Após a saída inesperada do Casa Pia, o treinador Filipe Martins faz uma espécie de balanço da carreira, avança os motivos que o fizeram sair do clube e, sobretudo, abre o coração. Mais do que uma entrevista sobre futebol, esta é uma conversa que nos mostra como os triunfos e os desafios da (sua) vida pessoal se entrelaçam com o desporto que ama.
Em criança, era um daqueles rapazes que andava sempre atrás da bola?
Sim, tive a possibilidade de estar muito tempo na rua, onde passei quase toda a minha infância. Quando não estava na escola, estava na rua. Um dos meus passatempos preferidos era jogar futebol e foi assim desde que me lembro, era sempre onde passava a maior parte do tempo. Fui um miúdo da rua que teve o sonho de, um dia, ser jogador de futebol.
Foi jogador durante muitos anos, de 1996 a 2011. Em que momento da sua carreira, decidiu tornar-se treinador?
Acima de tudo, quando comecei a ficar mais velho, como é normal, mas também quando já não me identificava muito com aquilo que estava à minha volta e como jogador optei por terminar a carreira. Entretanto, apareceu-me a possibilidade de começar a treinar miúdos. Na altura, no clube onde os meus filhos jogavam, o diretor propôs-me, já que estava ali à espera deles, porque não treinar uma equipa e assim as coisas foram evoluindo. Fui sentindo que tinha algum jeito. As pessoas também me foram incentivando, diziam que eu tinha jeito para treiná-los. Comecei pelos miúdos e, quando dei por mim, já estava a treinar graúdos.
Quais são as diferenças entre o Filipe jogador e o Filipe treinador?
Como jogador era muito mais impulsivo do que sou como treinador. Até pela função que desempenho, tenho de ser mais ponderado. Era muito emotivo. Não é que não tenha a mesma emoção, mas está mais controlada, mais racional. Agora, estou a gerir homens e na altura era um bocado impulsivo, tal como todos os jogadores. Pensava só pela minha cabeça, pensava muito em mim. Se calhar, esse meu lado emocional ajudou a não fazer uma carreira tão boa como acho que poderia ter feito.
Tinha algum ritual antes de entrar em campo?
Não, por acaso não sou muito supersticioso. Não tenho assim grandes rituais, se não acho que as coisas não me correm bem. Não tenho assim nada de especial.
O nosso campeonato ainda continua muito focado nos três grandes. É difícil contrariar essa tendência?
Não. Acho que neste momento ainda há uma diferença, mas o Braga começa a aproximar-se um bocadinho do Benfica, do Porto e do Sporting. Ainda há uma grande diferença, principalmente entre as “grandes” equipas quando comparadas às outras. Desde logo, pelo número de adeptos, pela importância que também têm no futebol nacional e depois pelo dinheiro que têm à sua disposição para fazer os melhores plantéis, que consequentemente têm boas formações. Mas acho que, hoje em dia, cada vez se nota menos essa diferença, pois os clubes “pequenos” já começam a trabalhar de uma forma também muito profissional e esse desequilíbrio começa a ficar um bocadinho mais esbatido.
“Neste momento o meu objetivo principal é experimentar outras ligas, outras mentalidades, outras culturas”
Temos assistido a uma valorização e crescimento do futebol feminino e do aparecimento de mais mulheres neste desporto. Como vê esta realidade?
Sim, acho que é uma vertente do futebol que está em grande expansão. A federação tem feito um bom trabalho na divulgação e no desenvolvimento daquilo que é o futebol feminino. Acredito que todos os géneros têm de ter os mesmos direitos. Essa realidade ainda não existe, devido a algumas diferenças salariais e a outros motivos. No que diz respeito ao futebol feminino, a questão da menor visibilidade irá terminar devido ao facto do apuramento pela primeira vez para o Campeonato do Mundo. O futebol feminino encontra-se em grande expansão e acredito que assim irá continuar.
Até agora qual foi o momento mais marcante da sua carreira?
Foi a subida do Casa Pia à Primeira Liga. Acho que é o momento mais alto da minha carreira. Como treinador, já tinha tido a subida do Real Sport Clube, que também é inédita e nunca tinha acontecido, nesse caso à Segunda Liga. Contudo, não posso esconder que esta subida que aconteceu em 2022 foi o momento alto da minha carreira. Espero que não seja o único e que venha a viver mais pontos altos, acredito nisso. Mas até agora, sim, foi claramente esse.
