A paixão pelo jornalismo surgiu com apenas seis anos. O tio ‘Toneca’, como carinhosamente o trata, fez com que se apaixonasse pela profissão. Habituada a ouvir e a contar histórias, foi na sede da RTP que, desta vez, a jornalista Sandra Felgueiras assumiu o papel de entrevistada.
A curta experiência na Barcelona Television, em Espanha, em 1998, despertou-lhe a paixão pelo jornalismo, mesmo que de forma amadora, como Sandra Felgueiras faz questão de sublinhar. Estagiou depois, no jornal “Expresso” e na SIC, mas é na RTP que exerce, desde 2000, a “missão de serviço público”. Hoje, é reconhecida como uma das melhores jornalistas de investigação nacional graças à visibilidade do programa semanal da RTP1 “Sexta às 9”, que tem por base investigações sobre temas que inquietam a sociedade. Aos 41 anos, a repórter da televisão estatal confessa sentir-se realizada com o seu percurso, sem nunca ter descurado os valores que lhe foram incutidos desde a infância.
Como surgiu a noção da importância do jornalismo?
Sempre fui uma apaixonada pelo jornalismo, já desde o tempo em que não era jornalista. Costumo recordar-me de uma pessoa, que sempre que me entrevistam acabo por evocar, que é o meu tio ‘Toneca’: é assim o meu avô, pai, tio, padrinho com quem via e me encantava a ver televisão, a contar histórias e a perguntar como era ser jornalista. Foi ele que me definiu, pela primeira vez, o que era este profissional.
Comecei por sentir o que é jornalismo com apenas seis anos, altura em que já percecionava que era possível, através da escrita, transmitir aos outros as histórias que lhes contam a vida do dia a dia. Para mim, o jornalismo é isso mesmo: a ciência de contar aos outros aquilo que se passa no dia a dia e que nos permite perceber melhor o mundo à nossa volta. O jornalismo não é uma profissão, é um estado de espírito. É estar alerta, disponível e é um poder ver e ouvir onde os outros, às vezes, só encontram o silêncio. E vemos imagens, ouvimos sons e temos uma tentação natural para os transformar imediatamente em notícia e contá-los aos outros. Não são mexericos, não é fofoca, não é rumor.
Como recorda o início da sua atividade no jornalismo?
A Barcelona TV foi o primeiro trabalho, mais ou menos a sério, que tive. Eu e a Ana Cristina Lopes Pombo éramos alunas do 4ºano do curso de Ciências da Comunicação, da Universidade Nova de Lisboa, quando fomos de Erasmus para Barcelona e ficámos na Autónoma. Nessa instituição, tínhamos um laboratório de jornalismo radiofónico, onde nos foi proposto um trabalho: que enquadrássemos a comunidade portuguesa em Barcelona. Assim, fomos entrevistar o cônsul que, na altura, nos desafiou a agarrarmos o projeto televisivo local, pois à época já existia um projeto intitulado “Programa Informativo Noutras Línguas”, onde várias outras comunidades, com menos representação demográfica do que a portuguesa, estavam representadas. Não existia ninguém capaz de fazer o programa em português e então fomos desafiadas. Ficámos encantadíssimas e começámos logo no dia a seguir. O meu verdadeiro desafio no jornalismo começa quando chego a Portugal: no jornal Expresso. Aí sim, comecei a sentir o peso da responsabilidade e de ter fontes.
As fontes são o segredo do bom profissional de informação?
O segredo do jornalismo passa por ter boas fontes, cuidá-las, com sentido crítico e racional que é. Não posso ficar dependente de ninguém, nem estou aqui para fazer favores a ninguém, mas preciso de criar pactos de lealdade com determinadas pessoas, para o bem e para o mal. Não vou dizer que serei o fio condutor da sua mensagem, no entanto, aquela pessoa sabe o que espera de mim e eu sei o que posso contar da sua parte. Quem não tem fontes arrisca-se a não conseguir fazer grande coisa no jornalismo. O percurso começa nesta vertente: por um lado, uma grande paixão por contar histórias e, por outro, o ter descoberto aquilo que me parece ser o ingrediente essencial a fazer disto uma profissão segura. Costumo dizer que é preciso dar passos pequenos, mas seguros e é o que faço. Tenho as minhas fontes. Cultivo-as. Cada caso onde mergulho, debruço-me sobre eles com fontes. Investigar um caso sem ter fontes, sem ter documentos, é um risco imenso. É um risco que eu não corro.
