Aos 28 anos foi surpreendida pela Covid-19 e esteve mais de 50 dias num quarto, longe da natureza, onde passava os seus dias desde os tempos de escuteira. Chama-se Sílvia Ferreira, é licenciada em Serviço Social, está a concluir o mestrado, mora na Amadora e, em entrevista ao UALMedia, revela como foi contagiada e como sobreviveu isolada de tudo e todos.
No início de março, surgiram em Portugal os primeiros casos de infetados com coronavírus. A Sílvia foi um desses casos. Tem ideia de como contraiu o vírus?
Sim, através da minha mãe. Ela também teve Covid-19. Foi infetada no trabalho, por uma colega, e depois, sem querer, acabou por me contagiar.
Quais foram os seus primeiros sintomas?
Sentia pontadas na zona respiratória e um mal-estar geral, que não me deixava dormir. Cheguei ao ponto de me levantar a meio da noite e começar a chorar com dores. (silêncio) Curiosamente, não tinha febre. A minha temperatura esteve sempre entre os 34ºC/35º C.
Como soube que estava infetada?
Depois de aparecerem os primeiros sintomas, esperei três dias para perceber se estes desapareciam. Como se mantiveram, liguei para a Saúde 24. Expliquei quais os meus sintomas e, ainda sem a confirmação de que a minha mãe estava infetada, disse que existiam casos suspeitos na família. Eles acompanharam a minha situação e marcaram-me o teste à Covid-19, no Hospital Santa Maria. Quarenta e oito horas depois do teste feito, ligaram-me a dizer que tinha dado positivo.
Como eram as suas rotinas antes de saber que estava doente?
Estava em casa de quarentena desde 13 de março, o dia em que foi decretado o estado de emergência. Trabalhava na minha tese de mestrado, fazia diariamente caminhadas e ia convivendo com a minha família. Tudo dentro das medidas que tinham sido implementadas pelo Governo. Não estava nada à espera de ser infetada.
O que mudou depois do teste dar positivo?
Fui aconselhada a ficar isolada no quarto. Só poderia sair para ir à casa de banho. Saídas à rua só em caso de deslocações ao hospital. Passei a viver no meu quarto. Nem à cozinha podia ir. Traziam-me as refeições já prontas, à porta.
Como foi lidar com essa nova realidade?
No início, não foi fácil. É estarmos privados ao máximo da nossa liberdade, sem ter culpa nenhuma. Mas depois, fui arranjando estratégias para ocupar os dias e tudo correu bem.
Que estratégias foram essas?
Nos dias em que me sentia bem, fazia algum exercício físico. Tocava viola, lia, via filmes, séries e, quando conseguia, trabalhava na minha tese de mestrado. Além disso, falava com os meus amigos e familiares através do computador ou do telemóvel. Estar fechada tanto tempo não foi fácil… (silêncio) Poder comunicar, mesmo que através de um dispositivo tecnológico, foi fundamental para me manter bem psicologicamente. Diria até precioso! (sorri)
Os sintomas foram melhorando gradualmente ou sofreu oscilações?
Bom (suspira), todo o processo foi complexo. A evolução da doença não foi gradual. Uns dias, sentia-me melhor, outros pior. Recorri algumas vezes às urgências e a minha medicação foi várias vezes alterada. Os médicos procuravam ajustar a medicação consoante os sintomas que tinha naquele momento.
Sentiu-se acompanhada pelos profissionais de saúde durante todo o processo?
Sim! Embora tenha existido algumas situações complicadas. Logo no dia seguinte a ser diagnosticada, comecei a ser acompanhada no Aces (Agrupamento de Centros de Saúde) da Amadora. Colocaram-me em vigilância ativa e ligavam-me todos os dias a saber como eu estava. No entanto, com o aumento dos sintomas, tive de recorrer às urgências, nomeadamente ao Centro de Doenças Respiratórias da Amadora, e o médico apenas me ajustou a medicação, sem fazer qualquer tipo de exame. Mais tarde, dada a minha melhoria clínica, foi-me feito um novo teste, que deu negativo, e em resultado disso o médico tirou-me da vigilância ativa. Contudo, apesar de ele achar que eu estava bem, eu não me sentia recuperada. Sentia-me cansada e tinha dores a respirar. Acabei por recorrer ao Hospital dos Lusíadas, onde me fizeram vários exames, incluído um novo teste à Covid-19 e aí senti que tudo estava a ser feito em prol da minha recuperação.
