O que melhor define as pessoas são os projectos que um dia tiveram na cabeça, mas que nunca chegaram a realizar. São limbos que ficam estacionados na sua própria sombra. Mas são eles que desenham afinal os limites, os contornos da silhueta, o espaço potencial da nossa afirmação. Ao fim e ao cabo, são como o rabo de fora deixado por esse felino espantoso chamado mistério.
Deixo alguns exemplos: Renée Falconetti que, em 1928, fez de Joana d’Arc no conhecido filme de Dreyer, La Passion de Jeanne d’Arc, quis transformar-se na menina de Orléans e deu em louca. Jesus Cristo, imagino eu com alguma carga teológica, fez da imortalidade um projecto e acabou maltratado pelo veredicto de Pilatos. Da Vinci, ao invés de Sísifo, desejou voar e isso definiu-o. Ribas quis expor Mapplethorpe em Serralves e tramou-se. Cavaco Silva também terá tido um projecto de vida irresistível que nunca chegou a cumprir: ser proprietário de uma bomba de gasolina.
Pondo de lado estes exemplos de génios e de criadores, é igualmente verdade que o projecto das montanhas é transformarem-se em planaltos e depois em planícies e, no entanto, vemo-las estáticas como se não fossem contaminadas por essa bactéria a que chamamos tempo. Mas o que as faz ser (tal como as entendemos) é o trajecto em que vivem no seu mutismo absoluto, ignorando tudo o que os humanos dizem sobre elas. Mesmo quando os filósofos lhes atribuem a categoria das coisas sublimes (a grandiosidade das montanhas apequena-nos, mas a virtude da nossa espécie é poder pensá-las, concebê-las, explicá-las até e, depois, dizer – “eu sei”, “eu sei”).
O que sabemos e o que somos não é apenas linguagem. Um papagaio vindo dos trópicos não alça a perna como um cão, mas imita palavras articuladas pelos humanos. Nós também não conseguimos imitar uma montanha, apesar das mialgias do zen, mas desvendamos e imitamos factos que nos são exteriores (o biomimetismo das asas de um avião é engenharia inspirada biologicamente).
Como escreveu Jakobson, as linguagens definem-se menos por aquilo que permitem dizer e mais por aquilo que obrigam a dizer. Há coisas que conseguimos pensar, perguntar e dizer, outras não. E há projectos que realizamos, outros não. É nessa fronteira que deixamos o rabo de fora, porventura, para que, quando os humanos desaparecerem deste planeta, alguém nos venha a fazer a devida arqueologia. O que sabemos e o que somos não é apenas linguagem, mas o que nela há de fronteira. E de perda.
Vem isto a propósito do episódio mais intrigante com que me confrontei (nos muitos anos) em que tenho dado aulas. Estava a dar a uma turma o Lector in Fabula, um famoso livro de U. Eco, quando, na análise do ‘fragamento 8’ de The Tooth Merchant de Cyrus A. Sulzberger, surgiram estas linhas: “…dalla fica grande quanto la misericordia di Allah” (“…com uma cona grande como a misericórdia de Alá”). E o autor escreveu: “Fragmento que não submeteremos a análise, não por pudor, mas porque põe em jogo mecanismos de hipercodificação retórica e quadros intertextuais demasiado complexos… blá, blá…blá, blá…” (1).
Ainda que numa dimensão minúscula, eis um projecto incumprido que nos disse bastante, na altura, sobre quem seria U. Eco. Lembro-me que a aula também se incumpriu, pois passámos o resto do tempo a escrever esta crónica (quem diria, pois foi há mais de 20 anos!): falámos de Falconetti, de Dreyer, de Cristo, de Sísifo, do senhor Silva e de como a misericórdia é um projecto tão inacabado quanto sublime… que nada mesmo o define ou metaforiza (nem mesmo a nobreza de uma cona que é, ao mesmo tempo, o maior tabu da humanidade, mas também o seu ponto luminoso de aparição na Terra).
(1) Eco, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença, (orig.:1979) 1983, pp. 202-206.