Não ter fontes e a certeza daquilo que se vai dizer, é não se ser jornalista… Como é que o jornalista deve trabalhar a informação?
É não se ser jornalista. Para mim, sem dúvida, que quem não tem boas fontes, nem as procura, está sempre refém da atualidade e quando me dizem que o jornalismo está em vias de extinção, graças às redes sociais, recordo-me do atentado que seu deu, no ano passado, em Barcelona. Estava lá e toda a gente me dizia: “Estás a ver? Aqueles fulanos estão todos a gravar com o telemóvel. Conseguem colocar nas redes sociais o acontecimento antes de tu própria o estares a narrar na televisão”. É verdade o que disseram, mas é igualmente verdade que essas pessoas o colocam sem qualquer filtro ou capacidade efetiva de narrarem com propriedade o que se está a passar e, é por isso, que na minha opinião, ao contrário daqueles que defendem ou apregoam a morte desta área, o jornalismo nunca foi tão essencial como hoje. Na era das fakes news, nunca foi tão importante que houvesse pessoas com credibilidade capazes de dizer: “Isto é trigo, isto é joio” e de outra forma éramos intoxicados com o que não é verdade. Sem dúvida que a única forma de rebater as notícias falsas são pessoas credíveis com fontes, pois de outra forma, seríamos todos iguais.
O jornalista recolhe, trata e produz informação. O mérito é todo do jornalista. É ele que conduz todo o processo, que recolhe, trata, edita e que transmite – é este controlo total sobre o produto que ele próprio é autor, que lhe dá essa garantia de verdade absoluta. Pelo menos a verdade nesse instante. Há verdades dinâmicas. Hoje o que é verdade, amanhã pode ser mentira, graças à verificação de novos factos. Não pode é à luz dos acontecimentos e à luz das provas que se tem num dia, não ser verdade. Isso é que torna uma verdade em mentira. Qualquer um de nós pode vir a descobrir alguma coisa que nos permita auferir o acontecimento de outra forma. Não pode é no dia em que está a ser dada a notícia, o jornalista ter conhecimento de uma informação que, afinal, contraria aquilo que está a ser divulgado.
Nesses casos cancela-se a reportagem?
Cancela-se. Já cancelei imensas reportagens. Convivo com isso naturalmente e, às vezes, com amargura. Às vezes, existem notícias muito boas, mas que deixam de ser transmitidas porque simplesmente deixaram de ser verdade.
Sente que a paixão pelo jornalismo sempre fez parte de si? Hoje, continua segura da sua escolha?
Absolutamente segura. Às vezes, o meu drama é perguntar-me a mim própria o que faria se não fosse jornalista. Eu não sei.
Ser-se Jornalista
Acredita que o facto de a sua mãe ter sido presidente da Câmara de Felgueiras a possa ter influenciado, de alguma forma, nessa decisão?
Não. Aliás, os meus pais, um e outro, à sua boa maneira, não tiveram nenhuma influência na minha escolha. Desde muito pequenina que sou determinada e que dizia que queria contar histórias. O meu pai é um advogado muito estimado da terra, em Felgueiras, conseguiu tudo com muito sacrifício, com muito trabalho e criou um escritório que é uma referência ainda hoje. Ele dizia-me, não para me influenciar, mas para me piscar o olho: “Já viste? O ‘papá’ tem isto tudo e os livros todos aqui no escritório… Tu não queres ficar com isto? Quem é que vai continuar?”. Dizia-lhe: não sei quem é que vai continuar, mas eu, de certeza que não vou ser, primeiro porque não quero ficar aqui, em Felgueiras, e depois porque o tribunal é assim uma “coisa” muito pequena para mim – e não se entenda que estou com a mania das grandezas, pelo contrário, os meus amigos são os mesmos de sempre. Sou uma pessoa muito fiel às minhas raízes e muito lisonjeada por ter crescido onde cresci, mas sempre achei que não seria feliz a viver num mundo pequeno, onde não me permitisse dar passos maiores, conhecer mais. Eu, por essência, sou uma curiosa nata. Gosto de descobrir e obviamente que cada um cresce nas suas paredes. Se essas paredes forem pequenas, acaba por não existir grande espaço para se poder crescer muito. Cada um de nós tem que ir aumentando as suas paredes e foi exatamente isso que fiz. A minha mãe, de maneira nenhuma, me tentou influenciar. Até pelo contrário, dizia-me: “Nós termos de ser aquilo que queremos ser”.
