A vila do Montijo está, tradicionalmente, ligada à pesca. De dia ou de madrugada, lá vai um grupo de oito pescadores, os únicos que ainda permanecem nesta luta diária com o mar, em busca do seu ganha pão. Em viagem até à praia de Alcochete, num dos três barcos disponíveis, ouvimos testemunhos e histórias de quem faz desta profissão uma vida.
À chegada ao centro da vila do Montijo, nem o perfume da melhor marca do mercado consegue superar o cheiro a “pêche”. São 8:30h e lá estão os “Tarrés”, o “come-lama”, o “arroz doce” e o “mata-tudo” a preparar as redes para mais um dia de trabalho. A explicação para estes nomes? Humberto Silva, o “Perna curta”, afirma, arregaçando as mangas da sua camisa aos quadrados, que “isso são nomes que se dizem entre camaradas e, depois, pega”.
O que custa a pegar é o barco. “Esta demora é normal” foi talvez a frase mais dita nos 10 minutos que separaram a entrada no barco “Filho do Mar”, assim chamado devido aos muitos anos em alto-mar, e a partida Tejo adentro.
Por aqui, todo o cuidado é pouco. Apesar de todos estes homens serem analfabetos, ditados como “mais vale um pássaro na mão, do que dois a voar” são sempre postos em prática, mesmo que estejam apenas escritos nas suas cabeças. O que corre, sim, é suor. E muito.
Inovação ou retrocesso?
Já no mar, ainda na modesta vila do Montijo, começam os trabalhos. O primeiro a atirar as redes ao mar é o “mata-tudo”. Não que Joaquim Laranjo mate tudo, pois “o que realmente mata a profissão são as novas tecnologias. Elas só fazem os camaradas mais antigos afastarem-se da pesca, porque não sabem funcionar com o GPS”. No entanto, nem todos concordam.
“Estes gajos não percebem nada disto. Deviam era agradecer às novas tecnologias por termos GPS para nos guiar no mar”, afirma Inácio Horta, de 60 anos com a voz rouca e peito coberto com uma camisa meio abotoada com alguns rasgos junto aos ombros. Inácio tem esta alcunha justamente por ser o mais novo da tripulação. Mas mudemos de assunto, antes que as corvinas apareçam e ninguém, com ou sem GPS, as consiga pescar.
Às 11:00h, a fome já começa a apertar no estômago dos pescadores. Por vezes, não têm tempo para comer. Mesmo assim, João, de 87 anos e mãos escuras e trémulas, garante que apesar disso “quem corre por gosto não cansa”. Nunca foi à escola. Tinha de ajudar os seus pais, também pescadores. “Naquele tempo tínhamos de ir com os nossos pais de madrugada, ir ajudar a pôr as redes no mar para que, quando começasse o trabalho, eles ‘só’ tivessem de puxar o peixe com as canas e metê-los nas redes ”, revela, acrescentando que a sua verdadeira escola foi o mar.
“De março a junho é a corvina. Nessa altura, pesca-se apenas corvina. De junho a setembro é a época das douradas e, no resto do ano, é conforme”, afirma Romeu Cotrim, o “come-lama”, homem de dentes amarelos e mãos gretadas, que hoje conquistou a “medalha de ouro”: um prémio simbólico que é atribuído a quem pesca o primeiro peixe do dia. Aos 72 anos, com uma voz pouco perceptível devido a ter apenas meia dúzia de dentes, refere que faz por ser sempre o primeiro do dia a pescar. “Gosto de ser o primeiro a pescar para mostrar que nem sempre quem anda cá há mais tempo é quem percebe mais disto”, remata, sorrindo, apesar da ausência de muitos dentes que, diz, o mar lhe levou.
Quatro horas passaram. “Cansaço” parece ser palavra que não consta no dicionário, pois muitas vezes o peixe salta para dentro do barco sem ser preciso apanhá-lo com as canas. E desta vez não foi exceção.
Os pescadores lutam diariamente com os seus próprios meios. “O tempo das ajudas já era. A Associação dos Pescadores do Montijo não nos dá apoios. Antigamente, ainda vinham trazer o pão às famílias e forneciam-nos as redes. Hoje, ainda usamos os mesmos meios de antigamente”, atira Joaquim Laranjo, com o rosto coberto de suor e lançando um olhar pouco amigável, enquanto apanha uma das “corvinas teimosas”, o nome dado às corvinas que teimam em ficar na água.
Parece haver uma luta constante entre a Associação dos Pescadores do Montijo e estes homens. Quem comanda a associação é precisamente um deles – António Fraga, 64 anos, apelidado pelos seus camaradas de ”capitão”. Os olhares distantes e os monólogos de discordância em relação a estes apoios são, ao que parece, uma constante. Mas o convívio e o trabalho não são afectados.
O que acontece no mar, fica no mar
Às 18:00h, a viagem aproxima-se do fim. As redes são recolhidas. Todos ajudam com o sentimento de dever cumprido, pois a pesca parece ter rendido. “Há aqui peixe para uma semana, mas, no entanto, amanhã cá estaremos novamente, na luta”, afirma Ricardo Carmona, o único elemento que não tem alcunha.
Com ou sem apoios, a verdade é que muita coisa já veio, mas também já foi. Junto à proa do barco está um homem de cabelo grisalho com uma t-shirt da associação dos pescadores rasgada ao meio. Chama-se António Patrício. Tem a alcunha de “gato riscado” e é o irmão mais novo de Jorge Patrício, que também faz parte do grupo. Sem entrar em pormenores, conta que nem tudo no mar é bom: “A vida no mar é muito dura. Às vezes, a menor distração pode custar-nos uma vida. Já presenciei momentos desses. Mas prefiro não falar disso.” Afasta-se.
No fim, elas também choram
Sem pressa para irem comer a “bucha”, saem do barco apoiados uns pelos outros. Ao longe, é possível observar uma mulher de estatura baixa e cabelo curto, com uma bata vestida. Aldegundes Pinela, de seu nome, ganha a vida a vender o peixe que o seu marido, António Patrício, traz para casa todos os dias. Numa clara ânsia de ir abraçar o “seu homem” e com um olhar visivelmente feliz, afirma: “Quando ele vai para o mar, fico com o coração nas mãos. Nem que seja por uma hora. Mas, acima de tudo, orgulho-me dele.”
Já na praia de Alcochete, destino da viagem, fica claro que a pesca é a profissão da vida destes homens, homens que, hoje, já não se consideram um exemplo para os jovens. Esses, “hoje, já não querem a pesca”, lamentam.