Os incêndios, a seca prolongada e as alterações climáticas parecem prever o pior dos cenários para Portugal, num futuro não muito longínquo. Só este ano, as chamas destruíram o equivalente a 52 vezes a área de Lisboa. Os especialistas explicam o que está a mudar nas zonas naturais atingidas pelos fogos.
Entre 1990 e 2016, a área ardida em Portugal foi, em média, de 141.111 hectares, tendo variado entre um mínimo de 20.347 hectares, em 2014, e um máximo de 475.531 hectares, em 2003. No final do verão, o território queimado era o segundo maior da história do País, com 418.087 hectares. Com os fogos de 15 de outubro, os números apresentados pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) ascenderam aos 520.515 hectares ardidos, o equivalente a 52 vezes a área de Lisboa.
Uma vez destruídas pelos fogos, o risco de as zonas verdes nunca mais recuperarem é elevado. Como explica Joaquim Sande Silva, especialista em Ecologia do Fogo e professor da Escola Superior Agrária de Coimbra, “o efeito mais drástico que uma comunidade vegetal pode sofrer, após a ocorrência de um incêndio, é a morte imediata de todas as plantas”. O coordenador do Centro de Ecologia Aplicada sublinha que “as áreas florestais desempenham um papel fundamental na conservação dos solos, pois evitam a erosão e, posteriormente, a desertificação, além de funcionarem como importantes reguladoras do ciclo natural da água”.
A floresta portuguesa ocupa 3.2 milhões de hectares, o que corresponde a 35,4% do território nacional. Cerca de 85% da floresta é propriedade privada e apenas 3% pertence ao Estado português. Os restantes 12% são propriedade de comunidades locais. O eucalipto, tantas vezes apontado como o principal responsável pela violência dos fogos, é a espécie florestal dominante, com 25,4% da ocupação, ou seja, 812 mil hectares, seguida do pinheiro bravo com 22,3 % (714 mil hectares). Em declarações à Lusa, João Ataíde das Neves, presidente da CIM – Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra, explicou que “a elevada quantidade de eucaliptos se justifica pelo facto de esta espécie ser considerada um meio de sustento de muitas famílias no território da região de Coimbra”.
As áreas onde o sobreiro é mais abundante, como é o caso do Alentejo, e que corresponde a 23% do território nacional (737 mil hectares) foram as menos propensas aos fogos. O que justifica que parte da reflorestação prevista para território queimado terá de apostar, como revela Joaquim Sande Silva, no sobreiro: “É uma das espécies mais resilientes graças ao efeito isolante da cortiça. Os tecidos vivos do tronco conseguem resistir ao calor e, desta forma, contribuir para a regeneração da copa queimada.”
Da regeneração nasce a esperança
Embora os números de floresta perdida sejam os mais elevados de sempre, Joaquim Sande Silva acredita na capacidade de resiliência da floresta. “As chamas nem sempre atingem toda a vegetação presente e, numa comunidade vegetal, existe a possibilidade de surgirem rebentos após a passagem do fogo”, afirma. No caso das árvores, continua, “o fogo pode não atingir as copas e, mesmo quando acontece, os danos causados nem sempre implicam a extinção das suas funções vitais”. Ao contrário do que se pensa, são as árvores mais velhas que, normalmente, sofrem menos danos. “Estas estão protegidas pela maior espessura da casca e mais altura”, justifica. Por sua vez, as árvores mais novas também apresentam as suas perícias. “Possuem maior capacidade de regeneração dos danos sofridos.”
Da flora sobrevivente de um incêndio, uma percentagem considerável nunca chega a recuperar por completo. Como esclarece o investigador em Educação Agroambiental e Disseminação de Conhecimentos, “existe uma diminuição no crescimento, quer devido à diminuição da fotossíntese, quer por causa dos danos causados nos tecidos dos troncos de árvores. As plantas mais afetadas acabam por morrer como consequência de pragas e doenças, uma vez que as suas defesas naturais estão enfraquecidas”.
