A infância difícil não o deixou desistir do sonho, e este ano, assinala as bodas de diamante da carreira profissional. Ruy de Carvalho, o mais prestigiado ator e nome maior do teatro em Portugal, considera-se um cidadão comum que, vive de forma autónoma, feliz e apaixonado pela vida que construiu.
Ruy de Carvalho celebra 91 anos de vida e 75 de carreira profissional. É um nome conhecido dos portugueses e leva o nome do teatro além fronteiras. Continua ainda hoje a subir aos palcos e sublinha a necessidade de nos mantermos vivos, porque “o que foi dada foi vida, não foi morte”.
O ator abriu as portas de sua casa para uma entrevista dedicada a memórias e ao que ainda quer viver. Na sala da sua casa, cada parede conta um pouco da história de família, recheada de retratos e quadros dos que mais admira.
Como define Ruy de Carvalho, o “Homem”?
É um homem normalíssimo, sou um cidadão normal. Tenho jeito para representar, descobri que tinha e valeu a pena porque sou ator há muitos anos. O “homem” civil é um homem normalíssimo, não sou mais do que os outros. Quais as diferenças que poderei ter? São nenhumas, faço a minha vida normal como cidadão civil que sou. Há pessoas que se impressionam com isso, acham estranho que eu vá ao supermercado, que faça compras, que viva sozinho e que ande a pé ou ande de autocarro. Sou uma pessoa normalíssima, não tenho nenhuma definição especial para mim. Tenho é jeito para representar.
Numa entrevista ao “Discurso Direto” assinala a sua passagem por África durante a infância. Durante os anos que viveu em África, qual a situação que mais recorda?
São todas, adoro África. Tenho uma paixão muito grande por África no seu todo. É claro que tenho um sítio onde localizo melhor o meu amor, que é Angola. Vivi em Angola quando era pequenino e, depois, como homem e como ator, já lá fui três vezes. África enche-me muito o coração, porque gosto muito de África, se calhar sou africano mesmo de alma.
“Eram só duas carcaças para uma semana, portanto, foi uma altura muito complicada”
É de conhecimento público que a sua família era republicana. Como é que uma criança de 12 anos atravessa a II Guerra Mundial numa família com educação republicana?
Atravessei com algumas dificuldades e com a sorte do meu pai ser oficial do exército porque, de vez em quando, tinha algumas benesses. Tínhamos duas carcaças por semana, mais do que os outros, naturalmente. Pão branco, pão de trigo era um privilégio dos militares na altura. Eram só duas carcaças para uma semana, portanto, foi uma altura muito complicada na vida de qualquer pessoa que viveu nessa época em Portugal, sendo mesmo um país neutral, mas os efeitos da guerra sentiram-se muito cá.
Admitiu numa entrevista “À conversa com…” que é cristão. Qual foi o momento em que a religião e a fé apareceram na sua vida?
Acho que desde pequenino que acredito em Cristo. Depois, fui cultivando esse amor a Cristo e praticando as suas ideias o mais possível como ser humano. É por isso que digo que sou igual aos outros. Cristo ensinou-me a ser igual aos outros. Depois, tive outros exemplos que me foram fortalecendo até no meu trabalho, como o S. Francisco de Assis. Eu fiz a figura do S. Francisco de Assis e fiquei muito apaixonado.
Foi casado mais de 50 anos com a sua mulher Rute. Sonhava com o casamento da forma como foi vivido?
Sim. Não conhecia a minha mulher quando me apaixonei por ela. Eu vi-a passar e dizia a um colega meu: “aquela menina que vai ali, gostava que fosse minha mulher e mãe dos meus filhos” e ela foi. Passado um tempo, começámo-nos a encontrar, ela dançava e eu representava, estávamos no conservatório [Nacional] e foi aí que nos conhecemos. Depois, aproximámo-nos porque eu estava no [Teatro Nacional] S. Carlos, cantava no coro e a minha mulher era bailarina da Margarida Abreu do Circuito Coreográfico. Foi assim que começou o nosso amor, os nove anos de namoro e os nossos 53 anos de casados.
Qual é o segredo para 53 anos de casados?
É amar. O segredo é a amizade. Inicialmente, o que desperta mais é a parte sexual, o amor sexual, mas que se pode transformar em toda uma a vida em grande amizade, embora nunca deixe de existir. Se é um casal que se dá bem, é capaz de toda a vida ter um quarto de hora para isso [sexo]. O que atrai é realmente a beleza física de cada um deles ou a atração física de cada um.
Sente que a vida familiar e privada é comprometida pela profissão de ator?
Não. Se nós fizermos o possível não é comprometida de maneira nenhuma. A nossa profissão serve para alimentaremos a outra parte. As duas conjugam-se muito bem uma com a outra, há afastamento… O ator tem uma vida muito itinerante, tem de andar pelo mundo. Mas isso nunca teve uma interferência negativa, sempre positiva entre a minha vida profissional e a minha vida civil.
Sente que nunca faltou afeto em casa no tempo em que estava fora para trabalhar?
