Jerónimo de Sousa, 74 anos, membro do Partido Comunista Português desde 1974 e secretário-geral desde 2004, assume em entrevista ao UALMedia: “Fui sempre o que sou, sem precisar de retoques de cosmética.” Numa conversa descontraída, fala de atos heroicos que vão além da condição humana, de resistência, da audácia de lutar contra o fascismo e da criminalização da democracia, de sobrevivência e de liberdade de expressão. Ainda vale a pena lutar? Sim, se “és comunista!”
Emocionado por reconhecer o poema premiado e da sua autoria, Jerónimo de Sousa cita:
“Contra esta prepotência surge a voz da resistência no combate contra o mal,
Sabia essa malta fixe das torturas de Peniche e da morte em Tarrafal,
Outros homens revoltados, filhos do povo, soldados, ergueram sua vontade,
Foram muitos, mais de mil, que numa manhã de abril lutaram pela liberdade,
A noite negra acabou, conheço até quem chorou por se ver em liberdade,
Tu mulher e tu criança, que és o futuro e a esperança,
Luta pela igualdade.”
Em tempo de censura, as palavras ganham outro sentido?
Sim, em tempo de censura nós – e eu que sou um produto do meio em que fui criado – conhecíamos o que era a criminalização da democracia, da luta pelo direito a ter direitos! E isso era proibido, censurado e reprimido. Aos 14 anos, como milhares de jovens e crianças, inevitavelmente quando o professor nos perguntava o que é que queríamos ser quando fôssemos grandes, com um grande realismo dizíamos: serralheiro, mecânico, vidreiro, metalúrgico, enfim… Tínhamos consciência de que não valia a pena sonhar, que podíamos ser doutores ou engenheiros, porque seríamos operários. Esta era a profunda convicção e era na fábrica que formávamos a nossa consciência.
Era dura essa realidade?
Era dura, sim… porque os direitos eram reprimidos, os mais simples. Estava na fábrica e, um dia, os meus camaradas da direção do PCP chamaram-me e disseram: “Vais ser deputado constituinte!” Deputado? Como é que isso se faz? “Faz-se, fazendo!” E é este acontecimento que me marca profundamente. Levar à política aquilo por que, parecendo estranho e audacioso, lutava no local de trabalho.
“Exigia quase mãos de artista”
A primeira edição do jornal Avante saiu a 15 de fevereiro de 1931. Foi escolhido como arma para fazer a revolução, trazia notícias que a censura não deixava passar nos outros jornais. Em 1938, a polícia fecha a única tipografia que imprimia o Avante e o comunismo é considerado extinto. Mas, em 1941, o PCP reorganiza-se, o que permitiu abrir várias tipografias pelo país, e o jornal é publicado de forma clandestina durante 33 anos, sem interrupções, até 1974. Em tempo de ditadura, como se contornava a PIDE?
Procurávamos tomar medidas de segurança, particularmente na feitura do jornal. O prelo não era por não haver condições de ter maquinaria, mas por razões do silêncio que teria que haver para que o jornal pudesse sair em segurança. Ser apanhado com o Avante significava prisão! Um trabalho em que se exigia quase mãos de artista para garantir que o Avante não faltaria. Não é por acaso que hoje é, talvez no Mundo, o jornal partidário com mais anos de existência, distribuído aos milhares. Podemos dizer que foi muito difícil, tendo em conta a repressão existente, mas o Avante nunca deixou de ser publicado.
As regras para quem trabalhava de forma clandestina eram tão rigorosas ao ponto de ter que se fazer as malas à mínima suspeita. Qual o critério de escolha para ser um dos divulgadores do jornal Avante, na época considerado ilegal?
Fundamentalmente era um conjunto de quadros dirigentes e militantes que tinham a tarefa de, para além da distribuição, transformá-lo numa arma, num instrumento de luta. Aliás, a juventude não tem ideia do que era lutar naquelas condições, porque eram implacáveis! Não era um regime autoritário, era um regime fascista! No campo de concentração do Tarrafal, o diretor da prisão dizia algo como: “Vocês não vêm aqui para viver, vocês vêm aqui para morrer!”
“Vão-me matar!”
Para a PIDE era tão importante paralisar o Avante que, no dia 24 de janeiro de 1950, segundo a RTP Ensina, o funcionário José Moreira, responsável pelas tipografias, foi interrogado, torturado e espancado até à morte. Tendo conhecimento de todos os riscos que trazia esta reação ao Governo, considera que a luta pela liberdade de expressão prevalecia ao ponto de pôr em risco a própria vida?
Sim, pensar que quem estava a ser espancado e torturado pensava muitas vezes “vão-me matar”, mas este era o momento de resistir, de não falar ou ceder. Foram muitos aqueles que disseram: “Não, não falo!” A consequência foi o assassinato. Rodeados de torcionários que diziam: “Diz ao menos o teu nome!” E resistir! Foram acontecimentos heroicos, em que se foi quase para além da condição humana, numa demonstração de resistência. Na altura, se fizeste greve, usaste um direito, fizeste um protesto, mas se foste apanhado com um Avante, és comunista!
Passo a citar um excerto de Máximo Gorki, em A Mãe: “Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir. Temos vergonha porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E muitas vezes por causa desse embaraço, revoltamo-nos com os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos, de todas as maneiras e feitios. Queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.” Sente-se responsável por representar a gente do povo que sente tudo, mas não tem voz?
Obviamente, a minha opção de integrar o PCP não é dissociável da minha condição, que no fundo está muito refletida no livro de Gorki. Quando entrei na Assembleia Constituinte, um velho contínuo veio com uns documentos para eu preencher: “olhe, se faz favor de preencher isto, sr. doutor”. Em 1974 era quase uma ofensa e eu disse “não sou doutor!” e ele “desculpe, sr. engenheiro”. Aquele homem só conhecia duas categorias de deputados e nunca entendeu como é que um operário chegava à Assembleia Constituinte e intervinha. Não tive que me aperfeiçoar nesta ou naquela matéria, obviamente não seria capaz de fazer uma lei, mas era capaz de dar conteúdo a essa lei, discutir o direito à greve, que ficou escrito na Constituição da República, foi esse mundo que procurei transmitir. Faz confusão a muita gente como é que o secretário-geral do PCP continua a levar para casa o dinheiro que ganharia na fábrica e isto dá-nos força! Fui sempre o que sou, sem precisar de retoques de cosmética…
Numa entrevista ao jornal Expresso, a 6 de setembro de 2010, referiu que a personalidade que mais admira é Álvaro Cunhal, pelo seu exemplo, luta, opções e obra teórica. Considera que os valores que fundaram o PCP são os mesmos hoje em dia?
Sim, são! Obviamente muita coisa mudou nestas últimas décadas, mas há coisas que não mudam. Quero vincar e sublinhar com muita força que, com todas as mudanças que têm existido, continua a haver um problema de fundo com que a humanidade se confronta, que é a exploração do homem por outro homem. Por isso, considero que este partido continua a ser insubstituível na sociedade portuguesa.