Apaixonada pela vida e pelo planeta, Ana Milhazes é fundadora do movimento ‘Lixo Zero Portugal’, um grupo no Facebook onde várias pessoas partilham o estilo de vida sem desperdício. É, também, autora de um blogue e de um livro, Vida Lixo Zero. Atualmente, faz palestras e workshops sobre sustentabilidade e é instrutora de yoga.
A Ana começou a viver sem lixo em 2016. Como iniciou esta caminhada por uma vida com menos desperdício?
Foi algo que foi crescendo desde muito pequena e tem muito a ver com o contacto que fui tendo com a natureza e os animais. No fundo, foi algo que acabou por ficar um bocadinho adormecido e acho que acontece com a maioria das pessoas. Há paixões que temos quando somos miúdos e, com a vida em sociedade em que ora temos de estudar, depois arranjar um emprego, a chamada checklist… Em 2011 começou, ou recomeçou, esta paixão. Foi uma altura em que descobri o minimalismo e comecei a simplificar muito, e a reduzir a quantidade de coisas que tinha. Em 2016 aconteceu um episódio: estou a olhar para os vários caixotes de lixo e reparo como uma pessoa, como eu, tão preocupada com o ambiente, ainda faz ‘esta’ quantidade de lixo. Na altura, fui pesquisar na Internet e descobri o blogue da Bea Johnson, o Zero Waste Home. Ela também tinha um livro, comprei, comecei a ler e identifiquei-me bastante, percebi que muitas das coisas que ela fazia, eu já faço. Percebi que, de 2011 para 2016, já tinha reduzido muito lixo pelo facto de estar a consumir menos e fiquei descansada. Depois, foquei-me no que faltava, que era a parte do plástico e do lixo indiferenciado.
É fundadora do movimento ‘Lixo Zero Portugal’. Em que consiste o movimento?
Sim, percebi que em Portugal não se falava nesse assunto. Precisei de algo que unisse mais as pessoas e foi aí que chegou a ideia de fundar o grupo do Facebook Lixo Zero Portugal. Foi um dois em um. Estava à procura de pessoas que já vivessem esse estilo de vida para me ajudarem, porque estava a ser difícil. Por exemplo, encontrar lojas a granel. Na altura, vivia no Porto e produtos mais específicos só encontrava noutros países. Só a ideia de encomendar esses produtos já se tornava muito pouco sustentável…
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, estima-se que cada português produz, em média, 42 quilos de resíduos por mês e 505 quilos por ano. É mesmo possível não produzir lixo?
Zero lixo é impossível. Desperdício zero é uma meta que nunca vamos alcançar, mas, no meu caso, em vez dessa meta me desmotivar, motiva-me. No início, fui muito mais radical do que sou hoje. Havia produtos que simplesmente não comprava porque vinham embalados em plástico. Mas acho importante fazer esse tipo de desafios, experimentar um mês sem comprar nada que venha embalado, ir reintroduzindo outras coisas. Não podemos levar o “lixo zero” ao sentido literal da expressão. É um estilo de vida, não tenho de viver cem por cento zero waste. Tenho esta meta, pode estar longe, mas vou caminhando segundo a forma que posso, não deixando de ser sustentável.
Em 2016, era difícil fazer compras. Havia sítios que não tinham produtos a granel. Fui viver para o Alentejo e já foi diferente. Embora haja muito poucos produtos sustentáveis e a granel, viver no Alentejo traz vantagens. Não há trânsito, ando de bicicleta, não há tanto consumo porque não há tantas lojas como nas grandes cidades.
No seu blogue afirma que “viver com menos é viver com mais”. O que significa esta frase?
É focarmo-nos no que é essencial para nós e isto, obviamente, varia de pessoa para pessoa. Mas quando te focas no que verdadeiramente é importante, acabas por ter uma vida mais plena, com mais felicidade.
“Nem sei como há pessoas que nem o lixo separam”
Sente que reciclar não chega nos dias de hoje? O que é necessário fazer mais?
Digo muitas vezes essa frase, que reciclar não basta. Aliás, digo isso porque o vivi na pele. Sou vegetariana e, ao fazer a separação de lixo durante muito tempo, achei isso suficiente. Depois, quando descobri o blogue da Bea Johnson, percebi que havia muito mais coisas que podia fazer e pensei “isto é todo um mundo novo”. Nas minhas palestras, foco-me muito pouco na separação do lixo. Nem sei como há pessoas que nem o lixo separam, não falo para essas pessoas. Em pleno século XXI, já nem faz sentido. Devia ser obrigatório por lei e ponto final. Visitei centros de reciclagem e percebi como era o processo, é um sem fim de maquinaria. Falo sempre nos “5 R´s´” do desperdício zero que são: recusar, reduzir, reutilizar – e o objetivo é usar esses “3 R´s” ao máximo -, não conseguindo reciclar e, depois, o rot, que é compostar o lixo orgânico.
