Raúl Folques, 82 anos, integrou a corporação de militares portugueses que combateram na Guerra do Ultramar. Em entrevista ao UALMedia, aborda o seu percurso militar e partilha as suas memórias mais profundas sobre a guerra.
Estudou no Colégio Militar e, em 1957, ingressou na Academia Militar para a conclusão de estudos superiores. Este percurso foi-lhe imposto?
Não, nada me foi imposto. O meu pai perguntou-me se queria ir para o Colégio Militar e disse-lhe que sim, mas já tinha 12 anos.
A família tem antecedentes militares?
Não. Os meus avós estavam ligados à pesca e o meu pai era médico, portanto, não fui para o Colégio Militar por ter antecedentes na família.
Fui para o colégio e depois resolvi ir para a Escola do Exército, na altura era assim que se chamava. Entrei na Escola do Exército e, no fim do curso, deram-se os massacres em Angola, de 15 de março. Por isso, o curso foi abreviado e fui enviado para lá. Chegámos a Angola no dia 19 de abril de 1961, pouco depois dos massacres. Entretanto, ofereci-me para os comandos. Fiz o curso de comandos e, depois do curso, regressei a Portugal. Ao fim de um ano, voltei a ser mobilizado para Angola para comandar a 1ª companhia de comandos. Depois, fui para o batalhão de comandos da Guiné em que fui 2º comandante durante um ano e comandante oficial no ano seguinte.
Os cenários de formação militar procuram espelhar o contexto de guerra, contudo, uma coisa é sabermos que se trata meramente de um treino e outra que teremos de combater na realidade. Como é que se lida com a informação de que a guerra nos espera?
Era muito miúdo, tinha 21 anos, mas não me lembro de ter ficado assustado.
Como lidaram os seus pais com a notícia de que ia para a guerra?
A minha mãe, principalmente, deve ter ficado preocupada, o meu pai talvez menos. Acredito que a minha mãe tenha tido sempre grande preocupação por ter o filho na guerra. Estive dois anos na 1ª comissão, quase três anos na 2ª comissão, mais três anos na 3ª comissão, depois mais dois anos na Guiné, portanto foram nove anos em combate. Fui ferido, mas foi uma coisa muito ligeira. Depois, tive um ferimento mais complicado na Guiné. Na primeira vez não tenho ideia de ter sentido receio, nas outras era a minha obrigação.
“Comecei a sentir que aquilo que estávamos a fazer era por bem”
Vão dispostos para matar e morrer pela pátria?
Era assim, tal e qual. Sentíamos que estávamos ali pela pátria. Depois de conhecermos a vida lá, aquelas barbaridades todas que foram feitas em 1961… [pára de falar por alguns segundos]
A que barbaridades se refere?
Quando chegámos, encontrámos muita coisa resultante dos massacres. Por exemplo, íamos fazer pão e, quando nos dirigiamos ao forno para a preparação, encontrávamos ossos de miúdos. Eles cozinharam crianças e comeram-nas. Isso são coisas que marcam, provocam uma sensação de desconforto e de revolta. Havia por lá também uma serração e nela serraram pessoas. Fizeram muitas barbaridades. Comecei a sentir que aquilo que estávamos a fazer era por bem, estávamos a ajudar as pessoas que lá estavam, não só os brancos, mas também os negros. Procurávamos garantir as condições sanitárias possíveis. Cada companhia tinha um médico, um enfermeiro e quatro ajudantes de enfermeiro, e as pessoas faziam fila para serem ajudadas com doenças várias. O médico e todos eles eram impecáveis. Sabíamos que éramos úteis, isto tanto em Angola como na Guiné. Em Angola, havia cerca de 40 quilómetros alcatroados e, em 1970, quando acabei a minha 3ª comissão, os quilómetros alcatroados estavam entre os mil e quatro mil. Depois da independência, calculo que não tenham feito nem um quilómetro. Não sei se fizeram ou não, mas deixámos uma estrutura que podia ajudar todas aquelas povoações.
A corporação de militares que foi para a guerra não regressou na sua totalidade a Portugal, vidas foram perdidas e muitos soldados voltaram lesionados. Os comandos são preparados também na perspetiva psicológica para eventualidades como estas, mas é realmente possível manter o sangue-frio quando se perdem camaradas?
Ninguém está preparado para ter um morto. Aliás, tivemos vários e alguns em condições dramáticas. Por lá, o sol põe-se muito cedo, por volta das cinco da tarde já é noite. Às quatro e meia, se tivéssemos um ferido, o helicóptero não tinha tempo de o ir buscar, porque de noite não pode voar. Tínhamos de ficar com o ferido a noite toda. Tive feridos que morreram a meio da noite. Os enfermeiros estavam preparados para ajudar, tinham medicamentos capazes de amenizar as dores, mas não tinham condições para fazer transfusões e, às vezes, eram precisas. Normalmente, os piores ferimentos eram na barriga. Quando alguém era ferido no estômago ou nos intestinos precisava de uma intervenção cirúrgica urgente.
