Os incêndios florestais que assolaram o Centro e o Norte do País provocaram danos psicológicos difíceis de ultrapassar em quem viveu, na primeira pessoa, a maior tragédia alguma vez ocorrida em Portugal. Graças à ajuda dos psicólogos, as feridas emocionais estão a sarar, mas devagarinho.
A gravidade e a complexidade da vaga de incêndios que assolou o País no verão passado provocaram, como é sabido, perdas e danos consideráveis de diversa ordem. O elevado número de vítimas e o horror das situações vivenciadas causaram perturbações psicológicas em quem sobreviveu que podem ser perigosas, se não forem clinicamente acompanhadas. Só no local do incêndio de 17 de junho, em Pedrógão Grande, foram realizadas 853 intervenções psicológicas no sentido de tranquilizar e estabilizar emocionalmente quem foi apanhado pela tragédia.
Ao fim de mais de seis meses, as emoções destas pessoas continuam, naturalmente, à flor da pele e ainda se sentem perdidas, sem saber como lidar com a tragédia que se abateu sobre o lugar onde se sentiam seguras. Com a ajuda de alguns terapeutas envolvidos no terreno, é importante perceber a dimensão dos danos psicológicos causados, de que apoios dispõem e o que fazer para evitar que os traumas psicológicos sejam irreversíveis.
O coordenador nacional das equipas de apoio psicossocial da Autoridade Nacional de Proteção Civil, Rui Ângelo, explica que, num quadro de danos psicológicos, registam-se níveis distintos de envolvimento que é preciso diferenciar: “Existem vítimas primárias que sofreram diretamente com o incêndio, pois padecem de danos físicos ou observaram a devastação das suas habitações; as vítimas secundárias que são familiares ou amigos dos lesados; as vítimas terciárias que são entidades intervenientes no incêndio como bombeiros, socorristas ou polícias que viram o sofrimento das pessoas ou não conseguiram salvar alguém, desenvolvendo traumas, e as vítimas quaternárias que são pessoas que, através dos meios de comunicação social, veem o que aconteceu e, de alguma forma, sentem empatia pelas vítimas ou entram em estado de choque, como o exemplo da observação de reportagens que mostram restos mortais dos lesados”.
Fazer o luto e superar
No caso das vítimas primárias, quando há um choque intenso para a vítima, o apoio psicológico de emergência é disponibilizado no local, mas logo em seguida será encaminhada para o apoio de continuidade, garantido pelo Serviço Nacional de Saúde. O psicólogo Rui Ângelo recorre ao conceito de primeiros socorros psicológicos para descrever os procedimentos adotados pelos terapeutas no momento da tragédia: “O intuito é o de estabilizar a pessoa, a partir de estratégias adequadas para superar a situação. Temos de a deslocar para um sítio seguro e, se estiver com um grande nível de ansiedade, não devemos confrontar a vítima com o problema, de modo a não afetar ainda mais o seu estado psicológico.” É também necessário, prossegue, “baixar a atividade fisiológica, através de exercícios de respiração, assim como desviar a atenção da vítima para outro assunto que não o da catástrofe”. Assim que a pessoa fica mais calma, passa-se para a resolução de problemas. “Muitas vezes, só o facto de falar ao telemóvel com um familiar próximo, baixa imenso os níveis de ansiedade do lesado”, sugere. Nestes casos, apela-se mais ao lado racional do que ao emocional para que a vítima possa, de facto, voltar à rotina.
Segundo o especialista, a percentagem de lesados que desenvolve perturbações que possam progredir e agravar-se no futuro é uma minoria. “Geralmente, são casos de familiares de vítimas mortais ou pessoas com patologias prévias como depressões, ansiedade ou historial de vícios”, indica. O psicólogo partilha ainda que “se deve fazer um luto saudável, onde há dor, mas não existe um trauma psicológico, a menos que o sentimento de impotência se desenvolva ao longo do tempo e, nesses casos, o estado da pessoa pode agravar-se no futuro”.
A partir da sua experiência, Rui Ângelo afirma que cada ser humano tem a sua própria maneira de lidar com episódios traumáticos: “Há pessoas que não conseguem digerir a situação, como o exemplo de um familiar que indicou o caminho à vítima que a levou à sua morte, como existem outras que passam por momentos agravantes do ponto de vista emocional e conseguem superá-las.”