Diz que na sociedade em que vivemos recusar, reduzir e reutilizar são os essenciais. Porquê?
Sim, são. São também os mais difíceis, mas os mais necessários. Têm um impacto maior. Dou sempre o exemplo: quando recuso uma caneta, estou a dizer às empresas que a produzem que não é preciso continuarem a produzir mais canetas. Todos temos canetas em demasia em casa, então, não faz sentido continuarmos a aceitar, mesmo de graça. Isso é que é o desafio, sobretudo na sociedade portuguesa, porque gostamos muito das ofertas, dos brindes. É algo que é preciso ser ensinado nas escolas. Estamos muito focados na reciclagem.
Desde 2012 que a Ana tem o blogue ‘Ana, Go Slowly’. Com que intuito foi criado?
2011 foi uma altura em que já tinha conquistado tudo o que a vida nos diz para conquistarmos. Tinha emprego, amigos, gostava do que fazia, uma casa perto da praia, uma relação estável. Não me sentia feliz, olhava para o relógio ao final do dia e pensava: “caramba, vai-se repetir tudo outra vez amanhã”. E pensei: “bem, se viver é isto, não faz sentido”. Por isso, tinha que descobrir o que faltava. Na altura, achei que era falta de organização e fui pesquisar. Nunca fui de ter muita “tralha”, mas comparando com o que tenho hoje… tinha imensa. Depois, descobri num blogue americano que dizia: “não faz sentido comprarmos coisas para organizar outras coisas, o que faz sentido é livrarmo-nos de coisas que não utilizamos”. Nunca mais me esqueci desta frase. Agarrei em coisas, essencialmente roupa e sapatos, e vi, junto de instituições e de amigos, quem queria aquele tipo de coisas. Não queria deixar junto ao caixote de lixo. Foi muito libertador. Cheguei a coisas não físicas, libertar-me de compromissos. Comecei a dizer que não a pessoas, pensei em polir a minha vida e a limpá-la, deixando na minha vida aquilo que fazia sentido. Tive benefícios incríveis. Comecei com uma vida mais leve, simples e feliz e comecei a ter tempo livre.
O minimalismo ajudou imenso: libertou o velho e deu espaço ao novo. O minimalismo é o melhor, poupamos imenso tempo, dinheiro, compramos muito menos coisas, valorizamos aquilo que temos. Em 2012, surge o blogue porque sempre escrevi em diários. Em 2011, comecei a escrever mais porque estava a descrever as mudanças na minha casa e o que sentia. Em 2012 pensei: “Tenho de criar um blogue para falar sobre minimalismo porque ninguém fala em Portugal.”
E como surgiu o nome do blogue?
Surgiu de forma engraçada. Era muito acelerada e tinha que arranjar um nome que me ajudasse. Descobri uma frase de um monge – Smile, breathen, go slowly – e surgiu o Ana Go Slowly. O nome carateriza-me e continua a fazer muito sentido. Quando começas a viver mais devagar e a ter mais tempo para as coisas, tens tempo para refletir sobre as compras que fazes e o tipo de produtos. Quando comecei a escrever no blogue, pensei ser uma coisa para mim e, se mais alguém visse, tudo bem. Não estava à espera do retorno. Recebi muitas mensagens de pessoas que estavam a ler e que tinham começado a experimentar dicas que partilhei e estavam a sentir inúmeros benefícios. Pensei: “pronto, o blogue já tem o seu objetivo cumprido”. Queria passar as maravilhas que estava a viver. Descobri um mundo novo.
“Não dou lições de moral, simplesmente é o meu modo de viver”
Diz que 2019 foi um ano em que viajou de mochila às costas e com um kit zero waste. Como foi essa experiência?
Tive essa experiência de viajar pelo País inteiro a fazer palestras, apenas com o meu kit zero waste. Foi espetacular. Foi viajar com menos coisas, um saco e uma mochila pequena com tudo. Foi ver como as pessoas vivem em cada zona do país, como pensam, como comem. Quando vou a um sítio, não vou só fazer uma palestra, tento conhecer melhor as pessoas. Nas escolas dou uma volta, apanho lixo e mostro na palestra. As pessoas ficam incrédulas ao mostrar que o meu dever é colocar o lixo no ecoponto.
Vejo também que, em eventos sobre sustentabilidade e ambiente, no catering é tudo descartável e de plástico. Então, levava para esses eventos o meu copinho ou prato, usava e ouvia comentários do género: “a Ana já vem aqui dar-nos uma lição de moral”. Não dou lições de moral, simplesmente é o meu modo de vida. Notei que há um desfasamento entre o que fazes profissionalmente e a forma como vives. As pessoas que trabalham na área do ambiente depois, no seu dia a dia, não fazem nada, não há ligação. Há desfasamento, parece que sou uma pessoa na vida profissional e outra na vida pessoal. Foi muito bom ter conhecido sítios e pessoas diferentes. No final das palestras, as pessoas agradecem e dizem que fui uma inspiração. No fundo, o que quero é que as pessoas não mudem tudo de um dia para outro, até porque não é sustentável, mas que fique lá a semente, que mudem uma coisa naquele dia ou dali a um mês.
