Moçambicana de origem indiana, muçulmana, autodidata e mãe de três filhos, Sahima Hajat ficou conhecida em todo o país após vencer a edição de 2023 do MasterChef Portugal. Mais do que uma competição, a sua presença no programa tornou-se uma afirmação de identidade, superação e representatividade. Em entrevista ao UALMedia, a chef fala do seu percurso, das dificuldades enfrentadas, da importância da família e dos sonhos para o futuro.
A sua relação com a cozinha começou em casa, com a mãe e a avó. Ainda se lembra do primeiro prato que preparou sozinha e da sensação que teve ao cozinhá-lo?
Sim, lembro-me perfeitamente. Foi chá com ovo, o típico pequeno-almoço indiano que se tomava em minha casa. O chá indiano é feito com cuidado, tem todo um ritual. Era o meu pai que fazia. A minha mãe preferia chá inglês, mas o meu pai era apaixonado por chá indiano. Eu sou a primeira menina da família, numa cultura onde os rapazes não entram muito na cozinha, por isso ele quis ensinar-me tudo desde cedo. Tinha uns nove anos quando comecei a fazer chá como deve ser. Hoje, com filhos pequenos, percebo como ainda era muito nova, mas já estava a aprender. E com gosto!
Qual foi o primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça quando o seu nome foi anunciado como vencedora do MasterChef Portugal 2023?
Na verdade, só descobri que tinha ganho no dia em que o programa foi transmitido. Gravaram dois finais — um comigo a receber o troféu, outro com a Ana — e só no último episódio, já em casa, percebi que tinha vencido. Não houve aquele momento de euforia no estúdio, foi uma descoberta em família, mais íntima. Mas o sentimento foi muito forte. Senti-me valorizada. Senti que tinha representado muitas mulheres, especialmente mulheres muçulmanas, mães, donas de casa. Mulheres como eu, que muitas vezes não têm formação formal, mas têm talento e amor pelo que fazem. A vitória não foi só minha, foi nossa.
O MasterChef é um programa com muita pressão. Houve momentos em que sentiu que não ia conseguir chegar ao fim?
Sim, claro. Há provas muito intensas. As de eliminação, por exemplo, são as mais difíceis. Podia ter tido pratos incríveis até ali, mas se naquele dia não corresse bem era eliminada. O histórico não conta. Mesmo assim, são as minhas favoritas. Gosto do desafio, da adrenalina de cozinhar com tempo contado, de sentir aquele stress saudável. Até recebi o pin de imunidade no segundo episódio — podia usá-lo para me salvar numa prova, mas nunca o usei. Quis passar por tudo, viver o programa até ao fim.
O maior desafio, no meu caso, foi ser muçulmana e cozinhar halal. Pedi essa condição desde o início e o programa respeitou. Deram-me um frigorífico só com carne halal. Mas houve outras dificuldades: nas provas, muitos colegas usavam vinho, demi-glace ou caldos preparados — eu não podia. Tinha de fazer os meus próprios caldos, com especiarias, com tempo e atenção. Era mais trabalhoso, mas também me permitia dar o meu toque pessoal. Isso fez toda a diferença.
“Para mim, cozinhar é contar histórias”
Foi elogiada por fundir sabores tradicionais com técnicas modernas. Como é que equilibra a autenticidade da gastronomia indiana e moçambicana com a necessidade de inovação?
Para mim, cozinhar é contar histórias. Todos os pratos que faço têm memória. Não sigo receitas… cozinho por instinto, por paladar, por recordação. Tudo aquilo que vivi, todas as viagens, as festas em família, os casamentos, contribuíram para o que sei hoje. A cozinha não tem limites. Foi esse mesmo instinto que me levou a escrever o meu livro de receitas. Nunca pensei fazê-lo, porque não uso medidas, mas percebi que havia muita gente com curiosidade pela cozinha indiana e que achava difícil trabalhar com especiarias, então decidi simplificar. Criei pastas-base e organizei receitas fáceis. É acessível a qualquer pessoa. Até a minha filha de 13 anos consegue cozinhar com o livro.
