Todos têm a mesma convicção: dificilmente, a seguir a eles, a arte continuará viva. São antigos mestres dos ofícios que partilham a paixão e a dedicação às artes que produzem todos os dias na cidade de Lisboa, que vai sendo diluída pelo tempo. Da arte do néon, das ferragens, da amolação e da encadernação, cinco são os rostos que, sem esperança, lamentam a falta de gente que queira aprender os ofícios, mas até as forças acabarem, lutam, diariamente, para deixar a sua marca.
É um pequeno espaço próximo da estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Abriu em 1983 e entra na história por ser a última oficina dedicada à arte do néon a funcionar na capital. É aqui que, entre o som das buzinas que pautam o caos da manhã e a companhia da rádio que transmite a música de fundo, António Reis e Jorge Neves iniciam mais um dia de trabalho.
Lado a lado com o tempo e sem pressas, Jorge pega num dos reclames luminosos que cria diariamente. Faz este trabalho “há mais de 57 anos”. Neste dia, com Reis, começa aquela que acabaria por ser uma conversa despojada de qualquer formalidade. “Amor” é a palavra que, num tubo vermelho de contornos acentuados, Jorge molda com as suas mãos minuciosas. Junto ao maçarico, numa chama baixa, aquece o vidro para formar a palavra ao gosto do cliente. Antigamente, o cliente era outro, “pois era o dono da pastelaria, da cervejaria, da drogaria que adquiriam o néon, agora são os decoradores e artistas”, afirma.
Ao mesmo tempo que “Amor” começa a ganhar forma e feitio, a “velha cidade cheia de encanto e beleza” que Amália cantou nos seus versos, toma conta do pensamento de ambos. “Era tudo feito com néon, a publicidade era assim. Só a partir dos anos 70/80 é que começou a ser em acrílico”, relembra Reis junto à larga bancada que ocupa a humilde oficina. “Eu acho que fiz de tudo, desde marisqueiras, lojas de pronto-a-vestir, retrosarias, perfumarias. Aqueles telhados do Rossio e Avenida de Liberdade pintavam-se de cor”, enfatiza Jorge com “Amor” nas mãos.
Numa altura em que o néon, resultante da mistura de gases e pó, está “de novo na moda”, muitos são os trabalhos que fazem, frequentemente, para o interior de lojas e restaurantes, mas também para exposições de artistas que, orgulhosamente, mostram em fotografias nos pequenos ecrãs dos telemóveis. “Como não sabemos inglês, temos feito trabalhos que depois até temos surpresas quando descobrimos o que significam”, salienta Jorge entre risos.
De olhos e mãos concentrados em três pequenos potes, Jorge revela num discurso espontâneo e modesto as particularidades do néon. “Há uma variedade de cores com que se pode jogar”, acentua, ao mesmo tempo que, na ponta de três dedos, exibe o que à partida seria o mesmo pó branco. Através de um feixe de luz que, intensamente, foca na sua mão, Jorge mostra que, afinal, nem tudo o que parece é: de uma cor no escuro passam para três cores diferentes às claras.
Como se o tempo estivesse parado no tempo, tranquilamente, Jorge despede-se por poucos minutos de “Amor”. Com a ajuda de Reis, pega na mala de amostras que, agora, abrem satisfeitos. Sem luz, não há luz. Mas, através de um longo fio branco que liga a caixa à tomada, a luz chega finalmente ao seu destino final e a magia acontece: 22 cores iluminam dentro da grande mala a pequena oficina, compondo uma sinfonia de brilho, como se de uma obra de arte se tratasse. “Com o gás azul e vermelho, fazemos estas cores todas”, sublinha Reis durante aquele momento de encanto.
Do papel de entrevistados, passam para o papel de professores: “Esta cor resulta da mistura do verde com o vermelho.” Assim começam e assim continuam. Com a energia que desde início os caracteriza, o papel de formadores não é algo novo. “Tenho o meu genro e a minha filha aqui a aprender, mas é um trabalho muito difícil. Leva-se muito anos para trabalhar corretamente com o néon. Ninguém tem vontade de apreender este ofício e assim, dificilmente terá futuro.”
De volta à bancada onde deixou “Amor”, Jorge recomeça a moldagem com o auxílio de Reis. Uma coisa é certa: neste ofício, nunca deixarão esta palavra morrer.
O lugar que reluz e seduz quem lá passa
A porta abre na Casa Achilles e a cor de ouro que reveste as paredes do espaço marca o início de um novo dia. No interior do universo dos moldes de ferragens, cinco são as estrelas que se encontram firmemente fixas num quadro branco que contrapõe todo o dourado que reluz e seduz cada visitante do espaço.
