Em Sarilhos Pequenos, na Margem Sul do Tejo, o estaleiro naval de Jaime Costa é o último em funcionamento dedicado em exclusivo à construção e reparação de barcos em madeira. Uma tradição que passou por três gerações e que comemora este ano sete décadas nas mãos da mesma família.
A manhã de trabalho já vai longa quando chegámos ao Estaleiro Naval de Sarilhos Pequenos, concelho da Moita, na Margem Sul do rio Tejo. Jaime Costa, o proprietário, recebe-nos com um sorriso. Nascido em 1953, filho e neto de carpinteiros, aprendeu os segredos da construção de embarcações tradicionais ao lado do pai, também ele Jaime, que comprou o estaleiro em 1955. “A minha história praticamente já estava pré-concebida. Comecei aqui aos 11 anos, quando acabei a quarta classe”.
Seis décadas depois, mestre Jaime, como é conhecido por todos, continua a lutar para manter viva a herança que recebeu do pai. Mais do que uma profissão, esta é a sua segunda pele. “A minha vida ficou toda aqui. O meu pai passou três quartos da vida no estaleiro e eu estou no mesmo caminho”.
“Seguimos o mesmo processo que era usado há 60 anos”
Entre os trabalhadores que o acompanham desde sempre está o carpinteiro João Estrela. Começou a trabalhar na construção naval em 1953, ainda em casa do avô de Jaime, e entrou no estaleiro dois anos depois. Trabalhou também na Lisnave. “Antigamente era tudo feito à mão. Para cortar madeiras de 15 metros tínhamos de usar serras manuais. Dava muito trabalho. Hoje temos máquinas elétricas que facilitam, mas o processo continua cheio de desafios”, conta João, que, do alto dos seus de 83 anos, explica ainda a importância na escolha da madeira. “Usamos madeira mansa e madeira brava. A brava é um pau mais comprido e a mansa é a que dá a pinha e o pinhão. Cada uma tem a sua função na construção e deve ser adaptada a cada embarcação”.
Apesar do uso de algumas técnicas e máquinas modernas, o estaleiro mantém-se fiel à tradição. Mestre Jaime reforça as palavras de João Estrela e sublinha a importância de preservar os métodos antigos. “Seguimos o mesmo processo que era usado há 60 anos. Acreditamos que os barcos devem ser construídos como antigamente, para respeitar a sua história”.
Também Leonel Lopes Calafate chegou cedo ao estaleiro, com apenas 10 anos, logo após concluir a quarta classe. Aprendeu a arte de calafetar, técnica essencial para a impermeabilização dos barcos. “O material que usamos é a estopa e o breu, que fervemos para embeber a pele de carneiro. O linho que usávamos antigamente, já praticamente desapareceu”, conta. Para garantir a duração das embarcações, refere ainda que é necessário realizar manutenções a cada seis meses.
Apesar da construção e reparação de barcos ser um trabalho de detalhe e exigente, Leonel, confessa que nunca pensou fazer outra coisa. “O meu ofício verdadeiro é o de calafate, mas fui adaptado para fazer tudo. Aqui aprendemos a ser polivalentes”. Leonel ainda é um jovem, quando comparado com João Estrela. Tem 71 anos.
Trabalho a todo o vapor
Neste momento, está em construção uma fragata para a Câmara Municipal do Montijo. “Normalmente, uma embarcação demora cerca de nove meses a ser construída, desde o início até estar pronta para a água”. Estava previsto para que fosse entregue em setembro, mas a quantidade de trabalhos e a reparações de outras embarcações obrigou a reajustar os prazos. Ainda assim, Jaime mantém o otimismo. “Acredito que, ao ritmo que estamos a trabalhar, conseguimos terminar este ano”.
A rapidez com que conseguiram construir as cavernas (uma das partes mais importantes da embarcação) é motivo de orgulho para o Mestre. “Em três meses, conseguimos concluir as cavernas, algo que nunca tinha acontecido antes no estaleiro. Mostra bem a dinâmica e a força de como nós nos empenhamos para construir esta fragata para a Câmara do Montijo. Não me lembro, nestes anos todos, de termos uma obra tão rápida e isso deve-se à boa estrutura que eu tenho e ao que aprendi com o meu pai, na preparação das madeiras.”
Os pintores Nuno Tábuas de 51 anos e José Patusco de 47 anos, são responsáveis por dar o toque final às embarcações. Nuno, cresceu ao pé de Jaime e dos pais deste e frequenta o estaleiro desde sempre. Embora não tenha preferência por embarcações específicas, admite que trabalhar em barcos típicos é sempre especial. “É a nossa arte, a nossa história e dá outro gosto e outro prazer”. Para ele, é importante garantir que as técnicas tradicionais da pintura sejam preservadas, como as letras e os floreados característicos de barcos típicos.
José Patusco emigrou aos 18 anos para Inglaterra e foi trabalhar para uma empresa de navios de passageiros — a Fred Olsen Cruise Lines. Aos 32 anos regressou a Portugal e está no estaleiro há oito. O trabalhador revela os tipos de madeira utilizados. “Utilizamos o pinho bravo, o pinheiro manso, a kambala e o carvalho. As técnicas já sofreram alterações do que eram antigamente, mas algumas ainda utilizamos a moda antiga, pelo menos aqui”, conclui.
Entre os trabalhadores, há quem tenha uma história diferente. Andreas, de 40 anos, chegou ao estaleiro há pouco mais de um ano, vindo da Dinamarca. Ainda pouco fala português, mas isso não parece impedi-lo de dedicar-se ao trabalho com afinco. Após mudar-se para Portugal com a mulher, encontrou ali um lugar para dar continuidade ao trabalho que já fazia na terra natal. A adaptação tem sido relativamente simples. “Não considero o processo difícil, mas é preciso pensar bem antes de agir. É um trabalho que exige planeamento”, reflete.
“Se calhar, só vou trabalhar mais dois anos”
Mestre Jaime conta que, em virtude da ausência de estaleiros no Estuário do Tejo e no Estuário do Sado, tudo o que seja de madeira vêm aqui parar”, sejam elas fragatas, varinos, muletas, galeões, canoas, catraios ou lanchas. Não se pense, contudo, que o futuro está garantido. Bem pelo contrário. “De 42 estaleiros que havia na margem sul, este é o único que resta. Hoje somos apenas quatro trabalhadores a tempo inteiro e mais dois pintores. No tempo do meu pai éramos 33”.
A solução poderá passar por transformar o espaço numa escola de carpintaria naval, ideia que, segundo ele, ainda não encontrou apoio suficiente. “Sem inovação ou ajuda, este estaleiro vai acabar como tantos outros: abandonado. Estes barcos de madeira, que carregam tanta história, vão acabar por ser desprezados”, diz, preocupado. “Se calhar, só vou trabalhar mais dois anos. Vai ser mais um que fecha a porta e ficaremos sem estaleiros navais em Portugal”.
Espera-se que não, a bem dos postos de trabalho e da tradição.