Apesar do fogo ser parte integrante do ciclo natural das regiões mediterrâneas, a recuperação após um incêndio pode demorar muito tempo, sobretudo, se os sistemas forem afetados gravemente. A frequência com que ocorrem os incêndios é atualmente bastante superior. Sem floresta, existem agora vários perigos para o ecossistema. João Branco, presidente da associação ambientalista Quercus afirmou, em declarações à LUSA, que “a contaminação dos solos é pejorativa não só para a fauna residente, como também existe um grande risco de poluição da água pública, obrigando ao maior controlo”.
Níveis de poluição em alerta máximo
Anualmente, são libertados para a atmosfera 64 milhões de toneladas de gases com efeitos de estufa (GEE), dos quais 1% a 9% corresponde aos resultados dos incêndios florestais, em Portugal. Até hoje, 2003 foi o ano em que se verificou um maior grau de emissão de CO2 causado pelos incêndios. Contudo, a 16 de outubro, a região Centro atingiu o nível “mau”, o pior do índice de qualidade do ar e ultrapassou o limite diário de partículas em todo o País. Um caso grave não só para a saúde pública como para o ambiente.
Francisco Ferreira, presidente da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, indica algumas das consequências do aumento do nível de CO2: “O valor cada vez mais elevado pode ter impacto na produtividade de vários cereais; na retenção de calor pela atmosfera, que se traduz num maior aquecimento; na origem do ácido carbónico que nos oceanos causa a redução do pH, ou seja, uma acidificação dos mares com uma destruição associada dos bancos de coral e de outras espécies.” Uma maior concentração de gases de efeito de estufa tem grandes implicações no aquecimento global e diretamente nos ecossistemas, quer nos oceanos ou na terra, com influência também nas atividades humanas.
Replantar Portugal
Para contrariar os números desoladores, várias associações e organizações não-governamentais têm movido esforços para voltar a dar vida à floresta portuguesa. Em parceria com a Quercus, as organizações Take C’Air Crew Volunteers e a Replantar Portugal lançaram, por via aérea, 3700 kg de sementes sobre as áreas afetadas pelos incêndios deste verão. Esta ação pretendeu contribuir para reduzir a erosão dos solos e promover a biodiversidade, em zonas íngremes afetadas pelos incêndios. João Branco, da Quercus, explica que as “sementes germinam e criam ervas cujas raízes vão agarrar o solo, diminuindo a sua erosão quando chegarem as chuvas fortes”. Ações como esta aumentam a segurança das pessoas e bens, diminuindo a poluição atmosférica, o efeito de estufa e o consequente aquecimento global.
E os animais, que futuro?
Segundo a cartilha dos bombeiros que atuam nos incêndios, “primeiro, salvam-se as vidas humanas, depois os animais domésticos, a seguir as casas”. No entanto, há quem fique para trás: os animais selvagens.
Gerido pela Quercus, o Centro de Educação e Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco (CERAS)acompanha a fauna de toda a região Centro. É um dos sete organismos existentes em Portugal para resgatar e cuidar da fauna silvestre. Todos os dias são resgatados vários animais ameaçados. O CERAS atua em Santarém, Castelo Branco, Guarda, Portalegre, Coimbra e Leiria. Filipa Lopes, médica veterinária deste organismo, explica que “o centro recebe diversos animais, desde aves de pequeno porte, a várias espécies de aves de rapina, como o açor, a águia-de-asa-redonda, grifos, abutres, mas também raposas, tartarugas, veados, alguns lobos, insetos, répteis e anfíbios afetados”.
A recolha dos animais selvagens feridos é realizada pelas equipas da GNR (SEPNA) e dos vigilantes da natureza do ICNF ou das pessoas que ajudam por vontade própria. Para cada animal ferido, são necessárias, adianta Filipa Lopes, três pessoas. Uma para agarrar o animal, outra para operar e uma terceira que registe os dados biométricos e aponte a evolução do tratamento. A médica veterinária do CERAS garante que “não é possível precisar um número médio de entradas na altura dos incêndios porque a maioria dos animais foram chegando cerca de uma a duas semanas após os incêndios”.
