O Presidente da Unidade Local de Saúde de Santa Maria (ULSSM), Carlos das Neves Martins, concede uma entrevista ao UALMedia onde aborda temas desde a gestão hospitalar ao uso promissor da inteligência artificial no atendimento ao paciente.
Foi convidado pela segunda vez para a presidência da unidade local de saúde de Santa Maria. Falando sobre a sua principal função no hospital: como tem sido o desafio de gerir uma instituição de saúde deste relevo?
Tem sido um grande desafio. Tem a ver com a dimensão da missão. Somos a maior ULS do país, ou seja, em termos do seu volume de atividade, em termos de orçamento. Temos um orçamento de cerca de mil milhões de euros, que traduz em mais de 3 milhões por dia. Temos diariamente cerca de 15 a 20 mil doentes, 7800 profissionais e estamos neste momento, em termos de território, “comprometidos” até Mafra, porque pertence à nossa ULS e obviamente que isto se trata de uma grande responsabilidade territorial, sendo que 80% dos nossos doentes são de fora da nossa área, ou seja, não são nem da zona norte de Lisboa nem do município de Mafra. Os dias começam sempre muito cedo e acabam tarde, trabalhamos sete dias por semana e temos todos os dias momentos de felicidade quando fazemos alguns milagres dentro da instituição, salvamos vidas ou oferecemos uma melhor qualidade de vida a doentes a que isso, à partida, não fosse expectável acontecer…
Quais são os principais projetos e metas para o futuro de Santa Maria nos próximos anos?
Temos um variado conjunto de projetos, desde inovação tecnológica a ferramentas de gestão. Reforçarmos a inteligência artificial na área clínica, alguns projetos de ampliação e criação de novos serviços, tudo visando um objetivo, que é o global: sermos a cada dia que passa maiores e melhores, no sentido de termos mais capacidades de resposta e de oferecermos mais qualidade. Temos uma visão, uma estratégia, a inovação é a nossa prioridade, na gestão, na prática clínica.
“A saúde está menos em crise do que aquilo a que somos confrontados ao ler o jornal”
A saúde é uma área que tem estado constantemente nos jornais. Entende que há uma crise estrutural no sector da saúde ou há, como muitos apontam, problemas de gestão?
A saúde está menos em crise do que aquilo a que somos confrontados ao ler o jornal, ou ao ver televisão, ou ao ouvir rádio. É óbvio que para mim é uma derrota sempre que morre alguém, mas nestes milhares de doentes, é quase incontornável que não morra ninguém. Gostaríamos de salvar toda a gente e ninguém morrer dentro do hospital, mas enquanto morre uma pessoa no hospital, posso orgulhar-me de que nesse dia salvámos dezenas, centenas de vidas. Isso não invalida o facto de a saúde poder ser melhor gerida, haver mais acesso, mais modernidade, responder mais à satisfação das pessoas, se tivéssemos mais autonomia. Há ainda muita burocracia no SNS. Ainda se espera muito tempo. Aqui o tempo não é dinheiro. Aqui o tempo é salvarmos mais vidas e tratarmos mais doentes.
Portugal apresenta índices de envelhecimento elevados e, como consequência, teremos o decréscimo da população nos próximos anos. Como é que Santa Maria se está a preparar para os desafios do envelhecimento da população portuguesa, no sentido da supressão das necessidades da saúde de todos os portugueses?
Temos várias medidas, diria as tradicionais. Olhamos para o crescimento demográfico, olhamos para a média etária dos nossos doentes, olhamos para um conjunto de indicadores. Ficamos felizes por perceber que a população portuguesa está a envelhecer com qualidade e está muito mais idosa do que estava há 10 ou 20 anos. Porém, o sistema de saúde tem de se adaptar: temos cada vez mais doentes “na melhor idade”, porque são idosos, mas com patologias cruzadas, temos doentes com várias doenças. Isso exige muito mais por parte dos profissionais de saúde e dos fármacos. E a parte humana da questão… Por exemplo, o projeto “Urgência Amiga do Idoso”, os palhaços de hospital. Olhamos também para o envelhecimento com uma responsabilidade social, de forma humana.
“Obviamente que o Covid nos deixou lições. Temos um plano de resposta em situação de pandemia”
A pandemia trouxe vários transtornos, nomeadamente na gestão dentro dos hospitais. Existe algum plano proposto ou simulado que vise enfrentar futuramente uma nova crise de saúde pública como a COVID19, como forma de resposta?
Temos um plano de contingência que tem várias variáveis, desde respostas em situações sísmicas, em situações de incêndios e até de inundações. E essa é a parte estrutural. O plano de contingência em resposta estrutural, em resposta às pessoas. Depois, temos o plano de contingência em situação de saúde pública. Obviamente que o COVID nos deixou lições. Temos um plano de resposta em situação de pandemia, como foi no episódio dos casos de legionella. Temos essa capacidade de resposta, mas claro que o COVID foi completamente diferente do que tínhamos vivido até então e, espero que nunca mais passemos por uma situação dessas. Porém, temos a instituição treinada, sabendo o que deve fazer e, se for necessário, assinamos o plano de contingência na vertente pandémica e encontraremos as respostas.
