Oriundo de Moçambique, Luís Sinate emigrou para Portugal nos anos 80 e foi nas terras lusas que construiu o seu caminho. É professor, formador e empreendedor em inúmeros projetos, mas ainda guarda espaço para uma rubrica semanal, na RTP África, e para escrever poesia, nas horas vagas. O sonho de vida é contribuir para o desenvolvimento do país natal através da educação.
Luís Sinate era ainda muito jovem quando chegou a Portugal, fugido da guerra de Moçambique, nos anos 1980, mas cedo percebeu que o seu futuro passaria pela educação. Licenciou-se em Economia e Gestão, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCTE) e hoje é diretor da Aproffluso-Associação de Professores e Formadores Lusófonos. Espírito inquieto, às terças-feiras, ainda apresenta a rubrica da RTP África “Eu Consigo” e criou a página no facebook “Clube de poetas vivos”, onde partilha poemas com amigos, alunos e colegas. Em entrevista, revela o que move os seus projetos: a crença de que só a educação permite o desenvolvimento dos países.
Como é que descreve o seu percurso?
O meu percurso não é linear. Sempre fui uma pessoa que gostei de ir à procura daquilo que a própria vida me foi proporcionando. Sou licenciado em Gestão e dou aulas em Economia. Completei o mestrado em Sociologia do Trabalho e depois dou formação profissional às empresas. O meu percurso desenvolveu-se à medida dos desafios que foram aparecendo na minha vida, das necessidades e oportunidades que surgiram na altura, bem como um bocadinho da minha vontade para encontrar soluções para minha vida.
Acredita que se tivesse ficado em Moçambique teria tido as mesmas oportunidades?
Nem pensar. Moçambique é um país com imensas dificuldades na área do ensino, da formação. Portanto, quando saí de lá, as oportunidades que havia nos anos 80 não têm nada a ver com as que existem hoje. Até porque estávamos no período em que nos encontrávamos sobre influência direta, ou indireta, de uma guerra civil, com todas as implicações que tem na vida das pessoas, tanto do ponto de vista profissional como académico. Não era compatível com a procura dos jovens moçambicanos pelas suas realizações e sonhos. Teve tudo a ver com a conjuntura e com a situação em que o país se encontrava. Na altura em que saí de Moçambique, muitos jovens da minha idade viram como saída a emigração, pois a situação estava muito complicada para nós. Houve muita gente que partiu para vários países da Europa e foram à procura de oportunidades e melhores condições que fossem de encontro com as aspirações e sonhos de cada um.
Qual é o conselho que deixa aos jovens que sonham em ser empreendedores?
Nem tenho conselhos para mim, quanto mais para os outros. Agora, é evidente que há situações que considero que devam ser importantes para qualquer pessoa que deseja ir atrás de alguns sonhos e que procuram obter a realização, quer do ponto de vista académico quer profissional. Em primeiro lugar, cada um de nós tem de ter disciplina em tudo e, por outro lado, também é preciso objetivos na vida. Os objetivos são, no fundo, aquela luz que vai orientar todo o nosso percurso para que não andemos perdidos. Têm de ser estabelecidos, escritos, e é necessário que sejam realistas. Os objetivos têm de ser permanentes. Como digo aos meus alunos, não podemos estar sempre a mudar de objetivos. Caso contrário, não há ninguém que consiga ir à procura daquilo que seja a realização pessoal. Temos de ser perseverantes para conseguir superar os obstáculos e ter vontade de aprender, ir à procura de muita informação para que todas as decisões que tomemos sejam esclarecidas.
Da língua a educação
A Associação de Professores e Formadores Lusófonos-APROFFLUSO é hoje uma organização não-governamental de desenvolvimento (ONJD). Qual é a sua missão como presidente de direção?
A Aproffuso é um dos grandes projetos. A associação foi fundada com o intuito de criar um espaço comum que ajudasse as pessoas que querem trabalhar na área de ensino, ou que já trabalham, a encontrarem ferramentas de informação, formas de comunicação e de formação contínua para preencher essas lacunas.
Em que difere o trabalho da Aproffluso do de outras ONGDS que trabalham igualmente com as grandes dificuldades que os emigrantes enfrentam?
A nossa diferença tem a ver com o facto de estarmos estritamente ligados à área da educação e da formação e, principalmente, nos países de língua oficial portuguesa, mas sabemos que existem muitas ONGDS que trabalham na área de desenvolvimento local, ignorando que umas das áreas extremamente importantes para desenvolvimento dos nossos países da CPLP é a área da educação, que é muito esquecida até do ponto de vista político. Portanto, há dinheiro para muita coisa, mas não para o que é importante. Muita gente esquece que para crescermos como países, para passarmos para níveis de desenvolvimento aceitáveis, há que privilegiar a formação e a educação. Somos diferentes porque acreditamos e estamos especializados nessa área da formação e da educação, como ferramenta quase exclusiva no desenvolvimento das pessoas numa forma integral.