No início deste ano, lançou o livro Vida Lixo Zero, fabricado com papel 100% reciclado e sem plástico na capa. Que temas são abordados neste livro?
O livro está dividido em três grandes capítulos: a nossa vida, a nossa casa e a sociedade. A nossa vida fala na questão individual e nas pequenas coisas que podemos fazer. No final de cada subcapítulo há desafios, porque queria que o livro fosse prático, com o objetivo de te levar à ação. Fala também de sugestões para empresas, crianças e animais. Na parte da nossa casa, fala de uma reflexão sobre a casa em si e o que podemos fazer para organizar, como fazer compras, como haver menos desperdício alimentar, higiene pessoal, limpezas usando produtos mais naturais. Na última parte, a sociedade, falo do meu papel nas escolas, sobre a educação para a sustentabilidade – que devia ser obrigatória – e dou ideias de medidas que o Governo podia adotar para promover um estilo de vida mais sustentável.
Como ex-consumidora compulsiva, considera verdade que vivemos numa sociedade onde nunca nos satisfazemos com o que já temos e procuramos sempre adquirir mais coisas em busca da felicidade?
Vivemos numa sociedade consumista e, se pensarmos no modelo da sociedade capitalista, todo o modelo da publicidade e das campanhas publicitarias é: “tu não és suficiente, precisas sempre de mais coisas”. Por isso, uma das mudanças que fiz foi deixar de ver televisão. A publicidade não faz sentido, estamos constantemente a ser bombardeado com coisas que, na verdade, não nos fazem falta. A sociedade capitalista passa a ideia de termos de estar muito ocupados. Não é preciso um estudo para comprovar. Trabalhar 12 horas por dia e chegar a casa exausta não é viver, é sobreviver. É viver para pagar contas.
Vive um estilo de vida sustentável. Se todos assumissem o mesmo estilo de vida que a Ana que impacto isso teria na economia?
Falo sobre isso no livro. Tem de haver uma adaptação. Cada um de nós precisa de coisas diferentes. Todos vivemos de forma diferente, então, vamos fazer diferentes mudanças. Ao começar a fazer isso, a economia adapta-se. O que se ensina é que as empresas têm de estar sempre a crescer. Isto não faz sentido, as empresas têm de crescer até a um ponto em que conseguem pagar os salários e manter o lucro. Por exemplo, quanto mais trabalhas, mais coisas precisas e mais compras, é um círculo vicioso e, ao contrário, funciona: precisas de menos coisas, logo, trabalhas menos. Assim, as empresas vão ter mais produtos específicos que as pessoas procuram, alguns um pouco mais caros porque têm mais qualidade.
“É estarmos mais atentos, sair do piloto automático e começarmos a recusar mais vezes, não ter medo de dizer ‘não’”
Usamos plástico todos os dias no nosso dia-a-dia desde a garrafa de água, escova de dentes e sacos de compras. Que alternativas existem ao uso de plástico?
A garrafa de água é um excelente exemplo. Foi das primeiras coisas que mudei, mesmo antes de conhecer o desperdício zero. Comprei uma garrafa. Percebi que a água em Portugal é toda potável. Acho esta a mudança mais fácil de fazer. Mesmo que não consigas mudar a água, em vez de comprar garrafinhas, compra um garrafão e levas a garrafa já com água. Sabe-se que, nas garrafas de plástico, o plástico não é muito bom. Não sabemos o que acontece desde o momento em que as garrafas saem das fábricas até aos supermercados. Se pensarmos na indústria da água engarrafada, percebemos que se produzem garrafas e não água, apenas embalam a água.
Outra coisa é estarmos mais atentos, sair do piloto automático e começarmos a recusar mais vezes, não ter medo de dizer “não”. Podemos dizê-lo de uma forma simpática. Por exemplo, se achas que um panfleto tem uma informação importante, tiras uma foto. Outra coisa que tem um grande impacto são os saquinhos de plástico da fruta e vegetais. Felizmente, os supermercados já têm à venda os saquinhos de rede. A partir do momento em que disponibilizam estes sacos, os outros deviam ser completamente proibidos. Não sendo proibidos, há que ter o cuidado de levar os nossos sacos e isto é muito simples, é ter meia dúzia de sacos na nossa mala ou na mala do carro, termos o kit compras.
Que mensagem gostaria de deixar para apelar às pessoas a seguir um estilo de vida mais sustentável?
Começa hoje. Não esperes mais, mesmo que seja uma coisa pequenina. Encontra a tua motivação. Pode ser porque tens animais ou um problema de saúde.