Afirmou, numa entrevista de 2010, que gostava que olhassem para si por aquilo que é. Passados oito anos, as pessoas já olham para si pela profissional que é?
Essa frase tem um contexto muito fácil de entender. Nunca reneguei as minhas origens, nunca me privei de dizer o que penso sobre os meus. Todos temos de ter a serenidade de separar a vida profissional da pessoal. Eu tenho a minha, como toda a gente e, naturalmente, que nunca deixarei de defender as pessoas que são tudo para mim: o meu pai, mãe, avó… Não só por causa do processo judicial que envolveu a minha mãe, mas durante muitos anos, por ser filha da presidente de câmara e por ser filha, muito antes disso, da vice-presidente da autarquia. Ainda que os meus amigos gostassem muito de mim, havia aqueles que não gostavam tanto e que eram filhos de opositores políticos da minha mãe. Achavam que tudo aquilo que conseguia era graças à minha mãe. Vivi sempre aquele “pendure” crítico de quem é filho de alguém com alguma proeminência social. Deve ser comum a outros tantos jovens ou crianças que nascem com essa questão.
Há uma máxima jornalística que diz que “o jornalista nunca deve ser notícia”. Como é que se sente quando a sua vida é exposta nas capas de revistas cor-de-rosa?
O jornalista nunca deve ser notícia, mas o de televisão, inevitavelmente por aquilo que faz, torna-se uma figura pública e tem de conviver com isso. A questão aqui é saber conviver com a visibilidade. Tem sempre duas faces da mesma moeda: uma boa, quando contam a verdade sobre nós próprios e nos sentimos retratados com aquilo que é dito e, outra muito má, que já me levou, inclusive, a colocar processos em tribunal e a processar uma revista. Às vezes, é difícil ter de conviver com publicações que não respeitam o princípio jornalístico do contraditório, não querem saber da nossa versão e publicam factos completamente falsos, obrigando-nos a ter de recorrer aos tribunais para defender a nossa honra. Tenho situações onde essa exposição pública não trouxe nada de mal, pelo contrário, o falarem do nosso trabalho é uma forma de promoverem a nossa atividade. Não posso crer, por um lado, que o nosso trabalho seja apreciado, citado e fonte de conversa e depois não querer, só porque não é favorável, outra coisa. Tenho que saber conviver com os dois lados.
Referiu-se ao contraditório. Em que sentido se aplica a si?
A forma que achei melhor para conviver com a situação é esta: estou sempre disponível para todos, para contar a verdade e para dizer aquilo que sei, com total abertura. Nunca ninguém me poderá dizer que não estou aberta a qualquer pessoa, pois falo com toda a gente sobre qualquer tema. Nunca me furtei a isso. Naturalmente que aqueles que quiserem escrever sobre mim, não contando a verdade e não aproveitando a minha disponibilidade para dizer a verdade, serei obrigada a recorrer ao palco certo.
Na RTP, começou pelo canal 2, agora, está no principal. Que balanço faz do seu percurso na estação de serviço público?
Não encaro a passagem da RTP2 para a RTP1 como qualquer avanço ou progressão. Acho que existe mérito trabalhar na RTP1, RTP2 ou na RTP3. Estar na RTP é um enorme privilégio desde que aqui entrei, ainda que com passos pequenos e seguros, muitos deles muito difíceis. O balanço que faço é o de alguém que olha para si próprio com reflexo de si. Sou uma pessoa corajosa, determinada e muito persistente. Não me deixo intimidar por aquilo que são as afrontas pessoais e, às vezes, os desafios de “não vais ser capaz, não vais conseguir”. Nunca me deixei demover por aquilo que sinto ser capaz de fazer. Claro que desde que cá estou já enfrentei momentos muito maus, como já vivi coisas muito boas e não estaria onde estou se não tivesse tido oportunidades fantásticas que me foram dadas e às quais há pessoas a quem estou eternamente grata.
