Um em cada dez bebés nasce prematuro. Nos primeiros dias, semanas e até meses do recém-nascido, a companhia é dividida entre pais e enfermeiros. Na unidade de neonatologia não há dias iguais, uns são vitórias e outros derrotas. Aos enfermeiros é-lhes pedido que amenizem a montanha-russa de emoções que por lá descarrila. Mas por trás de um enfermeiro está um ser humano.
A enfermagem em neonatologia é marcada pela prestação de cuidados especializados. Esta prática acarreta pressões desde a elevada carga horária, que se agravou em tempos de COVID, à falta de pessoal e ao carácter remuneratório.
Inês Quental, enfermeira no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, passou pelos cuidados a adultos e, agora, encontra-se na unidade de neonatologia. Conta que grande parte dos enfermeiros junta a estas pressões o facto de trabalharem turnos extra no hospital, ou até mesmo noutro emprego. Este excesso de carga laboral leva a que os enfermeiros sintam que estão mais sujeitos a um menor desempenho no seu trabalho e que até estão expostos a uma maior probabilidade de acidentes de trabalho relacionados com a exaustão, de acordo com o estudo da International Journal of Developmental and Educational Psychology.
Todas estas pressões evidenciam o estado psicológico dos enfermeiros. A própria prática exige, segundo o Código Deontológico dos enfermeiros, que as funções vão além do cuidado. Devem incluir o respeito, a partilha, a constante análise e a garantia de cuidados de qualidade, atendendo às necessidades de cada indivíduo, à cultura, crenças e vontades. Cabe-lhes humanizar os cuidados. A unidade de neonatologia pode ser um intensificador de exigências.
A gestão pessoal na Unidade de Neonatologia
“Há enfermeiros que dizem logo que não querem ir para esta área, nem sequer querem ir ver a zona de neonatologia, porque sabem que a maioria dos bebés tem cerca de 500g”, conta Inês Quental. A fragilidade e instabilidade é um motivo de afastamento para certos profissionais de saúde.
“Queremos sempre que os recém-nascidos tenham uma evolução favorável. Quando não é possível, causa-nos pressão, faz com que sintamos que o nosso trabalho não foi satisfatório”, enfermeira Sofia Aguilar.
A gestão de sentimentos, como a perda, o não poder fazer mais e o stress podem ser sentimentos difíceis de gerir. “É natural que desenvolvam estratégias de coping de forma a lidar da melhor maneira possível com o stress advindo da prestação de cuidados em enfermagem neonatal”, refere o estudo Parceria de Cuidados entre Enfermeiras e Pais de Recém-nascidos Prematuros Internados, do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.
Os contactos que estes enfermeiros têm com a morte ou com o processo de falecimento podem causar consequências graves na sua saúde mental. Características de isolamento social ou profissional ocorrem com bastante frequência. É comum criar distanciamento dos bebés, chegando a identificá-los pelos números das camas ou quartos, sendo também esta uma forma de coping que o estudo O Luto Profissional dos Enfermeiros expõe.
Sofia Aguilar é enfermeira recém-licenciada, fez o estágio na Unidade de Neonatologia, onde ainda hoje exerce a sua função. Nos meses que lá passou, explica: “queremos sempre que os recém-nascidos tenham uma evolução favorável. Quando não é possível, causa-nos pressão, faz com que sintamos que o nosso trabalho não foi satisfatório”.
Os internamentos podem durar dias, semanas ou meses, pelo que é inevitável que se crie laços e apego emocional, tanto com os bebés como os familiares. No entanto, há uma tendência em resistir à criação de ligações, como mecanismo de defesa, em relação a possíveis perdas.
Os números de mortalidade revelam que os contactos que estes enfermeiros têm com a morte ou com o processo de falecimento pode causar consequências graves na saúde mental destes profissionais.
Atrás de cada bebé está uma família
Um enfermeiro de neonatologia não tem o dever de cuidar apenas do bebé, mas também da família. Acarretam a responsabilidade de serem o primeiro contacto que aquela família, que se encontra nervosa e ansiosa, vai ter. Os profissionais têm nas suas mãos a dificuldade de consciencialização da fragilidade da situação, mas, ao mesmo tempo, de criar um ambiente de acolhimento para aquelas famílias.
Estas têm apoio psicológico e são acompanhadas regularmente. No entanto, o setor da saúde permanece marcado pelas restrições da pandemia, nomeadamente no que toca às visitas. Antes, havia horários específicos para que outros familiares pudessem conhecer o bebé e até dar apoio às famílias que ali passam o dia. Agora, apenas um dos pais pode estar presente com o filho. O trabalho de enfermagem é alargado à necessidade de fazer os pais sentirem-se apoiados, para que não se sintam sozinhos.
“Elas puxavam uma cadeira, sempre que podiam, sentavam-se à minha frente e conversavam comigo, faziam companhia. Abraçavam-me” Rita Soeiro, mãe de bebés que nasceram prematuros no Hospital Amadora Sintra.