Gerir o avantajado número de animais é difícil, porque, refere a médica veterinária, “o centro trabalha essencialmente com trabalho voluntário”. A maioria dos elementos que se encarregam de ajudar estes animais são estudantes de Medicina Veterinária ou Biologia. Apesar do pouco financiamento e do espaço não estar preparado para tantos animais de uma só vez, Filipa Lopes sublinha que “os objetivos do CERAS passam por salvar o maior número de animais possível e, quando recuperados, libertá-los no habitat natural”.
Muitas vezes, quando são os animais são devolvidos à natureza, é necessário procurar um habitat adequado, onde ainda exista alimento e já aí vivam outros exemplares da mesma espécie. Filipa Lopes recorda a história de sucesso de uma jovem gineta: “Ela foi trazida por vontade própria de um particular. Estava muito magra, parasitada, com queimaduras nas patas e tinha sido encontrada numa mina em eminência de afogamento. Felizmente, recuperou muito bem e foi possível devolvê-la à natureza.”
A médica veterinária explica que “normalmente, as perdas não são muito elevadas porque os animais têm mecanismos de fuga e proteção». Contudo, as populações de animais selvagens são quem sofre mais, pois, explica, “dependem da comunidade vegetal para sobreviver e, com o seu desaparecimento, nada lhes resta”.
Por outro lado, em relação à fauna do solo, verifica-se, em geral, uma diminuição importante das populações das diferentes espécies que habitam nas camadas mais superficiais do solo, como as formigas que podem aumentar a sua diversidade, devido à capacidade que têm para colonizar o novo meio. “É igualmente esta capacidade para colonizar um novo meio que leva ao aumento de algumas pragas florestais, que se não forem reguladas, acabam por consistir em ameaças», refere Joaquim Sande Silva.
O aumento das populações de insetos pode levar ao aumento da população de aves insectívoras. Como aponta o mesmo especialista, “após um incêndio, as árvores mortas podem constituir locais excelentes, não só para a alimentação, mas também para a nidificação de diversas espécies de aves. Da mesma forma, a criação de espaços abertos com vegetação rasteira pode beneficiar as aves que vivem no solo, como as perdizes ou as codornizes. Pelo contrário, as espécies de aves que dependem da existência de folhas e ramos para a nidificação e alimentação são normalmente prejudicadas, sobretudo durante os primeiros anos, até à recolonização da área pela vegetação”.
Os mamíferos que residiam em zonas de maior diversidade de vegetação, nas grandes áreas queimadas de Coimbra e Castelo Branco enfrentam um futuro difícil. “Com os fogos, perderam abrigo e a alimentação. Se não forem resgatados rapidamente, acabam por morrer», alerta Filipa Lopes. No entanto, conclui Joaquim Sande Silva, “é frequente existir um acréscimo de biodiversidade vegetal, logo após o incêndio, e em alguns casos, também animal. Depois, vai diminuindo devido à dominância de uma ou duas espécies melhor adaptadas e com maiores taxas de crescimento”.
“Portugal contra os incêndios”
O Homem, desde muito cedo, começou a desestabilizar os ecossistemas naturais através da desflorestação, tendo por objetivo dar lugar a terrenos para a produção agrícola que originaram os grandes desertos e a consequente diminuição da fotossíntese. A produção de oxigénio, um elemento essencial à vida no planeta, começou a diminuir, permitindo um aumento gradual do dióxido de carbono na biosfera.
O problema de origem socio ambiental é, segundo os ambientalistas, complexo e a sua inversão passa pela educação, consciencialização e responsabilização da sociedade civil para a mudança de comportamentos. O caso da Galiza serviu de exemplo para o País. Após a morte de quatro pessoas causada pelos incêndios no Norte de Espanha, milhares de cidadãos espanhóis concentraram-se para manifestar a sua insatisfação pela política florestal e pedir a demissão do presidente da Junta da Galiza, Alberto Nunes Feijóo. Este acontecimento despertou a consciência dos portugueses, que criaram a iniciativa online “Portugal contra os incêndios”. Face à catástrofe de 2017, a Quercus considera urgente que “seja feita uma reflexão profunda na sociedade sobre a problemática dos riscos na floresta para que o paradigma da floresta que temos seja alterado”.