nas fotografias. Mas as fotografias que estão expostas não têm vidros para que as pessoas tenham a perceção da textura do papel, para verem e sentirem isso. Quase como quando estamos nas retrosarias, em que estamos a sentir e a tocar no tecido. Aqui não tocamos, tocamos apenas com o olhar.
Há depois outra vertente que é a videográfica, em que surge o barulho da máquina de costura a coser a linha de um painel com fotografias cosidas e costuradas à máquina com a Amália, uma costureira daqui da freguesia e que costurou um véu de noivado, que também ele acabou por surgir nesta exposição. Outro aspeto é a sua tendência monocromática. Assim que o espaço me foi apresentado, não quis trazer cores fortes, mas sim trabalhar com cores neutras. A única referência visual mais colorida é o vídeo apresentado. Há duas fotografias, as impressas e as de tecido em licra, cobertas por um tule das retrosarias. Estas últimas têm entretelas na parte de cima e rendas na parte de baixo. A fotografia do vestido é uma fotografia em tamanho real, mas também impressa em licra, que se pode tocar. É, de facto, uma exposição que quero que seja o mais táctil possível.
Que ideias tem para os próximos tempos?
Acabei agora de inaugurar esta exposição, mas já tenho vários projetos pensados. Ainda não decidi o que é que vou fazer nem qual será o próximo. As coisas comigo são sempre um bocadinho assim, vou ao sabor do que vai acontecendo. E, às vezes, há qualquer coisa que acontece e leva a que desencadeie o início de um trabalho. Tenho sempre várias ideias que quero realizar, mas depois é preciso que aconteça a coisa certa para o trabalho ser concretizado. Por exemplo, desde há muitos anos que tinha imensa vontade de executar esta exposição das retrosarias. Já tinha pensado anteriormente neste trabalho e quando Rute Reimão, responsável pela cultura da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, e Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia, me mostraram o espaço, aceitei de imediato a proposta e pensei logo adaptar o tema das retrosarias. Portanto, é sempre assim. Há sempre qualquer coisa que faz o “clique” e me leva a começar a trabalhar. Por isso, não sei muito bem qual vai ser o encadeamento a partir daqui, mas agora estou apenas concentrada neste trabalho, que decorre até dia 16 de dezembro, e na sua divulgação nas redes sociais.
DESTAQUES:
“Não ficamos quietos à espera que as coisas aconteçam. Fazemos com que aconteçam.”
“A fotografia nunca se repete. É sempre uma memória. A fotografia que já fizemos há três segundos atrás, já passou a ser memória.”