Passaram meses. A paisagem escureceu e o processo de recuperação vai ser moroso. Olhamos para trás e imaginamos o horror. O ciclo parece fechado, mas está longe de estar. A comunidade médica e profissionais de saúde mental receia as consequências dos dias de fumo intenso, ao mesmo tempo que lembram que o fogo continuará vivo na memória de todos. É preciso estar atento e devolver alguma saúde e bem-estar a quem perdeu tudo.
A vaga de incêndios que teve início em junho de 2017 abalou a população portuguesa. A curto e a longo prazo são previstas consequências económicas e ambientais, mas o mais preocupante são os riscos que poderá representar para a saúde pública, tema que inquieta a comunidade médica e a Direção Geral da Saúde (DGS). Luísa Vieira, pneumologista, avisa que “pode haver um desencadeamento ou agravamento de problemas respiratórios devido às pequenas partículas que existem em grande abundância no fumo dos incêndios e que se depositaram nas vias respiratórias”. Os grupos de risco nestas situações são muito abrangentes. “Estão integradas as crianças, as grávidas, os doentes com problemas respiratórios e cardíacos, mas também os trabalhadores ao ar livre, os bombeiros e a população envolvida”, aponta a especialista.
Como medidas de prevenção sugeridas na altura dos incêndios e sempre que uma situação semelhante se repete, a médica reforça alguns procedimentos a serem adotadas em caso de incêndio e também sugeridas pela DGS: “Evitar a inalação de partículas protegendo a boca e o nariz com lenços húmidos ou máscaras. Reduzir a atividade física e o tabaco. Não deixar as crianças brincar na rua nem fazer desportos ao ar livre. Para quem utiliza o ar condicionado, deve colocar a opção de recirculação de ar e verificar se os filtros estão limpos, evitando assim que o ar exterior entre dentro de casa. Se ficar em casa, não fume, não acenda velas nem qualquer aparelho que funcione a gás ou a lenha, de modo a manter o nível de oxigénio dentro de casa o mais alto possível. Evitar tudo o que pode aumentar a poluição no interior da residência. Os doentes cardíacos e respiratórios devem usar medicação de S.O.S., se necessário. Se tiver ou mantiver as queixas, por exemplo, tosse intensa, falta de ar, peso no peito, tonturas e dores de cabeça deve ir a uma Urgência.”
Os riscos para a saúde associados aos incêndios não advêm, acrescenta, apenas “dos poluentes emitidos com a combustão, mas também riscos associados ao seu combate como acidentes, queimaduras, asfixia e desidratação”.
Encarar a realidade
Depois do terror e do medo, restam as memórias e o vazio de quem perdeu uma vida de trabalho e entes queridos. Aceitar esta realidade é uma situação difícil de ultrapassar, podendo deixar marcas profundas. Por isso, os danos psicológicos são melindrosos e está cientificamente provado que, na ausência de intervenção terapêutica, podem desencadear, no futuro, problemas mentais. O psicólogo Hugo Ferrão avança que “podem existir diversas perturbações após uma catástrofe natural. A mais frequente é a perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT)”. No entanto, acrescenta, “a depressão, nas suas mais manifestas formas, assim como crises associadas à ansiedade também fazem parte de problemáticas envolvidas nestes casos.” Grande parte das pessoas que sofre com os incêndios recupera, o que de acordo com os especialistas é denominado de resiliência. Porém, existe uma minoria, cerca de 20%, que não consegue ultrapassar as perturbações e aí sim, torna-se um risco grave para a saúde.
Protocolos com a União das Misericórdias Portuguesas, disponibilização de escritórios para apoio psicológico e psicólogos voluntários que se deslocaram às habitações das pessoas foram algumas das medidas tomadas para auxiliar as vítimas dos incêndios. No entanto, na opinião do psicólogo Hugo Ferrão, a duração dos apoios psicológicos disponibilizados é algo a ter em conta nestas situações. “Para se ultrapassar uma situação traumática e qualquer perturbação do foro psicológico, é necessário um trabalho contínuo entre o paciente e o psicólogo. Não é um trabalho que se vê resultados do dia para a noite”, justifica. “Uma ótica longitudinal ou a longo prazo são medidas bastantes pertinentes e indispensáveis para a regularização da vida as vítimas”, conclui o psicólogo.
São dois os grupos que mais precisam de ajuda, após situações traumáticas como os incêndios que devastaram milhares de hectares florestais no verão deste ano: aqueles que perderam os familiares e bens e as pessoas que já tinham perturbações psicológicas com tendência a piorar.
Heróis de carne e osso
No meio do negro da natureza, das lágrimas e do desespero, há sempre alguém que fica para segundo plano. Hugo Ferrão lembra que os bombeiros também passaram por momentos traumatizantes, viveram a dor das vítimas, outros viram a sua própria vida por um fio. “As equipas de apoio psicossocial tomaram medidas e ajudaram alguns bombeiros da forma que conseguiram, mas não chega. Foram centenas os bombeiros que participaram nos incêndios deste verão e para chegar a todos eles eram necessárias mais instituições a dar apoio.”
O terapeuta considera que “a cobertura dos media exaltando o lado heroico e glorioso dos bombeiros foi exaustiva”, mas Hugo Ferrão achava “mais pertinente terem usado esse tempo de antena para divulgarem a ajuda psicológica que estes homens precisam, após cada missão. Digo isto, pois as maiores cicatrizes do ser humano são invisíveis”, conclui.