Para quem ficava era difícil lidar com isso?
Nem sei bem. Quando um camarada morre, os outros sentem compaixão, a solidariedade é generalizada. Os mais próximos do camarada que está ferido ou que morre, esses se calhar sentem mais. Sabemos que morrer é um risco para quem está em combate, portanto, os mais afastados podem não sentir tanto, apesar de lamentarem.
“A alguns convinha dizer que estava perdida, até para justificarem a sua cobardia”
A Guerra do Ultramar foi dura, principalmente nos últimos anos devido à instabilidade política vivida em Portugal. O coronel cumpriu quatro comissões nesta guerra, três em Angola e uma na Guiné, como já referiu. Acreditou sempre na vitória ou apercebeu-se que a situação era mais complexa do que o expectável?
Fazia parte de uma tropa que nunca duvidou que ganharia, inclusive, o Batalhão de Comandos da Guiné, em abril de 1974, fez uma operação em que capturámos uma bateria de morteiros 120 ao PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e fizemos muitas baixas. Tivemos também alguns mortos, mas fizemos muito mais mortes ao inimigo do que eles a nós. Quando diziam que a guerra estava perdida era mentira, mas a alguns convinha dizer que estava perdida, até para justificarem a sua cobardia. Em Angola, estava ganha. Na Guiné, estava longe de estar perdida.
Apesar de as perceber como ganhas, aquilo que se verificou foi a perda das colónias portuguesas e vocês atuaram no sentido de evitá-la, certo?
Havia uma ideia remanescente, que era num futuro próximo dar a independência à Guiné com quadros que nos eram afetos. Era uma ideia acarinhada e estava a trabalhar-se nesse sentido. Mas decidiram precipitar tudo e nós defendemo-nos. Acabaram por se tornar independentes e, hoje, vê-se a miséria que aquilo é. Nunca mais fui à Guiné e não quero ir, nem sei como é que aquilo está.
Porque é que não quer lá voltar?
Há sítios a que uma pessoa não pode voltar, porque a carga negativa é muito maior do que a possibilidade de matar saudades. As recordações que tenho da Guiné são uma quantidade de camaradas meus que eles fuzilaram, sem julgamento, sem qualquer apreciação, sem qualquer justiça e sem lhes darem qualquer hipótese de defesa. Não é fácil lidar com essas coisas.
Acredito que da guerra ninguém regressa o mesmo. O que mudou em si após essa vivência?
Acho que não mudou nada, mas fui amadurecendo. Fui para a guerra com 21 anos e acabei o meu percurso militar com 34. Ao tornar-me mais maduro, contava com a experiência de quem esteve na guerra. Momentos felizes, momentos de camaradagem, momentos de solidariedade, momentos em que uma pessoa sente que está rodeado de irmãos. Só aqueles que me conheceram nas duas fases o conseguirão dizer, não sei se mudei assim tanto.
Ainda os considera família?
É uma família. Tenho uma ligação muito forte com eles.
Pela sua coragem e bravura foi condecorado com três cruzes de guerra e outras distinções que sublinham o seu mérito e excelência como militar. O que representa para si este reconhecimento?
Uma pessoa gosta que reconheçam o seu esforço, mas não é somente um reconhecimento de coleção pessoal, é também coletivo. Tenho duas condecorações coletivas que aprecio imenso, a minha companhia 19ª foi condecorada com uma Cruz de Guerra Coletiva e o Batalhão de Comandos da Guiné foi também condecorado com uma Cruz de Guerra Coletiva. Tenho especial orgulho nelas, porque são condecorações que representam um esforço coletivo e aquecem o coração.
“As guerras têm por base ambições de pessoas desequilibradas que fazem dos outros marionetas”
O mundo não vive em paz absoluta há mais de um século, a procura de armamento cada vez mais cruel para derrotar o outro faz da guerra uma ameaça preocupante. A guerra é um mal necessário para se alcançar a paz?
Não. A guerra é a coisa mais horrível e mais desnecessária que há. Não há nada que justifique o massacre de crianças, mulheres e homens, quer sejam brancos quer sejam pretos, porque existem sempre outras maneiras de resolver. As guerras têm por base ambições de pessoas desequilibradas que fazem dos outros marionetas. As nossas guerras em África foram provocadas pela União Soviética, os Estados Unidos e a China. Se não tivessem pretensões de poder mandar no nosso território, a guerra nunca tinha existido. Por trás de uma guerra há sempre interesses e dinheiro, por isso manipulam e empurram. A Guerra do Ultramar não foi como aquelas do século XIX em que íamos impor a nossa posição e éramos o agressor. Nas guerras que vivi, nós fomos o agredido.
Combater como agressor faria sentido para si?
Prefiro combater como agredido, combati sempre assim. Mas tenho a perceção que, no meu tempo de combate, se fossemos os agressores, não teria aceitado.