As chamas de 2017 nunca se irão apagar da memória dos portugueses. Os incêndios que taparam o sol neste verão também destruíram milhares de hectares em áreas protegidas, com perdas significativas de algumas das espécies mais raras da fauna e flora ibéricas. Passados seis meses, a poluição da atmosfera e a contaminação dos solos continua a pôr em risco a sobrevivência da natureza.
A dimensão inesperada dos incêndios deste verão provocou uma realidade dantesca que ainda hoje nos deixa perplexos sobre como pode ter sido possível. Num total cenário de devastação nunca antes vivido em território nacional e que não poupou vidas, habitações, zonas urbanas e rurais, as consequências ambientais tiveram, como seria de esperar, repercussões alarmantes no imediato. A 15 de outubro, o País registou um dos incidentes mais graves em termos de poluição do ar por causa das condições meteorológicas.
A passagem do furacão Ophelia, que trouxe vento forte do Sul e arrastou as poeiras do deserto do Norte de África, o fumo dos incêndios, a juntar ao calor intenso e à falta de vento geraram concentrações elevadas de poluentes na camada de ar junto ao solo. Nessa altura, Francisco Ferreira, presidente da ZERO- ASSOCIAÇÃO SISTEMA TERRESTRE SUSTENTÁVEL, alertava, em declarações à Imprensa, que tinham sido ultrapassados os limites de acumulação de partículas poluentes na atmosfera, em várias regiões. Não apenas em muitos concelhos da região Centro, mas de Lisboa e Vale do Tejo ao Algarve. O também professor investigador da Universidade Nova na área de qualidade do ar revelava que os níveis de poluição preocupantes já vinham a ser registados desde o dia 6 de outubro, por causa das condições meteorológicas. A intensidade do fumo e as partículas libertadas na floresta portuguesa chegaram, nos dias 15 e 16, ao Norte de França, Sul de Inglaterra, Norte da Alemanha e aos países bálticos, afetando a qualidade do ar, nestas zonas da Europa.
À procura de culpados
Ainda hoje se procuram as causas da tragédia de Pedrógão Grande, que a 17 de junho provocou 67 mortos e mais de 200 feridos, e dos incêndios de outubro, que em apenas dois dias consumiram 220 mil hectares, causando 44 vítimas fatais e mais de 70 feridos. Entre janeiro até 31 de outubro deste ano, registaram-se, de acordo com dados do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), um total de 16.981 ocorrências (3.653 incêndios florestais e 13.328 fogachos) que resultaram em 442.418 hectares de área ardida de espaços florestais, entre povoamentos (264.951) e matos (177.467).
Samuel Infante, representante da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, de Castelo Branco, a região que até ao 15 de outubro era o distrito mais fustigado pelas chamas, aponta várias razões para a situação que se viveu em Portugal: “Em primeiro lugar, a política desastrosa dos últimos 50 anos, em temos florestais onde se tem apostado muito nas monoculturas, de pinheiro ou de eucalipto, ao invés da floresta múltipla de carvalhos, de folhosas, de sobreiros e azinheiras e, portanto, dá-se o desordenamento florestal.” O ambientalista revela que “as monoculturas levam a problemas quer de pragas como de doenças, a um empobrecimento da biodiversidade, dos habitats, da questão dos recursos hídricos e, por isso, há muitas implicações ambientais. Em cenários como estes, são espécies que ardem muito mais facilmente, ao contrário das florestas autóctones nativas que são resistentes ao fogo, são florestas mediterrânicas”.
A maior preocupação, neste momento, é o facto de Portugal estar a viver uma situação de seca severa. “A tragédia que se abateu sobre o nosso país foi, em grande parte, provocada pela seca”, sublinha.
O problema das monoculturas
As monoculturas que dominam a floresta portuguesa desde os anos 1980 têm sido apontadas pelos especialistas em engenharia ambiental para justificar as dimensões que os incêndios assumiram este verão. Como explica Samuel Infante, “sendo o nosso país mediterrânico, o fogo é um fenómeno natural em ciclos de 50 ou 40 anos e se as florestas forem mediterrânicas, a propagação do fogo é completamente diferente e é muito mais fácil de controlar. No entanto, quando se tem milhares e milhares de hectares de monoculturas, por mais meios que se tenham, é muito complicado dominar os incêndios”. O responsável pela Quercus de Castelo Branco revela que “Portugal já é o país do mundo que tem maior área eucaliptal per capita. Há mais eucaliptos do que na própria Austrália, que é de onde esta espécie é originária. Não faz qualquer tipo de sentido”.