De qualquer maneira, também tenho a capacidade de sentir e auferir para mim que se não as estivesse aproveitado, nunca teria chegado onde cheguei… Mas só cheguei um bocadinho, não fiz assim grande coisa. Procuro fazer todos os dias melhor. Sinto-me realizada em ter conseguido tornar-me numa jornalista de investigação e ter, há seis anos, quase sete, um programa de investigação que obtém sempre audiências muito boas e que possui esta fasquia difícil. Todos nós vivemos em Portugal com constrangimentos ao nível de pessoas, repórteres e recursos, embora ache, que ainda assim, o balanço que tenho de fazer é positivo.
Investigar em Portugal
É difícil desenvolver investigação jornalística em Portugal?
É muito difícil. É sempre um trabalho muito complicado conseguir pôr as pessoas a falar sobre questões incómodas. É muito mais fácil conseguir o banal do que entrar na profundidade e naquilo que é a estrutura dos factos, que conjunturalmente vão sendo explicados. É sempre um mergulho duro. Agora, nós tentamos. Fazemos o melhor que está ao nosso alcance com os recursos que existem. Mas o desafio é esse e acho que é o que torna o jornalismo de investigação tão fascinante. Há sempre um desafio ao virar da esquina, ao dobrar da porta. Nunca se sabe o que vamos encontrar do lado de lá.
Muitos jovens estudantes de Comunicação olham hoje para o “Sexta às 9” como um modelo do que gostariam de fazer no futuro, uma inspiração. Deixa-a orgulhosa esta possibilidade?
Isso era ótimo. Deixar-me-ia muito orgulhosa se o “Sexta às 9” pudesse ser visto como um legado de bom jornalismo, porque é isso que procuro que aqui se faça, que dentro das nossas possibilidades, ainda que pequenas, façamos sempre bem. O melhor que podemos levar da vida é dizer que até fizemos pouquinho, não fizemos tudo o que podíamos e bem. Esse é o maior elogio que seguramente se pode dar.
Desde o início do ano já foram assassinados 27 jornalistas, vítimas de crimes premeditados, que se supõe estarem relacionadas com investigações. Como encara este fenómeno assustador?
Não penso nisso. Qualquer jornalista de investigação que perceba e que tenha consciência daquilo que faz tem a plena noção do risco e daquilo que pisa e não pisa. Não considero que pise assuntos tão perigosos que me pudessem levar a um desfecho trágico desses, mas sinceramente, acho que é daquelas coisas que não podemos pensar. Quem vive em profissões onde se convive com o risco, sejam pessoas que integram forças de segurança ou que lidam com assuntos mais sensíveis de informações, das duas uma: trabalham ou vivem reféns disso. A lógica é trabalhar e ser feliz. Para mim e para qualquer ser humano.
Já temeu com a revelação de algumas investigações, uma vez que é o rosto principal do programa “Sexta às 9” e das reportagens? Chegou a ser intimidada ou ameaçada?
Intimidada não fui. As pessoas podem sempre tentar passar os seus recados. De uma forma ou de outra, fazer crer ao outro que talvez não corra tão bem se continuar a persistir numa determinada investigação. Costumo dizer, tal como quando me perguntam se já fui pressionada: só é pressionado quem se deixa pressionar. Da mesma forma que só é intimidado, quem se deixa intimidar. Dir-me-ão às tantas: “às vezes fazes mal”. Pois… às tantas faço mal, mas o que é que posso fazer bem? Se eu tiver que ser um dia assassinada – que o diabo seja cego, surdo e mudo-, haverá alguma coisa que possa fazer para o impedir? Tem que se viver cada dia como se fosse um dia normal, mesmo aqueles que não têm nada de normal.
A direção e a redação apoiam as suas decisões?
Julgo que sim. Não tenho de prestar contas à redação, mas sim à direção de informação. Já passei por muitas direções e nunca me retiraram o apoio, até pelo contrário, nunca foi me foi imposto limites ou solicitado para que corrigisse a orientação. Desse ponto de vista, sempre estive muito à vontade na RTP e não tenho rigorosamente nada a dizer, a não ser bem.