Sónia Cunha, psicóloga responsável pelo Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise, do INEM, sublinha ainda que “ninguém está doente ao reagir intensamente a uma perda que foi muito violenta e avassaladora”. No entanto, a terapeuta adverte que “a doença surge quando cada pessoa, individualmente, revela ser incapaz de integrar o que viveu”. A identificação destes casos clínicos não tem um diagnóstico imediato: “Não é no momento agudo que se percebe o estado do paciente, mas sim algum tempo depois.”
Sintomas associados e tratamento
Qualquer perda, sobretudo, quando se trata de vidas humanas e em circunstâncias tão inesperadas e dolorosas, envolve sentimentos muito intensos. Nestas circunstâncias são, elucida Rui Ângelo, “normais e comuns, como mecanismo adaptativo e natural, reações de choro intenso, sentimento de pesar profundo, angústia, desespero, vazio intenso, dor, raiva, revolta, incapacidade de compreender o que aconteceu, necessidade de encontrar justificação para os factos, sensação de que não se vai ultrapassar tamanha dor e que não vai conseguir continuar sem a pessoa que se perdeu, entre outras possíveis”. O psicólogo refere que são muitos os fatores que medeiam a vivência interior da perda e, consequentemente, as reações que daí advêm. “Cada pessoa reage de forma muito particular, dependendo da sua própria forma de ser e de estar, das suas características, da ligação emocional à pessoa que se perdeu, das circunstâncias da morte”, justifica.
Numa fase inicial, o foco deve estar na proteção e segurança, no apoio à realização de tarefas práticas imediatas e, principalmente, no esforço para a divulgação de informação correta sobre o que aconteceu e o que vai acontecer a seguir. Segundo Rui Ângelo, “um ponto que se tornou essencial na pós-catástrofe foi a promoção da criação de espaços para que as pessoas pudessem ventilar a sua dor e o seu sofrimento, permitindo a recuperação do seu autocontrolo e da sua pro atividade”. Neste sentido, o mesmo especialista considera “fulcral evitar o isolamento”. Se as reações que inicialmente são normais se prolongarem no tempo, sobretudo a dificuldade em dormir e em retomar a vida diária, o terapeuta aconselha a que “se procure um profissional de saúde mental que ajude neste processo de elaboração da perda”.
O dessassossego de quem viveu o pesadelo
“Nada traz de volta quem partiu”
Francisca Duarte, neta de um dos casais que faleceu no incidente ocorrido na Estrada Nacional 236, que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos, ainda hoje não consegue aceitar o que aconteceu. “Nunca se está preparado para receber uma notícia dessas, principalmente, quando achamos sempre que este tipo de coisas só acontece com as outras pessoas”, confessa.
A princípio, a jovem sentia-se com receio, mas descansada com as notícias que passavam na comunicação social. Quando lhe contaram a notícia, nem queria acreditar no sucedido. “Na altura, o meu mundo parou.” Hoje, sente-se revoltada, pois, admite, “por muito que o tempo ajude, é algo muito chocante para alguém esquecer ou sequer ultrapassar”. Francisca Duarte contou com apoio psicológico que lhe foi disponibilizado logo a seguir ao incidente, mas ainda aguarda indemnizações. Com tristeza, diz: “Nada traz de volta quem partiu.” O que causa mais angústia a esta jovem é saber como os avós faleceram. “Estavam no sítio errado à hora errada. Não era suposto morrerem assim.”
O luto está a ser um processo muito difícil. “Apesar de me ir aguentando, há momentos em que parece que as memórias começam a assombrar e tudo começa a correr mal. Ainda hoje tenho imensos pesadelos. Quando as saudades falam, as lágrimas caem”, desabafa. No entanto, Francisca Duarte reconhece que a vida tem de continuar para os que ficam por cá. “A coisa que mais desejava era que os meus avós também tivessem ficado.” A jovem defende que “deveria de haver um maior apoio às vítimas e mais entre ajuda entre os próprios cidadãos para que não se crie uma situação de revolta”, como a que diz estar a sentir neste momento.