Com estes grandes incêndios, continua o ambientalista, “uma das principais preocupações é o facto dos eucaliptos e dos pinheiros, devido às resinas que têm, atingirem temperaturas muito elevadas. Desta forma, é tudo destruído, não fica nenhuma semente e, agora com as primeiras chuvas, o solo vai ser todo arrastado, com risco de contaminação nas linhas de água devido aos produtos químicos provenientes das cinzas e ainda vamos sofrer as consequências dos incêndios durante os próximos meses ou até mesmo anos”.
Consequências dos incêndios
O meio ambiente é afetado de todas as formas, uma vez que as árvores são naturalmente os pulmões do planeta. Os incêndios criam uma rutura dos ciclos e das cadeias naturais dos ecossistemas, com sérias consequências a curto e longo prazo. “A perda de solo é dos principais problemas dos fogos. Se destruirmos um solo, dificilmente volta a haver floresta e um ecossistema, o que leva à perda de biodiversidade, à falta de abrigo e de alimentos para a fauna. As linhas de água também ficam contaminadas com o arrastamento das cinzas e surgem problemas nas recargas dos aquíferos, uma das funções da floresta, que faz com que haja infiltração das chuvas, das reservas e das nascentes subterrâneas. Não havendo árvores, a água vai passar muito rápido e vai ‘a correr’ para o mar”, aponta Samuel. Paulo Alves, biólogo da Quercus, também em funções em Castelo Branco, acrescenta que “após um incêndio, o processo natural de desenvolvimento da flora é totalmente alterado e os animais desaparecem. O solo fica pobre devido à grande erosão que sofreu e é preciso tempo para as árvores rebentarem, não é uma questão de dias ou meses”.
Para evitar estas consequências, Paulo Alves considera que “seria importante proceder-se a uma remodelação completa do sistema e das entidades responsáveis pela prevenção e combate aos incêndios, mudar radicalmente as mentalidades e, ao invés de atuar quando o problema existe, fazer todos os possíveis para erradicar catástrofes com a dimensão dos incêndios de 2017. Seria ainda importante disponibilizar meios e financiamento para que melhores planos de ordenamento da floresta portuguesa sejam realizados e tratamento severo para a mão criminosa”.
Palavras de prevenção
Com base na experiência no terreno, Samuel Infante apresenta algumas formas de prevenção dos incêndios que já são postas em prática por esta associação ambientalista: “Em primeiro lugar, tentamos sensibilizar a opinião pública, os produtores e toda a sociedade em geral. Já há muitos anos que tentamos exigir outra política florestal, batalhamos sempre pela defesa da nossa floresta e por um modelo de florestação diferente. Apostamos também na criação de projetos e ações de deflorestação e temos ainda variadíssimas campanhas, uma delas com os CTT, “Uma Árvore pela Floresta”, que dá enfoque à importância da plantação de árvores de espécies autóctones em terrenos de todo o País, incluindo áreas ardidas que, após estes incêndios, é o mais importante.”
Paulo Alves enumera mais uma iniciativa que já conta com cerca de 70 voluntários. “Estaremos no Monte Barata ao plantar duas mil árvores. Com os incêndios, as pessoas ficaram mais preocupadas e veem-se mais movimentos cívicos das freguesias e das câmaras para reflorestar com árvores como o sobreiro, a azinheira e o carvalho. Estas, apesar de demorarem a crescer, são benéficas em caso de incêndio.”
Samuel Infante reforça novamente a ideia de que é necessário apostar numa floresta diferente de maneira a prevenir futuros incêndios. “Os eucaliptais são os chamados ‘desertos verdes’ onde não há vida nenhuma. Não há turismo, caça, produção de mel, de porco preto, de madeiras nobres, ou seja, é apenas uma solução de curto-médio prazo, mas que acaba por não ser beneficiante.” Eternamente empenhado pela defesa do ambiente, o responsável da Quercus de Castelo Branco acredita que “Portugal tem uma floresta que pode ser altamente competitiva e com potencial para apostar em serviços económicos e de ecossistema, onde existe a possibilidade de produzir caça, biodiversidade, queijo, leite, cogumelos, mel, turismo, etc. Há, portanto, um conjunto de atividades muito diversificado que se fazem nas florestas nativas autóctones e não eucaliptais. Se não mudarmos a floresta e o modelo de gestão, este tipo de incêndios não terá fim.”
A fauna após os incêndios
CERAS: o salvador da vida animal
Samuel Infante também é o diretor do Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens (CERAS), um projeto da Quercus para recuperar os animais selvagens que entram feridos ou debilitados de forma a conseguir devolvê-los à natureza. “É um projeto muito específico em que nos preocupamos com a recuperação dos animais”, afirma. Este espaço de acolhimento de espécies selvagens recebeu todos os animais vítimas dos incêndios da zona de Pedrógão Grande, Sertã, Castelo Branco, Guarda, entre tantos outros lugares da zona Centro afetados.