Ambiciona ter uma carreira a nível internacional ou não está nos planos por agora?
Sim, neste momento o meu objetivo principal é experimentar outras ligas, outras mentalidades, outras culturas. Vamos ver o que é que o futuro dirá.
Qual é o seu maior sonho?
(Risos) O meu maior sonho é ser avô. Costumo dizer isso em género de brincadeira, mas é verdade. Neste momento, já cumpri todos os sonhos que tinha para trás. A nível desportivo é participar numa prova europeia, a nível pessoal é ser avô e continuar a ser um bom pai e depois ser um bom avô e por aí fora.
Como é o Filipe fora das quatro linhas?
Fora do futebol, sou aquilo que também sou no futebol. Sou tranquilo. De vez em quando, tenho os meus momentos de oscilação comportamental, mas acho que sou muito amigo daqueles que me são próximos. Tenho poucos amigos, mas os que tenho considero-os muito. De resto sou uma pessoa tranquila, trabalho casa, casa trabalho. Por vezes, tenho os meus momentos de divertimento com os que me são mais próximos, mas não sou muito de grandes exposições, grandes festas. Sou mais tranquilo, mais recatado.
Na altura da Covid passou por momentos delicados. Isso teve implicações no treinador que é hoje? Ponderou abandonar a carreira?
Não, como treinador, acho que não. Como homem, sim, acho que me fez valorizar um bocadinho mais a minha vida agora. Como treinador não, nunca pensei abandonar, a não ser que fosse imposição por parte médica, mas nunca houve esse espectro. Houve, sim, um momento onde a minha saúde esteve bastante fragilizada, mas que felizmente já passou. Agora, é um episódio que fica para sempre marcado na minha vida, não há que fugir dele, mas também não senti que fosse um drama, nem para o futuro nem para o presente.
Saiu do Casa Pia recentemente. Ainda é muito cedo para falar sobre isso?
Não, não tenho nada a esconder do Casa Pia. Foi um episódio muito bonito da minha carreira, foram três anos e meio onde comecei o projeto de raiz. O Casa Pia tinha a estrutura física do estádio e pouco mais e eu, juntamente com o Tiago Lopes, comecei um projeto de novo, onde o objetivo era levar o Casa Pia à Primeira Liga, algo que ao início muita gente pensou que fosse impossível, mas com trabalho e com dedicação… conseguimos! Além de conseguirmos ir à Primeira Liga, conseguimos estabilizar também o clube. Saio com a consciência tranquila, acho que precisava de um novo desafio. O próprio Casa Pia precisava de uma nova cara, porque também já estava muito ligado àquilo que era a minha imagem. Olho para trás e olho com orgulho para aquilo que fiz no Casa Pia e acho que deixei o clube no sítio em que me propuseram. Estou completamente de consciência tranquila em relação àquilo que fiz e em relação ao trabalho que está lá feito.
Apesar desta decisão, os adeptos e a direção têm um grande carinho e admiração por si. Isso deve deixá-lo orgulhoso?
Sim, acho que é importante quando fechamos um ciclo num clube, o que nem sempre é fácil, fazê-lo pela porta grande e penso que foi isso que me aconteceu. Acho que os adeptos do futebol, mais especificamente os adeptos do Casa Pia, perceberam que esteve ali um profissional que deu tudo por aquela casa. Tive bons e maus momentos, pois no futebol não existem só alegrias, contudo acho que os bons momentos se sobrepuseram muito àquilo que foram os maus. Portanto, acaba por ser um virar de página e agora é seguir em frente e desejar também muita sorte ao Casa Pia.
E o que é que o levou a tomar esta decisão?
No futebol, temos que nos identificar com tudo o que está à nossa volta. Acima de tudo, há um aspecto que é o desgaste – que também não posso esconder – que já se acentuava um bocadinho. Acabou por ser um bocadinho mais o meu desgaste, com algumas coisas que se passavam dentro do clube, como o facto de não termos estádio e estarmos sempre a andar de um lado para o outro. O próprio dia-a-dia de quem tem de comandar durante três anos e meio uma instituição como aquela, dar a cara, acaba por nos desgastar e senti que era a altura certa para sair, juntamente com a administração. Portanto, acho que foi bom.