Esteve no centro das atenções graças a polémicas associadas a algumas das personalidades que entrevistou. Como vai buscar frieza e determinação para manter a postura profissional que a caracteriza?
Essas coisas não se vão buscar. Acredito que há uma dimensão de nós que se tem ou não tem. Por natureza, sou assim. Não tenho aqui uma personagem que fabrico à sexta-feira, às 9, para aparecer à frente das pessoas. Sou muito aquilo que sou. O maior elogio que os meus amigos de infância, que são exatamente os mesmos de quando vou a Felgueiras, me dizem é: “Tu não mudas um bocadinho”. Eu fico toda contente. Não é só pela velhice, sei que eles estão a falar de mim como pessoa, como amiga. No ecrã, acontece o mesmo, apesar de existir uma dimensão que é trabalhada. A parte das perguntas: o que é que vou perguntar na altura. No entanto, a postura, a forma de como eu pergunto, sou eu. Não há aqui nada de ensaio prévio.
Os seus casos mais mediáticos foram a entrevista ao casal McCann, Paula Brito e Costa e, mais recentemente, Pedro Dias…
No caso Pedro Dias, como costumo dizer com toda a naturalidade: “Caiu-me na Sopa”. Estava no primeiro andar da RTP e toca o meu telemóvel. Referem que o Pedro Dias quer falar comigo. Meti-me à estrada a pensar: “É a maior tanga que estás a levar na tua vida, mas tudo bem”. Corri o risco e no primeiro instante em que olhei para ele pensei: “Ele não é esta pessoa. Isto deve ser uma banhada, é uma pessoa parecida”, mas não, era mesmo o Pedro Dias.
Quanto a Paula Brito e Costa, achei que a história não estava bem contado e de facto tinha razão… A história da Paula Brito e Costa era meia história, porque o caso da Raríssimas tinha duas histórias: a dos alegados desvios de Paula Brito e Costa e o alegado acerto de contas que foi feito por outra senhora do Norte que também tinha desviado muito mais. Existia uma dimensão que tinha de ser contada.
O casal Mccann foi talvez o meu primeiro grande confronto jornalístico, com a investigação. Foi efetivamente neste caso que me reconheci como jornalista de investigação. É isto que quero fazer. Procurar histórias onde o mistério esteja intrínseco à própria narrativa. Ou seja, é uma história que não se desdobra. É preciso ir decalcando, como um puzzle, tirando e pondo peças, até se descobrir o que é que encaixa ou não. Havia muita coisa que não encaixava. Perguntar-me-ão: “Tiveste frieza para perguntar a dois pais desesperados à procura de uma filha se a podiam ter matado?”. Tive. Tive de ter, a partir do instante em que se assume o mediatismo que se assumiu naquele caso e a própria polícia judiciária coloca essa hipótese em cima da mesa. Estava perante eles e não tive outra hipótese. Provavelmente, dir-me-ão: “Os ingleses não perguntaram”. Eu responderei: então não fizeram bem o seu trabalho. E é difícil porque nunca deixei de os olhar nos olhos. É um exercício horroroso, porque a pessoa está a enfrentar dois pais e, enquanto se pergunta, está-se sempre a fabricar na cabeça se eles não têm nada a ver com isto.
Hoje, sinceramente como pessoa, acho que eles não estiveram envolvidos na morte, penso sim que eles negligenciaram o perigo, deixaram-na sozinha, vivem com essa culpa. O rosto deles espelha essa culpa, mas daí a terem alguma responsabilidade na morte da criança, não creio. Posso estar equivocada, mas é a minha opinião.
Agora todas as entrevistas que foram referidas são diferentes, mas que têm uma base: quem eu sou? O genial no jornalismo – tenho cada vez mais a certeza que é das poucas verdades que aprendi ao longo destes quase 20 anos – é que todos podemos evoluir muito como profissionais. Podemos aprender muitas coisas, arranjar muitas fontes. Ainda assim, o bom e o mau carácter lapida as arestas de cada um de nós, acabando por nos formatar e por deixar uma marca que se revela essencial naquilo que se traduz no nosso trabalho. Os bons caracteres resultam por fazer as mesmas coisas, não saindo muito do trilho. Apesar de poderem ser corrompidos a qualquer preço, raramente fazem aquilo que é bom jornalismo. Eu, orgulhosamente, hoje se me perguntaram: “O que é que tu achas que fizeste de melhor?”. Respondo que o que fiz de melhor foi ter percebido muito bem qual foi o meu caminho. Nunca me desviei dos meus valores.
