A 18 de novembro de 2019, o Presidente da República reiterou, juntamente com o Governo, a meta de acabar “com as situações de sem-abrigo em Portugal” até 2023. Passados três anos, o chão das ruas da cidade de Lisboa ainda serve de cama a muita gente. Por mais paradoxal que possa parecer, são aqueles que pouco têm quem mais se une no auxílio dos que mais precisam.
22:20h. Faz frio e está escuro no Cais do Sodré. A cinco minutos a pé da estação encontra-se André Figueira, 46 anos. André prepara os cartões de papel e as mantas para passar a noite. Mais uma. A rua é a sua casa há quatro anos. É dependente do álcool. Em tempos foi também do jogo. Contabilista de uma gráfica, recebia um ordenado confortável para suportar as despesas e viver de forma tranquila. Até que, em 2017, começou a frequentar o casino. No início, fazia apostas pequenas e os frutos sabiam a pouco. Por isso, permitiu-se ser mais ousado e aumentou o valor das apostas. “Cheguei a ganhar muito dinheiro”, diz. “E quanto mais ganhava mais queria ganhar. Com o passar do tempo, fui apostando cada vez mais.”
No seu caso, o ditado consagrou-se de forma inversa: depois da bonança chegou a tempestade. “Perdi cinco mil euros numa jogada”, confessa. Não satisfeito, dobrou a aposta. Voltou a perder. Naquela noite, abandonou o casino com um prejuízo superior a 15.000 euros. A raiva consumia-o, a vontade de “partir tudo”. Parou numa roulotte e pediu uma imperial, que soube a conforto num momento de desespero. Pediu outra. E outra. Ajudado pela cerveja, que o fez esquecer o sucedido, na manhã seguinte (já sóbrio) voltou a pensar no que havia acontecido e prometeu “que nunca mais voltaria lá”. E assim foi.
A namorada, com quem estava há cinco anos, nunca soube de nada. Depois do prejuízo, passou a fazer horas extras na gráfica para recuperar o dinheiro perdido. A relação esfriou e, por vontade dela, o que os unia acabou. Passadas duas semanas da separação, André depara-se com uma fotografia da sua ex-parceira com um novo namorado, partilhada no Facebook. “Doeu-me horrores”, admite. “Chorei tanto, mas tanto. Era o amor da minha vida.” Nessa noite, decidiu beber para esquecer. E na noite seguinte também. Passou a beber todos os dias. Ia para o trabalho embriagado ou então nem ia.
Foi despedido. O dinheiro que tinha gastava em álcool. As rendas, que devia ao banco, deixaram de ser pagas. Teve de devolver a casa. Criado pelos avós, que vivem em Bragança, recusou pedir ajuda. Foi viver com um amigo, mas não por muito tempo. “Roubei-lhe dez euros para comprar bebida”, confessa. “Fui colocado na rua. Tinha umas roupas nas malas que levava comigo e fui vendê-las para a feira do relógio.”
Com o dinheiro que recebeu conseguiu pagar duas noites numa pensão. E comprou mais álcool. A partir desse dia, fez da rua casa. Há dias em que nada come. Outros em que procura no lixo o que comer. Outros ainda em que tem a sorte de receber umas ‘moedinhas’ e vai ao Pingo Doce da estação do Cais do Sodré comprar pão e vinho, e mais aquilo que o dinheiro permitir. Passam semanas e não toma banho. As suas roupas estão rasgadas e os sapatos são de modelos diferentes. Tem a barba por fazer e o cabelo já não é cortado há um tempo considerável. Mesmo assim, sorri. “Pelo menos, estou vivo.”
O antigo contabilista desacredita que, algum dia, sairá das ruas. “Em situações como estas percebemos o quão sozinhos estamos. Não tenho ninguém para me tirar daqui. Tinha montes de amigos, mas ninguém quis saber.” Deixa também algumas críticas aos “senhores que mandam”, acusando-os de se preocuparam apenas consigo mesmos. “Falam muito e falam bem, mas fazer está quieto”, conclui, enquanto se prepara para dormir. No chão, ao frio.
Amanhã será um novo dia de luta pela sobrevivência.
Oferecer humanidade
O relógio marca 20:00 horas. Na rua dos Sapateiros, em Lisboa, perto da porta número 51, reúne-se o grupo das quintas-feiras da Associação Noor’Fatima. A sua banquinha já está montada e dão início à preparação das marmitas, a distribuir posteriormente por aqueles que mais precisam. Todos os dias, este movimento solidário dá a volta pela cidade de Lisboa, à procura de oferecer alguma dignidade àqueles que resistem a situações desumanas.