O medo do toque
Há uma necessidade de atenção redobrada no que toca ao incentivo da participação dos pais nos cuidados dos bebés prematuros. O bebé saudável que estes pais imaginavam é agora um bebé frágil. “Muitos pais não querem tocar no bebé, não querem pegar ao colo, por serem tão frágeis. Temos de desmitificar”, refere Inês Quental. Para que esta desmistificação possa ocorrer, é necessária a construção de uma relação de parceria entre pais e enfermeiros, acompanhada por um ambiente calmo que acompanhe o ritmo dos pais. Muitas vezes é necessário mostrar que não o vão magoar.
Às 26 semanas de gestação, nasceram os dois bebés de Rita Soeiro. O Hospital Amadora Sintra era o único com duas incubadoras disponíveis e, por isso, foi o escolhido para o nascimento e internamento dos bebés e da mãe. A comunicação foi a chave para ultrapassar as dificuldades, nas palavras de Rita Soeiro: “elas puxavam uma cadeira, sempre que podiam, sentavam-se à minha frente e conversavam comigo, faziam companhia. Abraçavam-me”.
As máscaras funcionaram em muitos casos como barreiras de comunicação, tornando as interações mais distantes e diminuindo a empatia e a sensibilidade. Dificultaram a criação de relações e de confiança. Mas não foram o único entrave a uma boa comunicação. Por vezes, os pais entram em tal estado de cansaço, stress e choque que se torna quase impossível comunicar. Rita Soeiro encontrou-se nessa situação. “Cheguei a um ponto que, devido ao meu cansaço mental, quando recebia uma informação nova, queria abrir um nível na minha cabeça para perceber quão grave era e não conseguia.”
É essencial que durante este período toda a comunicação seja feita da forma mais simples, com vocabulário adequado, de modo a que as famílias estejam o mais informadas possível de todos os cuidados a ter, todos os passos que vão ser tomados, todas as etapas.
A balança entre a satisfação e a exaustão
A polivalência que os enfermeiros assumem nesta unidade de cuidados de saúde pode ser esgotante. É necessária uma balança constante entre o estado físico e psicológico em relação ao que os pais e os bebés precisam. Assim como muitas outras práticas, a enfermagem não é linear, depende muito da disposição e motivação de cada enfermeiro.
Apesar das notáveis dificuldades, as enfermeiras de neonatologia mostram-se gratificadas por poderem ver os bebés crescer e evoluir. Nos casos em que isso não é possível, sentem-se também honradas, pela oportunidade de, para além dos pais e restante equipa médica, serem as únicas pessoas a conhecerem aquele bebé que partiu.
No entanto, o estudo A Satisfação, Realização e Exaustão dos Enfermeiros em Portugal apresenta o lado que pode pesar muito na vida destes profissionais de saúde: “a velocidade vertiginosa do mundo do trabalho produz muitas vezes a incapacidade de separar o trabalho e a família, ocorrendo situações de exaustão sobretudo, nas profissões de ajuda, como a enfermagem”.
Os cuidados de apoio a estes profissionais existem, estão disponíveis para recurso, no entanto não são oferecidos. Há pouco incentivo na procura pela ajuda especializada e apoio a quem está nas linhas da frente dos cuidados. A carga horária, falta de pessoal, pressão psicológica, perda e polivalência acabam por se juntar à falta de apoio.
A prematuridade em Portugal
No ano de 2020, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), o total de nados-vivos prematuros em Portugal foi 5765 , correspondente a 6,8% dos nados-vivos totais. Segundo a Sociedade Portuguesa da Pediatria, em cada 1000 prematuros, 1,8 falece.
Parceria enfermeiro-pais
O cuidado em parceria consiste em dar instrumentos aos pais para se sentirem empoderados e confiantes nas suas capacidades. Os profissionais de saúde têm de oferecer as informações e técnicas necessárias para o cuidado do bebé, não só durante o internamento nesta unidade, como após, tal como é indicado no estudo de Parceria de Cuidados entre Enfermeiras e Pais de Recém-nascidos Prematuros Internados.
Aos enfermeiros acresce ainda a função de elucidar. Cabe-lhes educar estes pais para o bom cuidado dos seus filhos. Desde a mudança da fralda, a como pegar ou como o deixar confortável são ensinamentos essenciais que aliviam um pouco da dificuldade que os pais estão a passar.
Saúde mental na pandemia
Em tempos de pandemia, os sinais de problemas de saúde mental junto dos profissionais de saúde foram notórios nos números divulgados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), no estudo Saúde Mental em Tempos de Pandemia. Os valores rondam os 30,8% na ansiedade, no burnout 32,1% e 28,4% de depressão. Esta amostra é representativa da população em análise.
As competências e exigências dos enfermeiros de neonatologia tendem a crescer à medida que se dá uma maior personalização dos cuidados e maior rigor, mas em contrapartida as condições de trabalho e apoios deixam de lado uma das maiores percentagens de prestadores de cuidados: os enfermeiros. Estes cuidam dos pacientes e tendem a cuidar e abraçar-se a si mesmos.