Como é que combina as multifunções que assume na sua vida? Como é que se sente no papel do “homem dos mil ofícios”?
Nunca fui uma pessoa conformada com aquilo que faço e que tenho. Faz parte de mim, por isso é que gostei sempre de experimentar coisas novas. Aliás, se ficar durante muito tempo sem fazer alguma coisa pela primeira vez, é sinal de que estou a cair na rotina, que algo está errado porque nunca gostei de rotinas. Pelo contrário, sempre procurei encontrar formas diferentes de fazer as mesmas coisas ou o que surja de novo. Sempre senti necessidade de ir à procura de desafios que me tirassem da zona de conforto e então vejo-me sempre a fazer mil e uma coisas. Só não faço quando não posso ou não tenho algo para acrescentar. É a minha forma de estar na vida.
Qual é a mensagem que quer transmitir aos jovens, filhos, netos que se querem formar e não têm possibilidades financeiras ou aos que se formaram e não conseguiram arranjar emprego na área de formação?
A saída tem de partir de uma questão de vontade de ir aprendendo, cada vez mais, tendo em conta que o sistema de ensino é talvez a única forma de conseguirmos a liberdade e a autonomia. Também é a única forma de encontrarmos saídas profissionais que vão ao encontro daquilo que pretendemos. Não há outra maneira. É tudo a partir da educação. E fico extremamente preocupado quando vejo que a parte da educação não está na agenda das principais decisões políticas, pois só podemos avançar enquanto país e para um modelo de sociedade desenvolvida, quando priorizarmos a educação, pois é a partir da mesma que iremos encontrar competências para nossa vida. Como dizia o Presidente Mandela: “Só conseguimos construir sociedades evoluídas e solidárias, sociedades cooperantes, através da educação.” É a partir da educação que podemos encontrar tudo aquilo que diz respeito à felicidade dos povos.
O regresso às raízes
Qual considera ser o contributo da associação que dirige para o desenvolvimento de Moçambique?
Não está desenhada apenas para Moçambique, mas sim para os países da CPLP(Comunidade de Países de Língua Portuguesa) , por uma razão muito simples: se olharmos para os desafios que se encontram dentro das áreas da docência e formação, evidenciamos que os problemas são comuns aos países da CPLP. Quando criámos uma associação de professores e formadores de todos os países lusófonos, foi porque, efetivamente, chegámos à conclusão que os problemas eram exatamente os mesmos, com algumas nuances porque existem ligeiras diferenças. No fundo, o calcanhar de Aquiles, ou seja, a falta de professores, de competências e de preparação, a carência de formação contínua e de material, é exatamente o mesmo. As soluções que a associação encontrar para Moçambique aplicam-se ao resto dos países da CPLP , pois os problemas são iguais em todos os países.
Está em Portugal há mais de 20 anos, pensa em regressar a Moçambique algum dia?
Com certeza. É a terra que me viu nascer e, provavelmente, onde irei dar o meu contributo e a minha experiência académica e profissional porque tudo aquilo que sou é graças a este país. Moçambique é a minha inspiração académica e profissional. Faz parte das contas a pagar com minha terra porque sei que ela precisa de mim e naturalmente que penso voltar. Aliás, sempre senti a preocupação de contribuir para crescimento de Moçambique, quer através de conferências, quer através workshops ou seminários, como por meio daquilo que for útil. Estarei sempre envolvido, irei sempre participar.
E têm conseguido materializar esse desenvolvimento, em algum dos países com que trabalham?
Não como gostaríamos. Tem sido degrau a degrau e depois sabemos que, em termos de implementação de determinados projetos, é variável de país para país. A própria conjuntura para efetivar projetos dentro da área de formação contínua de professores e formadores é diferente. Até a política para estes fins é desigual. Por exemplo, lembro de algumas dificuldades que tivemos com a Guiné, onde foram colocados alguns entraves, nomeadamente em algumas províncias que estão distantes das capitais de alguns países onde à comunicação não chega. Existem muitas dificuldades no acesso à informação, na utilização da internet e de muitas ferramentas à distância. Há falta de materiais, o que acaba por dificultar a implementação dos nossos projetos, mas tem a ver exatamente com as dificuldades que os nossos países sentem. À medida do possível, vamos tentando encontrar soluções à altura. Temos consciência de que é complicado e que é um processo vagaroso, mas ultrapassaremos essas barreiras durante o tempo que for necessário.
