São cada vez mais os livros com conteúdo sexualmente explícito fora da sua zona de categoria e disfarçados com capas ‘inofensivas’. Uma situação que pode levar os pais e leitores ao engano, sem noção do verdadeiro conteúdo da obra. Fomos tentar perceber esta realidade.
“Nós não usamos o lápis azul para censurar os nossos clientes. Eu não sou ninguém para chegar ao pé de um leitor e dizer «olhe, não leve isso, porque não presta».”
As palavras são da funcionária de uma conceituada livraria na zona do Marquês de Pombal, em Lisboa, visivelmente incomodada com as nossas perguntas. A livreira defende que a sua função não é aconselhar mas, sobretudo, vender. “Tenho aqui desde livros religiosos a pornográficos e tenho de vender e não dar a minha opinião ao cliente.” A funcionária vai mais longe e afirma não ficar chocada que uma criança com 10 ou 11 anos possa ler um livro com conteúdo sexualmente explícito, ao invés de “estar a jogar videojogos cheios de violência”.
Esta atitude está, contudo, longe de ser consensual entre livreiros. Duas outras funcionárias (em duas livrarias distintas, no interior de um centro comercial) quando confrontadas com a obra Quebrar o Gelo, de Hannah Grace – “Boa tarde, queria comprar este livro para a minha irmã de 12 anos, mas não sei se a idade é a correta para ela?” – tiveram o cuidado de chamar a atenção. Se uma delas foi direta, não aconselhando a compra devido a conteúdo sexualmente explícito – “as crianças veem no Tiktok as recomendações e depois vêm aqui e digo logo que não” – a outra não foi tão definitiva, mas deixou um claro aviso: “não é dos piores, ainda assim é muito novinha para este género. Temos outros livros muito melhores para ela”.
O papel das editoras
Dentro do catálogo das editoras são muitos os título que se enquadram nestas características. Da Bertrand Editora, podemos encontrar os livros Quebrar o Gelo e Fogo Selvagem de Hannah Grace, ambos na primeira edição e lançados em 2023; da Editorial Presença, destaque para a coleção After, de Anna Todd, cujo primeiro livro foi lançado em março de 2019 e encontra-se na 23º edição; na Marcador, sobressai a coleção de fantasia Corte de Espinhos e Rosas, de Sara J. Mass, tendo o primeiro livro sido lançado em outubro de 2022, já na sexta edição. Na editora Desrotina, destaque para os livros de Ali Hazelwood, lançados no fim de 2022. Por fim, da Clube do Autor, as sagas Twisted e Rei da Ira, da escritora Ana Huang, lançados em 2022.
Nos títulos apresentados, só a Clube do Autor optou por colocar o aviso na contracapa. Outros casos há em que os avisos são tapados pela etiqueta de preço das livrarias.
Em outubro de 2023, a Topseller [chancela da Penguin Random House] reeditou os livros da escritora Penelope Ward. Se até setembro do mesmo ano estes tinham um homem em tronco nu na capa — um índice indicativo de livros eróticos — a edição mais recente deixou a figura masculina de lado, sendo substituída por desenhos de flores e tons pastel. “Acho que não deviam ter alterado algumas capas. Associava os homens nus nas capas dos livros eróticos e continuo a associar, agora capas bonitinhas não concordo”, confessa uma autora portuguesa, que preferiu ficar anónima.
Mariana Nunes — autora da página de Instagram @chroniclesofmariana, com cerca de 60 mil seguidores — não se coíbe de afirmar que as editoras tiram os avisos de propósito. “Fazem isso porque o mercado literário em Portugal é muito pequeno e têm de vender aquilo que compraram os direitos.”
A influência da internet
Na era da internet, os influencers podem ter um papel importante a desempenhar neste capítulo. Maria João, da conta de Instagram @mjreads (com cerca de 10 mil seguidores), garante que tenta sempre alertar para a faixa etária. “Nos comentários, porque às vezes não faço na publicação em si. Quando as pessoas me perguntam, dou a minha opinião, mas tento sempre ter esse aviso nos meus vídeos ou publicações, especialmente aqueles livros em que a capa não corresponde ao conteúdo.”