Conversas que marcam
Qual foi a entrevista mais difícil de concretizar?
A dos Mccann foi muito difícil de concretizar. Não foi uma, foram várias. Foram todas complicadas, porque a partir do momento que se assumem perguntas difíceis, é impossível reverter o quadro. Acaba por ser impossível voltar atrás. Foram momentos emocionalmente muito duros.
E a que mais a marcou?
Já tive muitas entrevistas que me marcaram bastante, mas sem dúvida, que a do casal Mccann. Houve uma entrevista que, eventualmente, a maioria das pessoas não deu importância alguma e que me marcou particularmente, talvez por ser mulher e por ter lido o livro dela e ter-me conseguido colocar na sua posição. Estou a referir-me a Íngrid Betancourt, a política colombiana que foi presa pelaa FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Durante largos anos, quando saiu do cativeiro, escreveu um livro e veio a Portugal. Fiz-lhe uma entrevista que me marcou bastante pelo exemplo de vida que me pareceu ver nela, pela persistência, coragem. Recordo-me que durante toda a entrevista, fiquei a olhar para ela e ao mesmo tempo a ver luz, a pensar: “Como é que esta mulher passou pelas trevas? E está aqui? Como é que se faz este percurso e como é que ela está aqui? Como é que se volta?”. Às vezes, o que mais me marca é aquilo que aparentemente para os outros não tem grande impacto e, para mim, por dentro, acaba por me marcar imenso, pois vejo nesta profissão, uma forma de aprender comigo própria, de deslumbrar os meus limites, através dos limites dos outros, daqueles que os outros superam. Esta vai ser a entrevista que sempre recordarei.
O que significa para si o jornalismo?
O jornalismo é este exercício constante de procurar fazer a ciência do dia a dia, aquela que permitirá aos historiadores um dia narrar com verdade aquilo que nós vivemos. E para se conseguir fazer esse jornalismo, que acho ser o essencial à vida de todos, é preciso ser-se muito persistente, corajoso, ter bom carácter. Não é só uma questão de seguir aquilo que se aprende na faculdade, não é só o perseguir os valores-notícia, é no momento certo em que temos de ponderar valores saber fazer. Para se saber concretizar, é necessário elaborar uma ponderação de valores, possuir bom carácter, humildade intelectuall para dizer “chega”, fazendo com que já não seja notícia, voltando atrás, ainda que tenhamos de enfrentar um editor em fúria que quer a notícia e tem de abrir um jornal, publicar uma manchete. Ser um bom jornalista é isto. Em resumo, é ter essa coerência de valores que permita que as informações que passam por si sejam verdade, sendo o filtro dessa verdade. Nesse mesmo instante, essa pessoa está a fazer e a marcar pontos para construir uma carreira, que para mim, é única e que o jornalista se deve orgulhar de ter: a carreira da verdade.
Qual seria ainda a sua meta maior?
Queria muito ser jornalista de investigação e sou. Não sei o que quero muito mais ser, além deste momento, que é ser muito mãe. Já tenho uma grande dificuldade na minha vida que é conciliar aquilo que gosto de fazer e que retira de mim muito tempo, com aquilo que aprendi que mais gosto de fazer, além disto, que é ser mãe. O meu grande equilíbrio de forças é contrabalançar o meu trabalho com a minha vida pessoal. Neste momento, com muita honestidade, não me vejo a fazer algo de mais importante do que aquilo que estou a fazer agora. Reforço: aquilo que estou a fazer agora, aos 41 anos de existência, preenche-me por completo.
O que falta ao jornalismo português?
Mais verdade. Falta este equilíbrio de valores, que permite a muitos dos nossos colegas dizerem basta e “não, eu não faço”, porque dentro de si, já têm a resposta que necessitariam para não publicar algumas notícias que não sabem ser verdadeiras. Se todos nós pudéssemos fazer o que devemos e não aquilo que muitas vezes, influências ocultas e estranhas obrigam a que seja feito, viveríamos seguramente num país muito mais verdadeiro.