Havia a possibilidade de o teste ter dado negativo e mesmo assim estar doente?
Sim! O teste tem margem de erro de 30%.
Qual é o seu estado clínico atual?
Segundo o último teste [realizado a 8 de maio], já não estou infetada. No entanto, continuo com dores. Há a possibilidade de ter contraído um outro vírus ou ter ficado com sequelas da Covid-19. Continuo na incerteza, sem saber afinal o que tenho.
Já pode sair à rua?
De acordo com a equipa médica que me acompanha, sim. Mas ainda não me sinto confiante para tal. Tenho-me mantido em casa.
Ficou com receio de sair à rua?
Penso que não. É mais por uma questão de responsabilidade social. Não tenho a certeza do que tenho e, por isso, não quero prejudicar ninguém.
Tem tido acompanhamento psicológico?
Não. Acho, que não preciso! (risos)
Quando tudo passar e puder voltar às suas rotinas, quais são as primeiras coisas que quer fazer?
Quero poder sentar-me com a minha família à mesa, sem medos, comer e sentir o sabor da comida (risos), ver o mar… (silêncio) Tenho muitas saudades de ver o mar!
Perfil da entrevistada
A escuteira que passou a ver o Mundo através de uma janela
Longe vão os tempos em que as preocupações de Sílvia eram os trilhos, as tendas e a confeção das refeições no pequeno fogareiro do campismo. Escuteira desde os tempos da adolescência, Sílvia Ferreira, diagnosticada com Covid-19, viveu os últimos meses confinada num quarto. “O relógio perdeu a sua importância e a janela ganhou um valor gigantesco. Tornou-se no meu melhor amigo.” Através dela, vê pessoas. Vê que o mundo não parou. Quem parou foi ela. Não fosse ter sido infetada com o temido coronavírus.
Sílvia Alexandra Gaspar Ferreira tem 28 anos, vive na Amadora e é licenciada em Serviço Social. Nascida e criada em Lisboa, numa família católica, a jovem recorda a infância. “Somos uma família pequena, mas muito unida. Para onde vai um, vão todos.” Com um irmão mais velho e três primos mais novos, as férias de verão da família Ferreira Gaspar eram passadas no Gerês. “Era o paraíso da nossa família. Foi lá que comecei a desenvolver o gosto pelo contato com a natureza. Ir para lá era sinónimo de paz”. Teresa e Joaquim, primos de Sílvia e companheiros de férias, afirmam que a jovem era sempre a primeira a levantar-se e a última a deitar-se. “Ela é muito ativa”, diz Joaquim. Já Teresa, quase da mesma idade que Sílvia, salienta “as brincadeiras e os sustos”. Foi na adolescência que entrou para os escuteiros. Os primos já lá andavam. Foram anos de desenvolvimento pessoal e espiritual, que terminaram com a entrada na faculdade. Mas nas palavras da própria, “uma vez escuteira, escuteira a vida toda”.
Com vontade de ajudar os outros, licenciou-se em Serviço Social na Universidade Católica Portuguesa. Seguiu-se a pós-graduação em Gestão de Centros e Serviços Sociais e, atualmente, está a concluir o mestrado. Desejosa de entrar no mercado de trabalho, os amigos destacam a sua “dedicação, genica e perspicácia”. Não têm dúvidas de que será uma profissional de sucesso. Um outro amor de Sílvia é a música. Toca viola e não exclui a hipótese de um dia ter formação profissional.
Desejosa de voltar à sua vida normal, a jovem afirma “que nada será como antes. Irei valorizar tudo em dobro”.