A jovem instagramer vai contra aquilo que parece ser prática comum nas redes sociais, se bem que, dos cinco influencers questionados, só um tenha respondido que não coloca aviso, a página @leituras_mágicas.“É algo que nunca fiz nem faço de momento. Porém, com esta conversa apercebi-me um pouco mais do quão importante é fazê-lo porque não gostaria de estar a «enganar» ninguém.”
Mariana Nunes (@chroniclesofmariana) há muito que tem esse cuidado, ela que foi escolhida por diversas escolas para dar palestras sobre a importância da leitura. Nessas conversas, a jovem afirma que deixa sempre recomendações para todos os gostos, mas faz questão de realçar a faixa etária indicativa. “Há uma parte da sessão em que digo «vá, agora os professores vão tapar os ouvidos porque estas recomendações têm conteúdo explicito». Porque sei que eles têm 16/18 anos, mas toda gente sabe que eles leem esse conteúdo.”
Para a booksgrammer, é importante falar destes livros e dizer que eles existem, ao invés de ignorá-los. “Eles [adolescentes] vão acabar por descobri-los na mesma. Eu acho que as pessoas devem saber ao que vão.” Segundo Filipe Bica, da página @somos_o_que_lemos, “o fruto proibido é sempre o mais apetecido”. Para o jovem, falar sobre livros eróticos continua a ser um tabu no país. “Quando surgiu As Cinquenta Sombras de Grey foi quando apareceram as capas mais cuidadas para este tipo de livros.”
Os leitores
O UALMedia juntou um grupo de jovens leitoras na faixa etária entre os 16 a 20 anos. Quando questionadas se já tinham tirado partido de uma capa aparentemente inofensiva de forma a conseguir permissão para ler o título em causa, a maioria responde que não, mas admite conhecer pessoas que já o fizeram. “Nunca fui pessoa de ler este tipo [de livros], mas já vi vários amigos leitores a dizer que podem pedir aos pais para comprar e ninguém sabe, de facto, do que se trata porque não procuram informar-se”, relata Ângela Costa, de 20 anos.
Sofia, de 18 anos, realça a importância da comunicação entre pais e filhos. “Tenho uma boa relação com os meus pais e a minha mãe já leu os livros que eu li, por isso tem noção do seu conteúdo, mas existem jovens que não têm uma relação tão aberta e seria estranho lerem um livro com um homem nu na capa. Percebo que as pessoas mais novas se aproveitam destas capas para não terem de se explicar aos pais.” A jovem reforça a dificuldade para encontrar um livro que não tenha esse conteúdo. “Acho que, hoje em dia, é cada vez mais complicado encontrar um romance que não tenha esse conteúdo e cada vez mais pessoas leem à procura desse conteúdo.”
Os pais
À semelhança dos leitores, juntámos duas mães para abordar esta temática. Maria João Pinto é mãe de um rapaz de 12 anos e uma leitora ativa. Isabel Teixeira, com uma filha de 19 anos, não lê com frequência. Quando confrontadas com a obra Rei da Ira, de Ana Huang, as respostas foram distintas. Maria João diz tratar-se de um livro para adultos, “talvez por dizer prazer, associo que talvez seja algo mais picante”. Já Isabel aponta para um possível livro histórico. “Como diz Rei, pode ser até uma questão mais relacionada com História.” Maria João reforça que, sendo leitora, conhece as capas e os títulos, mas numa era em que os adolescentes “passam a vida ao telemóvel, os pais não vão pensar duas vezes em comprar um destes livros se os filhos pedirem”.
Isabel admite alguma falta de atenção em relação a este tema e admite que a filha lhe confessou ter lido o livro After apenas anos depois. “Só percebi o conteúdo quando vi os filmes com ela. Pensei «ela leu isto com 12 anos e isto não demonstra o que é o amor nem o que significa o sexo entre um casal».”
Até à data da publicação, nenhuma das editoras respondeu ao contato do UALMedia.