“Basta de violência, exigimos respeito!” Uma frase dita, em coro, por centenas de vozes que se fazem ouvir, desde o Largo do Intendente até à Praça Dom Pedro IV. O mote é a eliminação da violência contra as mulheres, realidade vivida pelo sexo feminino e até então pouco falada, mas que já começa a ser discutida: a violência obstétrica.
Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, 18:00 horas, noite cerrada e fria no Largo do Intendente. Várias organizações estão reunidas e unidas para marchar pelo fim de todo o tipo de violência. Num canto, o movimento Violência Obstétrica Portugal distribui rosas brancas pelas pessoas que estão no grupo. As associações preparam-se para começar a marcha até ao Rossio. Descem a Avenida Almirante Reis e gritam: “Mexeu com uma, mexeu com todas!” As pessoas de fora olham muito atentamente e pegam nos telemóveis para filmar. Ouve-se a sirene de uma ambulância a aproximar-se e todos se separam para que possa passar. Voltam a juntar-se. Finalmente, chegam ao Rossio. São estendidas as faixas das organizações, lado a lado, no chão. É ouvido o manifesto da marcha.
Mulheres: Património valioso a não ser aproveitado
Carolina Coimbra, mãe, marca presença na marcha com o seu filho ao colo. Diz não ter sofrido de violência obstétrica porque esteve sempre em alerta. “Sempre ouvi histórias horríveis e, assim que engravidei, procurei o máximo de informação que pude para evitar isso. Optei por um parto domiciliário para fugir disso.” Diz ainda que é importante para si estar presente na marcha, porque “o parto é um momento muito importante na vida das mulheres, para ser tratado com violência, para ouvirem as coisas que ouvem e serem tratadas sem dignidade nem cuidado”.
Sara Vale, cofundadora da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), diz serem muitos os relatos de violência obstétrica. “Sempre houve relatos de violência obstétrica. Acho que agora é como se tivesse feito zoom sobre esta questão, mas sempre houve.” Considera que as mulheres começam a identificar melhor as práticas realizadas pelos médicos durante o parto e que “na ideia coletiva social, daquilo que é um parto, as mulheres aceitavam e, portanto, achava-se que tinha que ser assim. E agora há um pouco mais de consciência sobre isso”.
Isabel Valente, também cofundadora da APDMGP, afirma que a marcha é de extrema importância, pois “trata-se de uma violência de género que coloca as mulheres numa posição desigual na sociedade. Elas continuam a ser prejudicadas, ameaçadas e até assassinadas”. Acrescenta que “só é bom quando for bom para todos. Enquanto continuar a ser pior para as mulheres, estamos a perder um património valioso, de metade da humanidade, que não está a ser aproveitado, potenciado e estimulado”. Em relação à violência obstétrica, Isabel conta que são inúmeros os testemunhos de mulheres que não querem ter um segundo filho “devido à péssima experiência de parto que tiveram”.
Foto: Carla Santos / Movimento Violência Obstétrica Portugal
A criminalização de violência obstétrica
Vânia Simões, advogada e dirigente da APDMGP, diz que é difícil que o diploma, apresentado pela deputada Cristina Rodrigues à Assembleia da República propondo a criminalização da violência obstétrica, vá a discussão e aprovação. “Temos uma lei, aprovada em 2019 e essa lei em lugar nenhum diz violência obstétrica. Parece que estamos a lidar com um fantasma. Os juízes não estão inteirados, os advogados também não equiparam estas situações a negligência médica” e, por isso, “as mulheres não conseguem acesso efetivo à justiça, porque os seus casos estão a ser julgados como negligência médica quando não é nada disso que se trata”. Acrescenta ainda que “as instituições falham, a justiça falha, todos falham aqui no reconhecimento e no julgamento deste tipo de situações”.
Tendo em conta que o termo violência obstétrica só agora está a ser trazido a debate público, Vânia diz que “está a entrar no léxico das pessoas, da sociedade”. Conta que quando a associação começou e “quando dizíamos ‘violência obstétrica’, as pessoas viravam a cara e perguntavam do que é que estávamos a falar. Agora, não sentimos essa estranheza e cada vez mais sentimos que já se vai falando com mais naturalidade”, embora “haja ainda um incómodo dos profissionais de saúde em falar e lidar com isto”.
Vânia considera que é preciso andar passo a passo para a criminalização da violência obstétrica. “Temos que começar pelo reconhecimento mais ténue e depois avançar para aquilo que é o mais gravoso: a criminalização. A criminalização é pôr alguém atrás das grades e temos que tentar, primeiro, pela via cível. Creio que isso teremos em breve aprovado na Assembleia da República.” Acredita que neste ano de 2022 haja novidades e prevê, de uma maneira confiante, que “já teremos o reconhecimento formal e expresso da violência obstétrica na Lei 110/2019, porque é uma lei que ainda não penaliza, mas é importante para a responsabilização civil dos profissionais e dos hospitais”, conclui.
Por volta das 19:20h, depois de ser ouvido o manifesto, as organizações começam a dispersar-se. A praça começa a ficar vazia. Ainda algumas pessoas persistem naquele espaço. Sorrisos expressados através do olhar revelam o sentimento de dever cumprido. Cada pessoa contribuiu para mostrar o que ainda se passa na vida de muitas mulheres: uma luta diária para a igualdade e contra todos os tipos de maltratos.