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“Fiquei em pânico por não conseguir chegar até eles”
Filomena Clemente, moradora na zona do Louriçal do Campo, há mais de 30 anos, garante que nunca irá esquecer a tragédia deste verão e recorda os momentos de aflição vividos na sua aldeia do concelho de Castelo Branco: “O incêndio florestal foi a coisa mais horrível que já vivi na minha vida, pois nada previa que se aproximasse das habitações, até que os ventos fortes me obrigaram a sair de casa e a fugir para a entrada da aldeia que, entretanto, também começou a arder. O meu pai e o meu sobrinho chegaram a ficar presos dentro de casa, pois acharam mais seguro ao verem as chamas em redor do lado de fora da janela. Fiquei em pânico por não conseguir chegar até eles.” A ajuda tornou-se, segundo relata, insuficiente. “Apenas tínhamos um centro para o qual as pessoas se puderam alojar, após as perdas que tiveram. Estavam poucos bombeiros no local e somente a junta de freguesia se preocupou com a saúde e bem-estar dos habitantes, mesmo nos meses seguintes”, lembra. Como conta Filomena Clemente, o seu tio “perdeu todas as árvores e culturas que eram o seu sustento e muitos idosos ficaram afetados tanto a nível emocional como economicamente”.
“Ninguém apareceu para ajudar a população”
O presidente da Junta de Freguesia do Louriçal do Campo, Pedro João Serra, não esconde a preocupação com os destroços causados pelo incêndio florestal que deflagrou no Casal da Serra, em agosto, danificando casas devolutas e todos os edifícios do histórico colégio de São Fiel, no distrito de Castelo Branco, uma das regiões mais afetadas pelos incêndios deste verão, apesar de ser das que menos mereceram a atenção da comunicação social. Mais do que os danos materiais, Pedro João Serra confessa-se preocupado com a falta de apoio às populações, mas diz ter esperança no futuro.
Apesar dos 30 casos sinalizados de perdas de bens e da existência de várias vítimas socorridas, o responsável refere que “as pessoas vão emocionalmente ultrapassando a situação com o apoio da Câmara Municipal de Castelo Branco e da junta de freguesia”. O que transtorna Pedro João Serra é o esquecimento: “Ninguém apareceu para ajudar a população. Se não existisse a missão da junta de freguesia no caminho para animar e resolver os problemas das pessoas, projetando um futuro em que este tipo de situações se torna evitável, nada se iria alterar”. No entender do edil, o papel do Estado é essencial para inverter esta tendência, mas considera que “para isso é necessário que a máquina chamada de ‘Estado’ dê o exemplo”.
O outro lado da missão
Quando os dramas atingem os profissionais
Existem inúmeros serviços públicos aptos a prestar apoio psicológico às vítimas, desde a Proteção Civil aos serviços pertencentes à sua coordenação, como o INEM, da Cruz Vermelha, os bombeiros e até policiais. Porém, nem os profissionais conseguem manter-se indiferentes à dor humana. Como pai, Rui Ângelo confessa que lhe custa ver uma situação onde existe a perda de um filho: “Imagino-me na pele daquela pessoa.” Para superar os momentos difíceis que enfrenta no seu dia-a-dia, o psicólogo conta com o apoio da família e dos próprios colegas de trabalho.
Ana Delgado, bombeira voluntária no concelho de Santarém, sente-se angustiada quando vê com os próprios olhos “a dor de uma pessoa que não quer sair da sua casa para proteger o que construiu durante toda a vida”. Independentemente das imensas formações frequentadas sobre os incêndios florestais e os comportamentos a adotar, Ana Delgado reforça que “no terreno, as situações são outras e aparecem sempre obstáculos, nomeadamente, quando um bombeiro é cercado pelo fogo sem estar à espera”.
O medo acaba por surgir como primeira reação. “Apesar da experiência, todos os bombeiros são também humanos e o fogo mete respeito. Por isso, não se deve ir para o terreno com uma atitude de herói”, refere a bombeira, ao mesmo tempo que admite as fragilidades próprias de qualquer ser humano: “Senti-me muitas vezes impotente nos incêndios deste verão. É também agoniante olhar para uma paisagem toda de negro”. Por mais anos que passem em funções, é sempre difícil lidar com o medo de poder não regressar a casa sã e salva. “Existem momentos em que os próprios bombeiros pensam que não conseguem sair dali. Basta uma mudança de vento para as chamas, que pareciam estar controladas, voltarem a surgir. Nestes casos, tenho de zelar pela minha segurança”, desabafa. Nos incêndios deste verão, a própria família sentiu receio pela bombeira. “Apesar de sempre me terem apoiado, é inevitável ficarem preocupados quando estão a ver o que se passa no terreno através das televisões.”