A seca foi sentida, sobretudo, pelas espécies selvagens. “Os animais sentiram-no antes de nós devido aos golpes de calor, à escassez de alimento e à falta de animais para predar. Os incêndios vieram afetar, em muito, a fauna. Os fogos passam e destroem-na. É por essa mesma razão que deve existir gestão e preocupação com o ambiente”, refere Paulo Alves, biólogo da Quercus de Castelo Branco.
Ana Filipa Lopes, médica veterinária responsável, realça que “os incêndios destruíram muitos habitats, sobretudo, em algumas zonas protegidas, como aconteceu na zona do Tejo Internacional, nas Portas de Ródão, onde nidifica uma comunidade importante de grifos e abutres. Dependendo da área ardida, vão afetar determinadas espécies animais, umas mais do que outras”. A médica afirma ainda que “os animais provenientes dos incêndios são apenas uma ponta do iceberg, pois a grande maioria não foi encontrada”.
Os incêndios de 2017 pouparam, ainda assim, alguma das zonas mais importantes de biodiversidade, com exceção da zona de Vila Velha de Ródão, no distrito de Castelo Branco. “Felizmente, as áreas mais afetadas não são aquelas mais ricas em biodiversidade. Um eucaliptal, que é aquele que mais arde, não é rico em biodiversidade, ou seja, não tem tantas aves como uma zona de montado”, esclarece a responsável clínica do CERAS.
Ana Filipa Lopes explica que nem sempre é fácil perceber se determinado animal veio por causa de um incêndio, pois tanto pode aparecer um com as patas queimadas, sinais óbvios, como não: “Acontece que alguns se apresentam fisicamente e visualmente bem. No entanto, estão muito desidratados, devido à dificuldade que encontram em encontrar alimento e água disponível”. Contudo, acrescenta, “foram notáveis alguns picos após os fogos relativamente à entrada dos animais no centro. Posso dizer que o ano passado entraram 240 animais no total e, este ano, já passamos dos 350. É um aumento muito grande.”
Os esforços empreendidos pelos especialistas e voluntários para salvar muitos dos animais que chegam ao CERAS e os devolver à natureza não impede que muitos deles fiquem mais vulneráveis e com condições de sobrevivência difíceis. “Há sempre seres que aparecem no CERAS com algum traumatismo ou lesão física, mas com o acontecimento desta catástrofe, concluímos que muitos deles acabaram por ficar mais frágeis, debilitados e stressados devido à ânsia de fugir dos incêndios, de procurar um novo território ou de ter que lutar com outros animais pelo escasso abrigo e alimento.”
CERAS devolve gineta vítima de incêndio à natureza
A corrida para a liberdade
Domingo, 10 de dezembro, junto ao Tejo Internacional, em Monforte da Beira, concelho de Castelo Branco. Samuel Infante, diretor do CERAS, Ana Filipa Lopes, responsável clínica do centro, o biólogo Paulo Alves e um grupo de voluntários aguardam por mais uma libertação de um animal, vítima dos incêndios. Ao chegaram ao Monte Barata, a reserva da Quercus, a equipa da associação ambientalista escolheu de imediato o terreno mais adequado para devolverem uma gineta à natureza, após o período de tratamento e recuperação.
O animal encontra-se numa caixa de transporte, resguardado por uma manta para se manter calmo e quente. Os ambientalistas sussurram e tentam manter uma certa distância para não assustar o bicho. Samuel Infante posiciona uma câmara GoPro para que o momento seja eternizado, enquanto uma das voluntárias se prepara para abrir a transportadora. «A nossa preocupação é tratá-los, recuperá-los e devolvê-los à natureza, como é o caso desta gineta e de outros que foram libertados ao longo do verão», afirma Ana Filipa Lopes.
Depois do cenário montado, dá-se então o momento aguardado por todos. A transportadora é aberta e a gineta, após olhar em redor e se certificar que o caminho está livre, corre pela floresta adentro, à procura de um novo abrigo onde irá recomeçar mais uma etapa da vida de sobrevivente.
Samuel Infante tenta segui-la e garantir de que está segura, mas o animal é demasiado rápido. Perde-lhe o rasto, mas no rosto vislumbra-se a satisfação de mais uma missão cumprida. Durantes os próximos meses, o ecologista do CERAS espera poder repetir o ritual de libertação, em largas dezenas de outros animais a aguardar o regresso à natureza.