A marmita é composta por sopa, uma refeição quente, sobremesa e uma garrafa de água. Para o efeito, recebem doações e ajudas de pessoas alheias, bem como de estruturas de negócio, entre elas a Padaria Portuguesa, que fornece bolos e salgados para a distribuição. Entregam cerca de 200 refeições, ainda assim, insuficientes para saciar as necessidades das ruas. “Antes da pandemia sobravam-nos sacos, hoje somos obrigados a deixar algumas pessoas sem comida, por não haver mais”, declara Anabela Flora, 53 anos, empregada de escritório e voluntária, neste projeto, há quatro anos.
Nem só de nacionais se faz compor a mendicidade de Portugal. A pobreza atua de forma indiscriminada. E por terem esse fator em consideração, as marmitas que preparam são destinadas a todos. Os sacos azuis são para aqueles que a religião não permite que comam algumas tipologias de carne. Os vermelhos para aqueles que comem sem restrições.
Por volta das 21:00h, depois de todos os sacos já estarem colocados na carrinha, começa a distribuição. A primeira paragem é o Martim Moniz. A carrinha pára e as pessoas correm na sua direção. Luís Guilherme, 57 anos, engenheiro civil e um dos responsáveis pelo projeto, pede calma e ordem, para que se inicie a entrega. Para receberem a refeição fazem uma fila. À medida que vão recebendo os sacos, as pessoas agradecem aos voluntários. “Que Deus vos abençoe” ou “Bem-haja a corações bons” são algumas das expressões ouvidas. É um saco por pessoa, mas há quem coloque o seu na mala e se dirija novamente para a fila, em busca de mais uma refeição. Quando são reconhecidos é-lhes recusada. “Custa-me fazê-lo, mas se der dois sacos há pessoas que ficarão sem nenhum”, alega Luís.
No primeiro ponto de entrega sobram refeições. A equipa volta a entrar na carrinha em direção a um próximo destino. Depois de efetuar um trajeto, de mais ou menos cinco minutos, pára. Desta vez, ninguém corre na sua direção. São os voluntários que saem e se dirigem às tendas para entregar a comida. Conhecem-nos pelo nome e sabem a tenda que pertence a cada um. “Preocupo-me com eles. Vim a achar que lhes ia ensinar muita coisa, mas aprendi muito mais. Ninguém está livre de vir aqui parar. Hoje são eles, amanhã posso ser eu.” As palavras são de Maria de Fátima, 60 anos, uma das voluntárias da Noor.
As refeições foram todas entregues. São 22:30h e a equipa vai até a uma esplanada local beber um copo. A missão de mais um dia foi cumprida com sucesso. “Uma das melhores coisas deste projeto são as pessoas que o compõem, somos uma família”, conclui Fátima.
Matar o vício
É domingo. Na Estação do Oriente, o projeto Benvinda Solidariedade distribui marmitas de comida, roupa, mantas e palavras de conforto. Filipa Dias, a responsável pela sua criação e desenvolvimento, conta a sua história. Marcada por um passado dependente das drogas, hoje está limpa e quer tirar pessoas da rua. “O Estado pode não querer fazê-lo, mas eu quero.” Apaixonou-se pelo amor da sua vida que, ano e meio mais tarde, se revelou um consumidor. Para o acompanhar, começou a consumir também. “O amor tem destas coisas. Quando amamos alguém tomamos atitudes irrefletidas, que nos podem custar caro.” Tornou-se dependente. E o amor transformou-se numa união de interesses entre dois viciados em cocaína. “Chegou a um ponto que nada nos unia para além da droga.”
No meio de vícios e ambientes tóxicos, separaram-se. Contudo, a união entre os dois será eterna. Tiveram uma filha, que Filipa entregou à tia, por saber que não era capaz de criar. Apesar de recuperada há seis anos, somente há dois voltou a ser mãe a tempo inteiro. Não a procurou antes por medo da sua reação e por considerar injusto tirá-la da tia, que assumiu o seu papel.
Filipa percebeu que precisava parar no dia em que, pelo consumo excessivo de cocaína, começou a ter alucinações. “Nunca mais quero voltar a sentir aquilo.” Durante seis meses, fechou-se em casa e refletiu a frio sobre as escolhas de vida que tomou até então. Jamais voltou a tocar em droga.
O projeto Benvinda, cunhado com o nome da sua falecida avó, ambiciona mudar vidas. “Se eu consegui, quero fazê-los acreditar que também serão capazes.” Apelida os sem-abrigo de “amiguinhos” e não determina limites para a ajuda. Quer auxiliá-los em tudo aquilo que lhe for possível. “A comida tira a fome, a palavra tira a solidão. Às vezes só precisam de não se sentirem invisíveis”. O Benvinda vê-os, sabe que eles existem e quer tirá-los dali. Mas é difícil angariar ajudas “e a vontade, por si só, não chega”, lembra.