O que tem a dizer às pessoas que julgam que o ensino profissional é uma espécie de “ensino de segunda”?
As pessoas estão muito mal informadas. Esse preconceito de que quem vai para o ensino profissional acaba por ser um daqueles alunos que não consegue ter êxito não é verdade. O ensino profissional é uma área de ensino tão importante quanto as outras. Se verificarem, todos somos diferentes, logo, não necessitamos da mesma solução, em termos de áreas de formação. Muitos dos meus alunos, por exemplo, hoje estão a trabalhar em grandes empresas, muito bem colocados, não devem nada a ninguém e são tão competentes ou mais do que qualquer um que tenha passado pelo ensino regular. Estão no mercado e recomendam-se. E estou muito orgulhoso deles. São pessoas realizadas profissionalmente. O ensino profissional deveria ser uma área mais valorizada. Hoje em dia, quando ouvimos os empresários, eles dizem que a sua principal preocupação é a falta de competências técnicas para a área de trabalho, embora sejam formados.
“Tudo aquilo que escrevo”
Integra o Clube dos Poetas Vivos e tem livro que se chama ‘Coisas da Tribo’. De onde nasceu a paixão pela escrita?
Poetas Vivos é um projeto que abracei porque, para além da parte profissional, também tenho o meu escape pessoal. Foi a maneira que encontrei de levar a minha mente a pensar em outras coisas que não sejam apenas trabalho. Escrevo nessa página onde coloco tudo o que tem a ver com as minhas prosas, os meus poemas, tudo o que tem a ver com a minha parte lúdica da escrita. E é mais ou menos um passatempo. Está lá tudo aquilo que escrevo porque há uma parte de mim que está relacionada com a escrita, com a narrativa. A paixão pela escrita também nasceu daquilo que são as minhas aspirações enquanto ser humano, enquanto pessoa que procura respostas naquilo que tem a ver com o nosso quotidiano, com a forma de estar no mundo, de estar com a nossa identidade cultural. A maioria dos meus poemas é sobre Moçambique, África, porque é a forma que arranjei na Europa de ir ao encontro das minhas raízes africanas, de moçambicano, de cidadão lusófono.
Quando se senta para escrever a inspiração senta-se logo consigo? Ou seja, senta-se sabendo desde logo o que vai escrever?
É uma mistura de tudo. Há momentos em que vou escrever e surge inspiração simplesmente porque vou conversar com alguém ou então vi determinada realidade que me tocou profundamente. Quando quero fazer chegar alguma revindicação, também arranjo forma de expor sentimentos e emoções. Escrevo quando quero respirar um bocadinho a África. É uma mistura de sentimentos. No entanto, também é preciso disciplina, pois escrever não é fácil. Há poemas que, muitas vezes, nascem de muitas tentativas e erros. Quando escrevo, os poemas não saem logo a primeira. É uma questão de persistência também, o que resulta no meu caso de ir a procura daquilo que é perfeição literária, o que pode não existir, mas que pelo menos tentamos encontrá-la, por isso, é que insisto na ideia de que é um mix de tudo isso, é questão de perseverar, de ter disciplina, intuição, emoção, é um bocadinho de ir ao encontro do momento em que estás a escrever.
Nos seus textos é notável a ligação que sente por África e as características que nos tornam únicos. A que atributos se refere?
Portanto, todos nós somos diferentes. Não existe nenhum cérebro que seja idêntico ao outro e, por sermos distintos, acabamos por ser iguais nas diferenças. Ou seja, tem a ver com o facto de nos podermos encontrar como seres humanos únicos, exatamente por sermos diferentes uns dos outros. É na diferença que encontramos a semelhança. A capacidade de comunicar, de partilhar e de nos emocionarmos uns com os outros distingue-nos de outros seres.
De que forma a escrita pode tocar corações e abrir mentalidades? Eventualmente, quebrar preconceitos e falsas crenças?
A escrita é uma espécie de vozes silenciosas que vão encontrando o eco em todas aquelas pessoas que andam distraídas pela vida, muitas vezes, por causa da publicidade e do consumismo. Acabam por captar a nossa atenção e a escrita é algo silencioso que nos obriga a olhar para ela, a apreender a mensagem a fim de encontrarmos muitas respostas para questões que andamos à procura e que, eventualmente, não vai ser a televisão, nem a publicidade que nos vão transmitir: os princípios, os valores, as crenças, a ética, o profissionalismo, a solidariedade e derrubar preconceitos. Portanto, a escrita tem isto, a magia de poder entrar e tocar-nos profundamente, a de abrir as nossas mentes para o que é essencial do que é apenas acessório.