António Lucas é o proprietário da Casa Achilles, uma casa instalada desde 1905 no coração do Príncipe Real, “que tem milhares e milhares de moldes antigos e a capacidade de criar outros novos, conforme o gosto de cliente”, explica. Da luz que raia a loja, António Lucas passa para a oficina onde a luz se esconde por entre moldes marcados pelo tempo, como aqueles que aponta junto à porta: “Esses moldes da parede são do século XVIII… franceses”, frisa.
Com a simpatia estampada na alma e no espírito, António realça, pedindo “desculpa pelo exagero”, que a “excelência com que o produto final sai não se encontra em mais lado nenhum, porque aqui domina-se técnicas antigas para dar o toque clássico a tudo o que se faz”.
Enquanto o silêncio envolve o ambiente fascinante da antiga oficina, António Lucas, convicto, afirma sem medos: “Em Portugal, por tradição cultural, o trabalho manual não é valorizado.” Defendendo a sua posição, vinca novamente: “Ao contrário da Áustria e da França, em Portugal isto é assim porque o trabalho manual era uma coisa de judeus e dá-se mais valor a um doutor ou a um engenheiro.”
Com um molde na mão, trazido por uma embaixada próxima da sua oficina, a servir de exemplo às palavras que profere, admite que o aumento do turismo, que crê ser, futuramente, “o petróleo de Portugal”, contribui para o imenso trabalho que tem, uma vez que “é necessário fazer recuperações para hotéis, por exemplo. Indiretamente, o turista é que influencia e agita toda esta demanda”, destaca.
Enquanto, a passos lentos, se encaminha para a sala do brilho dourado que ilumina o seu rosto, pensa no futuro sem esperanças: “Esta oficina, depois de mim, acaba. Vou ficar na história da pior maneira”, reconhece tristemente.
Onde não é preciso fazer-se ouvir
A hora de fecho aproxima-se porque o dia já vai longo, mas nada impede António Garcia de continuar a afiar uma das muitas facas que tem na sua pequena oficina, na Avenida Almirante Reis, espaço que abriu em 1943. “Oficina de Amolador” são as três palavras cravadas num letreio sobre a porta de entrada. A loja está cheia de chapéus-de-chuva, alicates, canivetes, tesouras e facas, que Garcia continua a afiar apesar da idade, que já começa a pesar no corpo e no espírito.
Sem nunca desviar os olhos da lâmina cinzenta que, por entre faíscas, se ia revelando, afirma, com certezas, que “não há ninguém, ninguém, ninguém que queria aprender este ofício”. “Há uns 10 anos, havia cerca de sete, oito casas de amoladores. Agora, a oferta está reduzida apenas a duas, e uma vai fechar já no próximo mês”, ressalta.
Ao contrário das antigas bicicletas que assobiavam à cidade e traziam consigo a mó para satisfazer o desejo daqueles que, ao som do apito, entregavam utensílios para amolar, Garcia não precisa de se fazer ouvir para que tantos o encontrem e entreguem, de igual forma, os seus objetos para que lhes possa dar novo uso.
Sem perspetivas para o futuro da sua oficina e até para o ofício, António Garcia reconhece que três anos é o período máximo que ficará na pequena loja. Até lá, quem passa na avenida continuará a ver o letreiro que marca o possível fim de um dos mais emblemáticos ofícios de Lisboa, num lugar onde se dá vida aquilo que já não a tinha.
Entre páginas de memórias
O fresco da manhã faz-se sentir na estreita rua do Bairro Alto, onde, desde 1973, Idílio António faz encadernações na sua pequena oficina artesanal. Com o sol ainda pouco desperto, a loja torna-se difícil de encontrar, mas os livros empilhados que da porta se revelam não deixam margem para dúvidas: aquela é a oficina onde se dá aos livros uma nova alma.
Com os mais diversos tamanhos e cores, os livros em cima da grande mesa encontram-se na fila de espera para “tratamento”. Naquele momento, apenas um interessa a Idílio: “Tenho aqui um livro para entregar à UAL. É uma instituição por quem eu tenho muita estima e respeito porque já trabalho com eles há muitos anos”, revela.
Pousa o livro que menciona e, com tempo limitado, apressa-se para, junto à bancada principal da sua oficina, expressar a sua opinião e recordar o passado: “Não há pessoas que queiram apreender o ofício. Ninguém nasce ensinado, tem que se dar tempo ao tempo, mas a verdade é que a base de iniciação é feita já muito tarde”, refere.
Com um olhar que acompanha o seu pensamento, considera que numa profissão “tem que se ter o prazer e o rosto daquilo que se está a fazer”, algo que já lhe é intrínseco desde que começou, aos 13 anos. Sobre a continuidade da sua oficina, tem esperanças que o filho prossiga com as encadernações, mas ressalta: “Quem cá ficar, é que vai, de facto, dirigir o seu destino. Só o tempo o dirá.”