Se tivesse de escolher três ingredientes que nunca podem faltar na sua cozinha, quais seriam?
Ovos, manteiga e farinha. Com esses três ingredientes, consigo fazer qualquer coisa — doces, salgados, entradas, tudo. São versáteis e fundamentais.
Há algum prato que lhe transporta imediatamente para a sua infância?
O chá. Sempre o chá. Na minha infância, qualquer situação era resolvida com chá. Estava frio? Chá. Estava calor? Também chá. Dores de cabeça, cansaço, tristeza — tudo passava com uma chávena quente nas mãos. O chá, para mim, é mais do que uma bebida. É memória. É carinho. É herança.
A sua família teve um papel muito importante na sua ligação à cozinha. Como reagiram à vitória no concurso?
Foi emocionante. Para os meus filhos, para o meu marido, para os meus pais. Toda a família sentiu aquilo como uma vitória coletiva. No fundo, todos somos MasterChefs em casa, não é? Eu tive a sorte de me inscrever, de correr bem, mas acredito que muitas outras mulheres fariam o mesmo ou melhor, se tivessem a oportunidade. A minha família sempre me apoiou e isso vale tudo.
“No mundo profissional, são os homens que dominam”
A gastronomia profissional ainda é um espaço dominado por homens. Já sentiu dificuldades acrescidas por ser mulher e muçulmana?
Sim. É uma realidade. Em casa, as mulheres são quem mais cozinha, mas quando se entra no mundo profissional são os homens que dominam. E há razões para isso. Nós temos outras responsabilidades. Somos mães. Temos de parar quando estamos grávidas. Temos de cuidar dos filhos. Isso condiciona muito. Eu própria penso em abrir um restaurante, mas a primeira coisa que me vem à cabeça é: e os meus filhos? Quem fica com eles? Por isso, neste momento, estou mais focada em eventos privados, showcookings e workshops.
Fala com muito carinho dos seus workshops. O que a motiva a ensinar outras pessoas a cozinhar?
Acredito que a cozinha pode curar. Hoje em dia, há muito fast food, muita comida processada. Quero mostrar às pessoas que cozinhar em casa pode ser simples, rápido e saudável. A cozinha indiana tem muitos ingredientes com propriedades medicinais, especiarias ayurvédicas que fazem bem ao corpo. Partilhar isso é importante para mim.
“Cozinhem com quem sabe, vão ter com as vossas mães, com as vossas avós e com as vossas tias”
As redes sociais têm-lhe ajudado a chegar a mais pessoas?
Sem dúvida. É através delas que muita gente me conhece. Posso mostrar o meu trabalho, explicar as receitas, divulgar os eventos. E o facto de falar português é uma grande vantagem: consigo aproximar-me de pessoas que querem aprender, mas têm receio das barreiras linguísticas.
Tem algum projeto futuro que possa revelar? Pode-se esperar um restaurante seu em breve?
Quero muito abrir um restaurante. Mas quero fazê-lo no momento certo. O meu sonho é ter um restaurante com estrela Michelin. Já tirei um curso em Espanha, onde me explicaram os critérios. Exige-se rigor, mas também autenticidade e simplicidade. E isso eu valorizo muito. Mas sei que é difícil — montar uma equipa, suportar os custos, manter a sustentabilidade. Em Portugal não é fácil, mas estou a preparar-me. Com calma, um passo de cada vez.
Para quem sonha seguir o caminho da gastronomia, mas não tem formação académica, que conselho daria?
Cozinhem com quem sabe. Vão ter com as vossas mães, com as vossas avós e com as vossas tias. Observem. Perguntem. A tradição não está nos livros, está nas mãos delas. Hoje em dia há vídeos, há receitas online, mas nada substitui a prática. Cada família tem os seus temperos. Cada casa tem a sua forma de fazer as coisas. E é isso que faz da cozinha algo único.