No texto ‘Nosso Mundo’, é evidente a crítica que faz ao ser humano, mas por outro lado, escreve ‘Coisas da tribo’, numa visão esperançosa pela mudança. Existe alguma ligação entre estes dois pensamentos?
O preconceito infelizmente propaga-se à velocidade da luz. É daquelas coisas que a própria sociedade não consegue encontrar limites para travar. E temos de estar muito atentos a esta situação. Por isso, é que digo que qualquer um de nós tem de sacudir a poeira, tirar tudo o que seja preconceituoso para se livrar do preconceito e conseguir estar de bem com a vida. Por outro lado, como diz o ditado, “a esperança é a última a morrer” e é nesse sentido que falo da esperança, porque penso que sem ela é como se estivéssemos a dar o ouro ao bandido. Faço parte daqueles que acreditam que o dia de amanhã será melhor do que o anterior, por isso, é que devemos ser todos esperançosos, sentimento que tento transmitir nos poemas. Sou uma pessoa muito positiva. A esperança deveria ser um valor ético que nos é ensinado, pelo facto de existirmos como pessoas. Acredito que se hoje a vida está complicada é porque temos de escalar essa montanha para que amanhã tudo possa ser muito melhor.
‘A Revolta dos Tambores’ é um texto forte e com profundo cariz emocional. Como recorda este processo de escrita? É um processo doloroso o de retratar um tema tão sensível como é o da escravatura humana na Líbia?
Quando escrevi esse poema, foi porque já tinha lido muito sobre o assunto. Senti que tinha de dar um murro na mesa ou um grito. Tinha de fazer alguma coisa, de sensibilizar, mobilizar ou chamar atenção. Não conseguia manter-me indiferente diante daquela situação, da venda de escravos. Tanto como africano, mas também como pessoa, senti a obrigação de fazer alguma coisa. Uma das formas ao meu alcance para expressar o descontentamento era através da escrita. Tinha de agarrar na caneta e por para o papel, expor tudo aquilo que era a minha revolta sentimental em relação a essa realidade. E como não tinha outra ferramenta, agarrei-me ao que me era mais genuíno e que conseguisse tocar as pessoas mais atentas. Foi quando surgiu a inspiração para escrever esse poema. Confesso que foi difícil, pois senti o tremer da caneta, que era o resultado da minha emoção ao escrevê-lo. Parafraseando o nosso amigo e cantor angolano Bonga, “quando terminei, tive quase que uma lágrima no canto do olho”. Tocou-me bastante aquela dura realidade. O poema espelhava a minha revolta e raiva. Foi doloroso, mas no fim de estar tudo concluído, também senti que foi libertador. Logo que o publiquei, muita gente telefonou-me, escreveu-me e deram-me os parabéns e disseram-me que lhes tocou. Foi extraordinário. Não estava nada à espera. Fico orgulhoso de ter contribuído e por ter alertado para uma realidade que muito sinceramente estava convencido que não fosse acontecer no século XXI.
O seu nome ainda não é conhecido do grande público. Revê-se na imagem de uma pessoa discreta e que dispensa o reconhecimento alheio? Ou gostava muito que as suas palavras circulassem em livros e outros meios, com mais projeção?
Não, sou mesmo uma pessoa discreta, procuro pautar-me pela minha discrição. Se tiver algum reconhecimento que seja por estar a fazer alguma coisa, pelos outros e para os outros. Não precisamente, por mim. Uma das coisas que o meu pai me ensinou é que estamos nessa vida para estarmos despertos e nos servirmos uns aos outros. Portanto, se algum dia vier a ser reconhecido, que seja por estar a fazer alguma coisa para e pelos outros. Porque de outra maneira, prefiro manter-me no anonimato, na normalidade do meu dia a dia, que é o que me faz bem. Já tenho o reconhecimento dos meus alunos, algo que me dá imenso gozo porque faz parte da minha essência, da minha missão. Não procuro protagonismo. Tudo o que faço é de livre espontânea vontade, no intuito de servir os outros, pura e simplesmente.
E para quando o próximo projeto?
Estou à espera que a qualquer minuto surjam projetos que me permitam sair da rotina e da minha área de conforto. Está em “banho-maria” a publicação do livro ‘Coisas da Tribo’, que será uma coletânea dos meus poemas. Fui agora convidado para ser embaixador de um projeto que tem por nome ‘África de mãos dadas’. Foi um convite recente. Vou abraçar este novo desafio e com muito gosto. Está relacionado com África, com a sua cultura, arte e gastronomia. E muito sinceramente, faz-me sentir cada vez mais africano quando aparecem pessoas que, direta ou indiretamente, acabam por reconhecer aquilo que faço por África, ao convidar-me para integrar projetos desta natureza. É algo que me deixa muito satisfeito.