No mês em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, recuperamos uma entrevista com Paulo de Carvalho, cantor cuja música E Depois do Adeus foi a senha que deu início à Revolução. O cantor conta com mais de seis décadas de carreira e foi condecorado em 2023 por Marcelo Rebelo de Sousa. Um homem “normal”, que continua a cantar e a editar.
Em 2023 foi condecorado com a Comenda da Ordem da Liberdade, pelas mãos do Presidente da República. Como é ser o Paulo de Carvalho, com todo o mediatismo e responsabilidade que isso acarreta?
Não é nada de especial. Sempre encarei como uma profissão normal. Há aqueles momentos em que, efetivamente, as pessoas olham mais para nós do que olham para um carpinteiro, andamos mais nas bocas do mundo, mas é perfeitamente normal. Levar os filhos à escola, ter de ir ao supermercado… Estou longe de gostar de me chamar de artista, é uma coisa que os outros é que podem chamar. Nos tempos que correm o próprio público tem necessidade de projetar em nós aquilo que gostava de ver e não o contrário.
É então a mesma pessoa fora das luzes da ribalta?
Sim… não se pode dissociar uma coisa da outra. Como compositor, falo daquilo que vejo e sinto à minha volta, portanto não posso dissociar a pessoa que sou da profissão que tenho.
Em 2017, lançou o álbum Duetos, produzido pelo Agir. É um orgulho, enquanto pai e artista, ter partilhado este trabalho com o seu filho?
Foi uma proposta que ele me fez, produzir um disco com cantigas minhas antigas. Foi buscar gente da música, sobretudo o que fiz com os outros. As cantigas são conhecidas, algumas têm muitos anos, mas o que foi mais bonito foi o trabalho em conjunto. Essa foi a parte mais gira desse disco.
Comemorou seis décadas de carreira em 2022, ano em que foi lançado o livro 60 Anos de Cantigas…
Não é uma autobiografia. É uma biografia escrita por um autor [Alberto Franco] que me perguntou se podia fazer. Gostei, apesar de faltar muita coisa, mas também há outras que são importantes, para que as pessoas saibam quem eu sou. Quem estiver interessado, é claro.
As datas redondas podem levar a um balanço, sobretudo quando se está há tantos anos no ativo. O músico que escreveu o E Depois do Adeus já começa a projetar o final de carreira ou ainda não pensa nisso?
Só quando não tiver mais possibilidades de fazer aquilo que faço, da maneira que gosto. Estou atento e se há coisa que não vai acontecer é andar a arrastar-me. Se nós soubéssemos o nosso futuro, se calhar iríamos por outros caminhos. Mas não faço ideia, nem sequer penso nisso e se às vezes penso é porque não gosto muito do que me rodeia. Há muitas coisas à minha volta que fazem com que não me apeteça continuar a fazer música. O próprio público… este crescimento das redes sociais que são uma bodega. As redes sociais são uma coisa maravilhosa, desde que bem utilizadas, mas a maior parte das vezes leva-nos para a vida dos outros. O ser humano adora saber da vida dos outros.
Sente que a música portuguesa é desvalorizada?
Se gostássemos mais de nós, da música portuguesa e mesmo de outras formas de arte, o próprio país seria mais valorizado. Mas, de modo geral, os interesses estão todos errados e as pessoas habituaram-se a gostar do que não deviam gostar e a pôr de parte aquilo que tem mais importância. Mas isto é uma opinião muito pessoal. Se calhar, se isto fosse dito por qualquer outra pessoa pensariam ‘este fulano é parvo’, mas acho que não sou. Se fizéssemos mais como os espanhóis, por exemplo, que se valorizam, provavelmente a nossa vida coletiva seria muito mais fácil e mais bonita.
Tem algum projeto na gaveta?
Nesta altura, tenho um disco na gaveta completamente feito por mim [álbum 2020, lançado em fevereiro de 2024] e tenho mais duas ou três músicas para acabar, para companheiros de profissão, que é aquilo que eu gosto mais de fazer nesta altura. Se amanhã me apetecer deixar de cantar vou, com certeza, continuar a escrever para vários companheiros de profissão. Por enquanto, não me estou a ver de outra maneira, a menos que esteja completamente incapacitado de fazer o que quer que seja.
“A unanimidade é uma chatice”
Esta tem sido uma preocupação sua, as colaborações e dedicar-se aos talentos e músicos mais jovens.
Faço isso quase todos os dias, ou seja, esse é um dos meus caminhos. Este novo disco é mais um disco de duetos, o problema é as editoras aceitarem pôr isto na rua. Tem ali muita gente nova. E depois também depende do que são os novos talentos. Às vezes, há uns que são muito falados, mas não são tão talentosos quanto isso e outros que, não sendo falados, são verdadeiros talentos. Cheguei até aqui a trabalhar com eles, a trabalhar com pessoas que me dizem alguma coisa e de quem gosto.
50 anos depois do 25 de Abril, a liberdade estará, de alguma forma, ameaçada?
Penso que a liberdade se pode considerar como uma flor que é preciso regar todos os dias e nós não a temos tratado muito bem. Ultimamente, andamos mais preocupados com outras coisas. A liberdade está ameaçada. No meu entender, uma coisa é podermos ir para a rua gritar e dizer que isto está tudo mal, outra coisa é conseguirmos com as nossas ações fazer com que isto melhore. No fundo, quem manda em nós. Porque, de um modo geral, votamos naquelas pessoas para mandar em nós e devemos obrigá-los a terem mais cuidado connosco, até porque eles são nossos empregados e é bom que pensem nisso.
É inevitável lembrar a Revolução sem recordar a sua música. E o Paulo de Carvalho, como é que gostaria de ser lembrado daqui a 50 anos?
Não faço ideia [risos], mas deixo isso ao cuidado dos que cá ficarem. Sei que isso de gostarem de mim a 100%, não existe, mas também por outro lado, e como costumo dizer, a unanimidade é uma chatice. Há que ter também inimigos de estimação.