[silêncio] Eu vou dar um exemplo, é melhor. Fui diretor do Teatro Experimental do Porto e vim 76 vezes a Lisboa ver os meus filhos durante um ano e tal. Eles iam passar férias comigo. De vez em quando, iam lá para cima [Porto] para o pé de mim. Eu nunca perdi o afeto com os meus filhos, nem nunca deixei de os ver crescer.Quando deu os primeiros passos no teatro em 1943, onde esperava que o sonho o levasse?
Nunca pensei que chegasse aqui. Não pensei, não sabia, pus sempre o mesmo amor e dedicação no meu trabalho desde que comecei. Comecei mais cedo ainda, na Covilhã, mas eu não conto esse tempo porque foi apenas uma experiência que tive, porque era fácil para mim contactar com pessoas do teatro. Eu tinha um irmão e uma irmã que eram atores. Os meus pais eram viúvos [dos seus anteriores casamentos], a minha mãe tinha dois filhos atores mais velhos que eu, um com mais 17 anos e outro com mais 19.
“Os mais novos são os que me vão reciclando”
Considera que com a sua família na profissão foi mais fácil chegar a ator ou foram coisas distintas?
Foi mais fácil. Foi mais fácil chegar à profissão porque eu já conhecia o meio, já conhecia as pessoas do meio, muitos me viram dentro da barriga da minha mãe. Foi fácil de conhecer atores como o João Villaret ou o Vasco Santana. Os meus colegas todos por quem tenho muita estima, os que já partiram e aqueles que tenho hoje, os mais novos, são os que me vão reciclando [risos].
Como é que o Ruy de Carvalho, homem, observa o Ruy de Carvalho, profissional?
Com muito respeito. Tenho que respeitar muito a profissão que tenho. Eu até digo que sou amador profissional. Um amador é quem ama aquilo que faz e eu amo aquilo que faço. Eu tenho um respeito enorme pela minha profissão e faço o possível para fazer dela uma profissão muito respeitável.
“Eu tenho a minha política própria (…)”
Na entrevista dada “À conversa com.…”, recorda a sua passagem como presidente do Conselho Nacional para a Política da 3º Idade. Como surgiu a entrada para este cargo político?
Sim, era mais ou menos uma vida política. Eu estava a trabalhar para o Governo e, no fundo, foi o ministério que me contactou para isso. Não entrei na vida política, eu tenho a minha política própria, como é que hei de dizer… sou moderado na minha política, não tenho ódios a nenhum setor da política, nem ideia nenhuma religiosa ou política. Esse tempo foi um tempo maravilhoso para mim porque muitas vezes, era o mais velho, quando ia falar com os mais idosos para lhes dizer que vale a pena viver. A vida é para ser vivida, que não se morre antes. A morte é certa, só se morre num segundo. Nós temos uma coisa para viver, que é a vida, não podemos abdicar de a ter, nem de morrer antes, somos sempre úteis e, quando não estamos como úteis, tentamos pelo menos que alguém cuide de nós o suficiente para não sermos completamente vegetais.
Em 2017, foi homenageado pela Presidência da República pelos seus 90 anos de vida e 75 anos de carreira. O que pensou e sentiu quando soube que iria ser homenageado?
[Silêncio] Ora bem, eu acho que nestes anos todos que tenho, já fui homenageado várias vezes e sinto sempre um grande prazer e uma grande honra nisso. Sobretudo quando isso é uma escolha das outras pessoas, daqueles a quem eu sirvo, o público. Quando é um reconhecimento pelo trabalho ou pela qualidade do trabalho, também fico honrado com isso. Eu sou várias coisas, sou Doutor Honoris Causa… sou muita coisa, mas não gosto de falar disso, não gosto de falar de mim. Tenho sido muito estimado, muito amado e muito bem tratado, não tenho razão de queixa da minha profissão.
“Não me arrependo nada do que fiz”
Recentemente, declarou numa entrevista ao “Alta Definição” que “enquanto cá estiver, faço questão de viver intensamente”. Vive os 91 anos de forma intensa como quer?
Vivo. Estou a trabalhar, estou a fazer Shakespeare no Teatro Experimental de Cascais, portanto, continuo a fazer a minha vida e, aliás, o meu livro acaba assim, não me arrependo nada do que fiz nestes 91 anos.
O que “viver” representa para si?
Acho que é uma coisa que as pessoas deviam pensar sempre, que viver é o que é, é o nosso destino, não é morrer. Morrer é certo, não é um destino, não sabemos qual é o final que temos. Eu tenho 91 anos, mas há quem morra com 30 anos, 20 anos, 10 anos, muito pequeninos. Morre-se em qualquer altura. O que foi dada foi vida, não foi morte. A morte é o terminar de uma vida, mas é um segundo.
Há alguma restrição por causa da idade?
Restrição não há. A idade por vezes não nos dá todos os dons que queríamos, vamos perdendo algumas faculdades, algumas coisas que se vão perdendo… o ver melhor, o ver pior, o ouvir melhor, o ouvir pior. Eu ainda não tenho nada disso e, como homem, ainda me sinto um homem capaz.
Sente que consegue fazer tudo aquilo que quer e que deseja diariamente?
Nem tudo o que desejo, eu consigo. Há coisas que desejo, com certeza, mas que, se calhar, tenho vergonha de as pedir.