Que dinâmicas prevê que aconteçam no nosso sistema de saúde público, e em particular com Santa Maria, com a construção do Hospital de Chelas?
O Hospital de Chelas, que é uma velha ambição do setor público da saúde, vai ser extremamente importante e impactante. Não vai ser substituído só um hospital, vão ser substituídos seis hospitais, com muitas dezenas de anos. Vai ser um hospital moderno com valências adequadas àquilo que é a procura atual e futura, um hospital que seguramente terá capacidade para atrair capital humano das várias profissões de saúde, um hospital que terá tecnologia e uma arquitetura, digamos, amiga do cidadão. Portanto, no nosso caso, temos de nos adaptar. Temos 70 anos, temos procurado modernizar e enfim, vamos olhar para o hospital de chelas como um irmão, mas continuaremos a ser um grande hospital universitário e dos mais diferenciados do país.
Apesar da crise no SNS, Portugal apresenta um dos melhores e mais avançados sistemas de saúde do mundo. O que gostaria de ver de diferente no sistema de saúde português nos próximos anos? De que forma se deve atuar para que tal aconteça?
Tocou numa questão extremamente importante. Porque, regra geral, nós somos os primeiros detratores do nosso SNS. Se olharmos para o serviço nacional de saúde do Reino Unido, vemos que está a passar por uma crise maior que a nossa. Nunca fechámos os portões do Hospital de Santa Maria, nem ninguém fechou os portões de acesso aos edifícios hospitalares. Quando olhamos lá para fora, existe a tendência de acharmos que são melhores do que nós. Não. Somos diferentes. Somos diferentes do Reino Unido e da Espanha. O facto de termos imigração na área da saúde, significa que os outros países reconhecem os nossos profissionais.
Quando nos comparamos com países da OCDE, temos de facto um bom SNS. Porém, há ainda muito a fazer. Há todo um conjunto de mudanças que acredito que irão acontecer. Pode haver crise no SNS, mas ainda é o melhor que temos e é dos melhores da Europa. Se conseguirmos agarrar nas oportunidades, o futuro será francamente positivo.
“Existem hospitais privados que têm uma resposta rápida, mas a esmagadora maioria já não é assim”
É sabido que os hospitais privados podem apresentar um atendimento mais rápido e personalizado em comparação aos públicos. De que maneira os hospitais públicos, nomeadamente Santa Maria, podem igualar as “concorrências” e suprimir as necessidades dos doentes cunhados como não prioritários?
Existem hospitais privados que têm uma resposta rápida, mas a esmagadora maioria já não é assim. Os momentos de espera têm muito a ver com os fluxos de pessoas. Não nos podemos é esquecer de uma coisa: quando chega a um hospital privado, a primeira coisa que lhe perguntam é como é que vai pagar. Quando chega a este hospital, a primeira coisa que lhe perguntam é o seu nome e o que é que sente… Temos mais procura, o privado também, mas é mais moderada. Por outro lado, o privado tem ferramentas de marcação de consultas que não temos… Mas se me perguntar em termos de hotelaria das instalações… As salas de espera, os circuitos de televisão, as fardas das recepcionistas. Aí, eu já não discuto muito. O Hospital de Todos os Santos [Chelas] vai parecer privado porque é novo. Nós não estamos todos os anos a fazer obras para dez anos. Diria que, à data de hoje, estamos próximos [do setor privado]. A nossa procura é incomparavelmente superior.
Vivemos num mundo onde a inovação tecnológica nos fez tomar a proporção do facilitismo, da simplificação do trabalho, antes mais complicado. Vê com bons olhos a inovação tecnológica e a inteligência artificial (IA), no sentido de apoio e atendimento ao paciente? Pensa em implementar novos sistemas em Santa Maria?
É verdade que temos muitos imigrantes. No entanto, começamos a ter o problema dos nossos médicos não entenderem as línguas maternas de outras pessoas, porque o inglês é básico, quando existe. Estamos em teste final para introduzir uma ferramenta de inteligência artificial em que, em vez de existir um computador a separar o doente do médico, o aparelho encontra-se colocado lateralmente: o doente fala na sua língua, o ecrã está dividido a meio, o médico está a ver em português o que o cidadão lhe está a dizer e o cidadão está a ver na sua língua o que o médico lhe responde. Dá-se uma conversa, em que ambos estão a ver na sua própria língua a tradução ao segundo. Isto é um benefício da IA, em que existe facilitismo direto tanto para o doente, quanto para o médico. A IA utilizada com pessoas para o serviço das pessoas.
Como quer ser lembrado quando abandonar o cargo de presidência?
Alguém que deu o melhor que sabia para a instituição, que apostou no futuro, nos profissionais, numa cultura diferente. Ser lembrado como proativo, dinâmico, ambicioso, leal, que deu à sua equipa aquilo que tínhamos à nossa disposição para dar à nossa instituição e ao SNS.